A origem da noção de separabilidade ou destacamento da propriedade do solo em relação à superfície tem sido objeto de controvérsia da doutrina há tempos. Inicialmente, a prática dos juristas romanos1 atribuiu a regra de experiência superficies solo cedit ao instituto da acessão2, correspondendo à noção dogmática de que, em regra, o dono do solo deveria também ser considerado o titular integral do edifício construído sobre o solo, em virtude de uma força atrativa (vis atrativa) que o solo exerceria sobre tudo aquilo que acedesse a ele3.
 
Com a outorga pretoriana do interdito possessório de superficiebus aos titulares de arrendamentos de longo prazo, que Max Kaser4 sustenta ter sido a base de um direito real de superfície romano5, Moreira Alves6 sustenta que o direito de superfície teria adquirido a natureza de direito real sobre coisa alheia (ius in re aliena) durante o período justinianeu, sendo que a separabilidade de domínio do solo em relação à superfície somente seria identificada a partir do período medieval, no direito germânico antigo, com o princípio do trabalho7. Em linha diversa, destacam-se os escritos de Eduardo Cesar Silveira Vita Marchi, para quem, ao invés de um direito real sobre coisa alheia, “ter-se-ia constituído no direito romano […] um pleno direito de propriedade sobre a superfície”, denominado propriedade superficiária8.
 
Os compêndios de leis civis que vigoraram entre os séculos XVI a XVII nas diversas regiões de França – incluindo Paris, Calais, Normandia e Reims – admitiram residualmente a separabilidade do solo em relação à superfície9, hipótese esta que foi incorporada pelo art. 553 do Código Civil Francês de 1804. Tal artigo, ao consubstanciar a regra geral de que superficies solo cedit no ordenamento francês, admitiu a prova em contrário: “si le contraire n’est prové”, evidenciando a possibilidade de prova da separação entre solo e superfície. Necessário ressaltar, ademais, que o Código Civil Francês não contemplou a figura do direito de superfície como um direito autônomo. Por outro lado, o art. 664 do Código Civil Francês, que permaneceu em vigor até a promulgação da de lei de 28 de junho de 1938 para fins da elaboração da lei de condomínio (coproprieté), previa a possibilidade de que vários pavimentos de uma casa pudessem pertencer a proprietários separados.
 
Contemporâneo ao Código Francês, o Código Civil Austríaco (ABGB) de 1811 não trouxe disciplina sistemática do direito da superfície, mas previa a possibilidade de divisão do uso do solo e subsolo e outro com utilização da superfície, sobre a qual deveria pagar uma contribuição anual. Posteriormente, a lei de 1912 que tratou da matéria trouxe novas feições como direito real, mas não o caracterizou, seja como como direito real sobre coisa alheia ou direito de propriedade (superficiária)10.
 
Na Itália, com a edição do Código de 1865, que substituiu as legislações das províncias itálicas anteriores à unificação, o art. 448, ao prever a regra geral de que superfícies solo cedit, também consagrou residualmente a possibilidade de reconhecimento da separabilidade entre solo e superfície, por meio de prova em contrário: “finchè non consti del contrario”.
 
Com a aprovação do BGB de 1896, marcado por influência romanista11, a regra de que superficies solo cedit foi expressamente incorporada pelos parágrafos 9312 e 9413 do BGB, ao passo que o parágrafo 101414 estabeleceu a inadmissibilidade da propriedade separada de andares de uma mesma construção. Quanto ao direito de superfície, este foi inicialmente tratado pelo BGB na Seção 4 do Livro III, posteriormente revogado no apagar das luzes da Primeira Guerra Mundial, em 1919, com a edição do Erbbaurechtsgesetz (Regulamento de Direitos de Superfície)15, posteriormente alterada pela Lei de Condomínios de 1951 (Wohnungseigentumsgesetz)16.
 
No Brasil, o Código Civil de 1916 não incluiu o direito de superfície no rol dos direitos reais17. Do ponto de vista legislativo – ou mesmo dogmático – e desconsiderando-se as legislações civis portuguesas e a prática que antecederam ao Código Civil de 1916, pode-se dizer que o desenvolvimento da matéria da superfície é relativamente recente: o primeiro movimento legislativo concreto neste sentido se deu com a edição do Estatuto das Cidades (Lei nº 10.257/2001, que teve por objeto a regulamentação dos artigos 182 e 183 da Constituição Federal, para fins de estabelecer diretrizes gerais de política urbana, estabelecendo “normas de ordem pública e interesse social que regulam o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental.”18
 
No ano seguinte, após quase três décadas de tramitação, houve a sanção do atual Código Civil, que reconheceu a superfície como direito real (artigo 1.225, inciso II) em sequência à propriedade19, possivelmente indicando a tentativa do legislador em conferir relevância ao instituto, o que entretanto, não logrou êxito, ao menos em matéria de regularização fundiária, problema premente da realidade social brasileira20.
 
Além disso, a sanção do Código Civil trouxe dúvidas quanto à coexistência de dois estatutos jurídicos distintos para regulamentação do direito da superfície no direito brasileiro, uma vez que o legislador civil não visou a uma compatibilização normativa em relação ao previsto no Estatuto das Cidades. Para Roberto Paulino de Albuquerque Junior21, a mera interpretação de que houve derrogação dos dispositivos do Estatuto da Cidade pelo Código Civil não seria a mais adequada, devendo-se buscar a interpretação teleológica de compatibilização dos dispositivos.
 
Com base neste raciocínio, o regime do Estatuto das Cidades seria aplicável, em essência, às superfícies ditas urbanas, ao passo que a regulamentação do Código Civil, pois que definida genericamente, seria aplicada residualmente, isto é, às superfícies ditas rurais ou agrárias22.
 
Em 2016, as superfícies foram novamente alvo de tutela legislativa, com a edição da Medida Provisória nº 759 de 22 de dezembro de 2016, que tinha o objetivo de, nos termos de sua ementa, dispor sobre a “regularização fundiária rural e urbana”, dentre outros assuntos, ao passo que promovia relevantes alterações no Código Civil. Referida MP foi convertida em lei e sancionada pelo Presidente da República em 11 de julho de 2017, tornando-se assim a Lei nº 13.465/2017.
 
Dentre as alterações promovidas pela referida lei em diversos diplomas legais, houve a criação da figura do “direito real de laje” em seu artigo 55, que acrescentou os artigos 1.510-A a 1.510-E ao Código Civil, bem como inserindo tal direito no rol taxativo dos direitos reais referidos no artigo 1.225, inciso XIII do Código Civil.
 
Dispõe o artigo 1.510-A que “proprietário de uma construção-base poderá ceder a superfície superior ou inferior de sua construção a fim de que o titular da laje mantenha unidade distinta daquela originalmente construída sobre o solo.”. E na sequência, o art. 1.510-A, §1º: “O direito real de laje contempla o espaço aéreo ou o subsolo de terrenos públicos ou privados, tomados em projeção vertical, como unidade imobiliária autônoma, não contemplando as demais áreas edificadas ou não pertencentes ao proprietário da construção-base.”.
 
A redação não foi imune às críticas, apesar da intensa recepção do legislativo aos embates doutrinários sobre o tema, o que de certo modo acabaram por criar uma figura, que embora criticável, tem sua operabilidade23. Eduardo Marchi, que vê com entusiasmo a positivação do direito real de laje como a admissão da propriedade superficiária no ordenamento jurídico brasileiro24, entende que a exigência de uma “construção-base” não deve ser interpretada literalmente, estendendo-se também para a potencialidade do espaço aéreo ou subsolo.
 
No entanto, Otavio Luiz Rodrigues Junior e Roberto Paulino de Albuquerque Junior ressaltam que o conteúdo do direito real de laje já estava abarcado pelo direito de superfície, em sua modalidade de direito de sobrelevação (superfície constituída sobre o espaço aéreo)25.
 
Além disso, embora em muitas oportunidades tenha sido ressaltado o caráter social de regularização fundiária atrelado ao instituto, o que é perceptível pela escolha do nome laje, tipicamente atribuído às construções em moradias de baixa renda nas periferias de centros urbanos brasileiros26, nada obsta a sua utilização, inclusive já até aventada, em negócios jurídicos empresariais de grande porte27.
 
Em decorrência disto, segundo estes autores, verifica-se que “há um esvaziamento da superfície por meio da preferência pela construção de um instituto novo mediante o destacamento de uma porção de seu objeto, ao invés da escolha mais simples e elegante por seu aperfeiçoamento.”28.
 
A crítica destacada é necessária e leva à reflexão. Ao estudo do Direito Civil na contemporaneidade não se permite o descolamento histórico, dogmático e doutrinário de seus institutos, a pretexto de se obter maior “operabilidade” com soluções “modernas”, por vezes transplantadas de outras áreas do conhecimento, mas que, confrontadas, revelam-se meros castelos de areia. Neste sentido, perquirir as raízes dos institutos de Direito Civil corresponde a um modo de autocontenção intelectual, bem como um requisito indispensável para aventar a propositura de seu aperfeiçoamento.