Não é nova a discussão sobre a condição de companheiro no Direito Civil brasileiro, especialmente após a decisão do Supremo Tribunal Federal no julgamento dos Recursos Extraordinários 646.721/RS e 878.694/MG, de relatoria do ministro Luís Roberto Barroso, em 10/5/2017. Naquela ocasião, o STF lançou a seguinte tese em sede de repercussão geral: “No sistema constitucional vigente, é inconstitucional a diferenciação de regime sucessório entre cônjuges e companheiros, devendo ser aplicado, em ambos os casos, o regime estabelecido no artigo 1.829 do CC/2002”.
 
Referida decisão do STF, no entanto, não fez equiparação absoluta entre os direitos do cônjuge e do companheiro, pois apenas declarou inconstitucional o artigo 1.790 do Código Civil, que conferia aos companheiros direitos sucessórios inferiores aos dos cônjuges. A equiparação realizada pelo STF ligou-se apenas à concorrência sucessória e ao montante dos quinhões hereditários, nada mais. Tal decisão não atingiu — não anulou — a disposição vigente do artigo 1.845 do Código Civil, que dispõe serem “herdeiros necessários os descendentes, os ascendentes e o cônjuge”. Não há referência ao companheiro nessa disposição, pelo que a ele não será atribuída a herança necessária, como ocorre com descendentes, ascendentes e cônjuge.
 
Tal ficou claro, no âmbito do STF, quando do julgamento dos embargos declaratórios opostos nos recursos extraordinários citados. Em julgamento de 26/10/2018, o STF entendeu que “(n)ão há que se falar em omissão do acórdão embargado por ausência de manifestação com relação ao artigo 1.845 do Código Civil, pois esse dispositivo não foi objeto da repercussão geral reconhecida pelo Plenário do STF”, pelo que “(n)ão houve discussão a respeito da integração do companheiro ao rol de herdeiros necessários, de forma que inexiste omissão a ser sanada”.
 
Perceba-se, com total clareza, que o STF reconheceu que o artigo 1.845 do Código Civil — que retira o companheiro do rol taxativo dos herdeiros necessários — não foi objeto da repercussão geral reconhecida pelo Plenário da corte. Portanto, também segundo o STF, não houve discussão a respeito da integração do companheiro ao rol de herdeiros necessários, de forma que a disposição do artigo 1.845 do Código Civil permanece incólume no sistema de Direito Civil brasileiro. Assim, a declaração de inconstitucionalidade do artigo 1.790 do Código Civil nada tem que ver com a validade do artigo 1.845 do mesmo Codex, que permanece como numerus clausus (interpretação restritiva) em nossa ordem jurídica.
 
Não sendo o companheiro herdeiro necessário, resta a possibilidade — em tudo jurídica e que respeita a autonomia da vontade do cidadão — de ser celebrado testamento sobre a totalidade dos bens do testador, caso não tenha herdeiros necessários (descendentes ou ascendentes). De fato, não faria qualquer sentido que alguém que, em vida, estabeleceu o regime de separação total de bens, faleça e tenha seus bens divididos com um(a) companheiro(a) a quem não pretendeu beneficiar.
 
Nos termos do artigo 1.789 do Código Civil, “(h)avendo herdeiros necessários, o testador só poderá dispor de metade da herança”. Tal não ocorre no regime de união estável, por não serem os companheiros herdeiros necessários. Se se pretendeu formalizar uma união por meio de união estável e não por meio de casamento, tal é um ato que deve ser reconhecido e respeitado, dado que resguarda a autonomia da vontade das partes. Assim, não havendo o testador herdeiros necessários, poderá, no regime da união estável, testar todo o seu patrimônio a outrem, pois não há legítima a ser garantida. Se o testador tiver herdeiro(s) necessário(s), poderá atribuir a completude de sua herança aos mesmos, sem nada destinar ao companheiro.
 
A propósito, merece ser transcrita a precisa lição de Regina Beatriz Tavares da Silva, que esclarece o tema:
 
“Não há mais, portanto, que se falar em incerteza sobre o companheiro passar ou não a ser herdeiro necessário. Não é herdeiro necessário. Isto está bem decidido pelo STF. Afinal, a Corte Suprema reconheceu a razão da Associação de Direito de Família e das Sucessões (ADFAS), que, na qualidade de amicus curiae, defendeu a diferenciação entre casamento e união estável, porque o primeiro é oriundo de toda a solenidade prevista na lei e a segunda é uma relação que não precisa de qualquer formalidade para existir ou extinguir-se. A liberdade das pessoas na escolha de uma ou outra entidade familiar está preservada no STF (…)” (grifos do autor).
 
O ministro Edson Fachin, a propósito, já havia deixado claro que o companheiro não é herdeiro necessário quando disse:
 
“Na sucessão, a liberdade patrimonial dos conviventes já é assegurada com o não reconhecimento do companheiro como herdeiro necessário, podendo-se afastar os efeitos sucessórios por testamento. Prestigiar a maior liberdade na conjugalidade informal não é atribuir, a priori, menos direitos ou diretos diferentes do casamento, mas, sim, oferecer a possibilidade de, voluntariamente, excluir os efeitos sucessórios” (grifo do autor).
 
O regime de união estável, que o STF equiparou ao casamento para efeito da ordem de vocação hereditária, não se confunde com o matrimônio. Fossem institutos idênticos, não faria sentido autorizar que pessoas optassem pelo regime menos solene da união estável. Tanto são institutos constitucionalmente distintos que a Carta Magna de 1988 diz ser “reconhecida a união estável”, devendo a lei “facilitar sua conversão em casamento” (artigo 226, § 3º). A diferenciação é constitucional e, portanto, não há inconstitucionalidade por omissão na exclusão do companheiro do rol dos herdeiros necessários.
 
Não se diga, ademais, que o STF teria “implicitamente” alocado o companheiro como herdeiro necessário — ao lado do cônjuge — no artigo 1.845 do Código Civil. A decisão do STF nos embargos declaratórios foi firme em atestar que o artigo 1.845 do Código Civil “não foi objeto da repercussão geral reconhecida pelo Plenário do STF”, e que, portanto, “(n)ão houve discussão a respeito da integração do companheiro ao rol de herdeiros necessários”. Assim, esse dispositivo, repita-se, permanece incólume — na qualidade de numerus clausus — no sistema de Direito Civil brasileiro.
 
O Superior Tribunal de Justiça, em decisão anterior à relativa aos embargos declaratórios julgados pelo STF, entendeu que uma companheira em situação de união estável com companheiro que não havia descendentes ou ascendentes seria “de fato a herdeira necessária do seu ex-companheiro, devendo receber unilateralmente a herança do falecido, incluindo-se os bens particulares, ainda que adquiridos anteriormente ao início da união estável”. Tal decisão, de março de 2018, foi anterior à decisão do STF exarada nos citados embargos declaratórios (em outubro de 2018). No afã de seguir o decisum do STF, o que fez o STJ foi, em verdade, decidir contra legem, em afronta ao texto expresso do artigo 1.845 do Código Civil, que, como se viu, permanece incólume no sistema de direito civil brasileiro. Posteriormente à decisão do STF, tomada nos embargos declaratórios, não poderá o STJ — ou qualquer outro tribunal nacional — volver ao entendimento de que os companheiros são herdeiros necessários, dado não constarem do rol taxativo do artigo 1.845 do Código Civil.
 
Refira-se, novamente, à lição acertada de Regina Beatriz Tavares da Silva, para quem “(a) opção do Código Civil de 2002 sobre direitos sucessórios decorrentes da união estável foi diferente daquela feita em relação ao casamento, de modo que esse diploma legal regulou os direitos sucessórios do companheiro sem atribuir-lhe herança necessária, ou seja, conservando-se a autonomia da vontade a quem vive nessa espécie de entidade familiar”. De fato, alçar o companheiro à condição de herdeiro necessário conota tolhimento da liberdade individual de quem optou por essa forma de família, menos solene que aquela estabelecida pelo casamento. Não haveria mais, na prática, o instituto da união estável. Tal seria, para falar como Rodrigo da Cunha Pereira, “um atentado contra a liberdade das próprias pessoas que escolheram viver em união estável”.
 
A propósito, Mário Luiz Delgado elenca quatro argumentos que considero conclusivos para o deslinde da questão, os quais peço vênia para resumir. São eles:
 
Argumento 1: a qualificação de cônjuge ou de companheiro decorre do atendimento ou não de formalidades ou de exigências exigidas por lei. Enquanto no casamento as formalidades e solenidades integram a substância do ato, sem as quais aquele não ingressa no plano da validade, na união estável inexistem formalidades exigíveis como requisito de validade do ato, ainda que os conviventes desejem formalizar a relação. Da mesma forma, o status de herdeiro necessário também decorre do preenchimento dessas formalidades próprias do casamento, dispondo a lei, de forma explícita, que somente quem possua o estado civil de “casado” portará o título de sucessor legitimário, ostentando a qualificadora restritiva da liberdade testamentária. A situação jurídica de herdeiro necessário guarda relação direta com as formalidades do casamento, única entidade familiar apta a modificar o estado civil, de modo que a não inclusão do companheiro como herdeiro necessário decorre das próprias distinções advindas das normas de formalidade.
 
Argumento 2: o artigo 1.845 do Código Civil é nítida norma restritiva de direitos. Assim, o direito fundamental à herança não pode ser visto apenas sob a ótica do herdeiro, mas deve se pautar também pelos interesses do autor da herança, pois o exercício da autonomia privada integra o núcleo da dignidade da pessoa humana. Se a norma institui restrição ao livre exercício da autonomia privada, restringe a sua liberdade de disposição, constituindo, por isso, exceção no ordenamento jurídico e, conforme as regras ancestrais de hermenêutica, não se pode dar interpretação ampliativa à norma restritiva. Portanto, o rol do artigo 1.845 é taxativo, não sendo permitido ao intérprete ampliar o seu conteúdo.
 
Argumento 3: restringir a liberdade testamentária do autor da herança mostra absoluto descompasso com a realidade social, marcada pela interinidade dos vínculos conjugais, notadamente nas uniões informais, que se formam e se dissolvem mais facilmente que o casamento, sem falar na insegurança jurídica que resultaria da necessidade de reconhecimento judicial post mortem da união estável, muitas vezes em relação de simultaneamente com um casamento válido, como se dá em grande parte das famílias recompostas.
 
Argumento 4: o STF não se manifestou, em momento algum, sobre a aplicação do artigo 1.845 à sucessão da união estável (já tratamos deste argumento, supra). Portanto, os debates travados durante o julgamento levam a concluir que o STF não só não quis assegurar esse status ao companheiro, como expressamente ressalvou a prevalência da liberdade do testador, na sucessão da união estável.
 
À luz do exposto, não restam dúvidas sobre o direito à liberdade testamentária na união estável, à luz do regime de bens fixado pelos conviventes, com a garantia dos respectivos efeitos, permitindo-se regular a sucessão no falecimento com a exclusão do companheiro. Se o companheiro-testador não contar com herdeiros necessários, poderá destinar a totalidade de sua herança a outrem, como a uma fundação etc.
 
Sobretudo quando os companheiros elegem, para a sua união, o regime de separação total de bens, é lícito que, depois da morte do testador, a sua herança seja destinada exclusivamente a quem o testador pretendeu. Se, na dissolução da união em vida — no regime de separação total de bens —, o companheiro não logra a divisão do patrimônio do outro, muito menos haverá de restar com o patrimônio daquele após a sua morte, pois não há “legítima” a ser garantida a quem não ostenta a qualidade de herdeiro necessário.
 
A liberdade testamentária de conviventes em união estável não encontra qualquer restrição na figura do companheiro, que não se equipara ao cônjuge para efeitos de herança necessária. Tal deve ser observado pelos juízes e tribunais quando da análise de testamentos de conviventes em união estável, posto ser ilícita qualquer interpretação diversa. Essa é a ordem estabelecida pela lei brasileira (Código Civil) e por decisão do STF tomada em sede de controle difuso de constitucionalidade. Tollitur quaestio.