1. Nota Prévia ¾ O actual Código Civil português,  no art. 2028.º, impõe, como regra, a proibição dos pactos sucessórios, ao estatuir:
 

” 1. Há sucessão contratual quando, por contrato, alguém renuncia à sucessão de pessoa viva, ou dispõe da sua própria sucessão ou da sucessão de terceiro ainda não aberta.
 
2. Os contratos sucessórios apenas são admitidos nos casos previstos na lei, sendo nulos todos os demais, sem prejuízo do disposto no n.º 2 do artigo 946.” 

 
O caráter bilateral do contrato que titula a sucessão contratual e a consequente dependência do mútuo consentimento dos contraentes, para que ocorra a modificação ou desvinculação ao acordado, tem sido um dos principais motivos da proibição deste tipo de sucessão, uma vez que tem predominado o entendimento segundo o qual o legislador deve:  i) assegurar ao autor da sucessão, até ao fim da sua vida, a liberdade de disposição por morte;  ii) garantir ao sucessível, após a morte do de cuius, a liberdade total na tomada de decisão de aceitar ou repudiar a sucessão.
 
Até à Lei 48/18, de 14 de Agosto, o ordenamento jurídico português apenas  admitia  a celebração válida de pactos sucessórios institutivos, consubstanciadores de doações mortis causa em favor de um dos nubentes ou em favor de terceiro, pelas quais os beneficiários eram, e são, instituídos herdeiros ou nomeados legatários dos disponentes em convenção antenupcial (art. 1700.º, n.º 1, alíneas a) e b)).   
 
De facto, no ordenamento juridico português, desde as Ordenações Afonsinas, eram vedados os pactos sucessórios renunciativos. Mas, a Lei n.º 48/2018, de 14 de Agosto, veio alterar o Código Civil introduzindo no elenco do art. 1700.º do Código Civil uma nova exceção à proibição dos pactos sucessórios – um pacto renunciativo admitido em termos limitados. Em concreto:a renúncia recíproca à condição de herdeiro legitimário, pelos nubentes, em convenção antenupcial.
 
A par desta nova excepção à regra da proibição dos pactos sucessórios, a Lei em apreço também alterou o Código Civil ao fixar um regime especial de redução por inoficiosidade, aplicável às liberalidades feitas a favor do cônjuge sobrevivo renunciante (n.º 2 do art. 2168.º) e ao consagrar, a favor do cônjuge renunciante, um conjunto de direitos sobre a casa de morada de família e respetivo recheio, sem lhe retirar o direito de apanágio.
 
Para a análise e compreensão das alterações introduzidas no Código Civil,   cumpre, previamente, recordar a posição sucessória que legalmente é atribuída ao cônjuge, caso os nubentes não exerçam a faculdade que agora lhes reconhecida.
 
É o que faremos de seguida. Só depois analisarmos: os pactos sucessórios renunciativos previstos na alínea c) do n.º 1 do art. 1700.º; a solução especial prevista no n.º 2 do art. 2168.º; a proteção sucessória que é legalmente prevista para o cônjuge sobrevivo renunciante e que respeita ao direito de habitação da casa de morada de família e ao direito de uso do respetivo recheio. 
 
2.  A posição sucessória que legalmente é atribuída    ao cônjuge  – caso os nubentes não exerçam a faculdade que agora lhes é reconhecida pela Lei n.º 48//2018, de 14 de Agosto – foi a fixada, essencialmente, pelo Decreto-Lei n.º 496/77, de 25 de Novembro ¾ Através do  diploma que procedeu à designada reforma de 77, a posição sucessória    do cônjuge foi muitíssimo fortalecida. Efectivamente, a partir de então, o cônjuge tornou-se herdeiro legitimário (art. 2157.º) e passou a integrar as primeiras classes dos herdeiros legítimos, sendo  chamado à sucessão legitimária e legítima do de cuius, a par dos descendentes se os mesmos existirem, ou dos ascendentes, no caso de não existirem descendentes,  ou sozinho, na  falta de descendentes e ascendentes. Podendo tal, destaque-se, influenciar na extensão da quota indisponível (1/2 ou 2/3) e da quota disponível  (1/2 ou 1/3). E, isto, independentemente do regime de bens do casamento, ou seja, o cônjuge sobrevivo tornou-se herdeiro, nos termos acabados de referir, quer o casamento seja celebrado no regime da comunhão geral de bens, no regime da comunhão de adquiridos, no regime da separação – por escolha ou por imposição legal -, num regime em misto ou num regime atípico.
 
Acresce que, em benefício do cônjuge sobrevivo – independentemente do regime de bens do casamento -, o legislador em determinados casos previu o afastamento da regra da divisão por cabeça. Assim, em caso de concurso com mais de três descendentes, ao cônjuge caberá ¼ da legítima global, na sucessão legitimária, e ¼ da quota disponível que haja a partilhar, segundo as regras da sucessão legítima (art. 2139.º, n.º 1, 2.ª parte).  Por seu turno, em caso de concurso com os ascendentes, a divisão é sempre desigual, cabendo ao cônjuge  2/3 e aos ascendentes 1/3  das quotas  – legitimária e legítima  – a partilhar (art. 2142.º, n.º 1).
 
Com a reforma de 77, foram também consagradas, a favor do cônjuge sobrevivo, as atribuições preferenciais previstas no art. 2013.º-A e seguintes. Ou seja, o direito a ser encabeçado no direito de habitação da casa de morada de família e no direito de uso  do respetivo recheio (para concretizar a parte que lhe cabe como herdeiro legitimário e a meação que lhe caiba no património comum – quando exista). Tendo-se mantido o direito de apanágio, consagrado no art. 2018.º.
 
Por fim, não obstante a polémica doutrinal, segundo a melhor doutrina e jurisprudência, o cônjuge não está sujeito à colação e ainda beneficia da igualação. 
 

2.1.   Crítica à posição sucessória que é legalmente atribuída    ao cônjuge não renunciante ¾ A posição sucessória do cônjuge, nos termos em que foi reforçada pela Reforma de 77, à época, não mereceu o aplauso de toda a doutrina portuguesa e, com o decurso dos anos, passou a merecer duras críticas. De entre elas destacamos as seguintes:  um estatuto sucessório reforçado, pode constituir um entrave à celebração de um (novo) casamento, nomeadamente por quem já tenha descendentes (sobretudo se não forem comuns), na verdade, atribuindo-se ao cônjuge o direito a ser encabeçado no direito  de propriedade sobre os bens do consorte falecido, gera-se a possibilidade de os bens integrados no património hereditário mudarem de linha familiar    (de sangue), em detrimento da proteção da troncalidade; a protecção concedida ao cônjuge sobrevivo, se esteve em consonância com um quadro social passado, de maior dependência do casamento, revela-se hoje desconforme com a atual realidade emancipatória dos cônjuges e com a centralidade que as relações entre pais e filhos têm vindo a assumir; em tempos em que o casamento vale o que valerem os cônjuges não parece haver razões que justifiquem que o casamento “valha necessariamente uma herança”.

 
3. Os pactos renunciativos recíprocos previstos no art. 1700.º, n.º 1, alínea c) do Código Civil  ¾ Os pactos renunciativos recíprocos são actos que pressupõem a participação dos dois nubentes, que neles intervêm como partes.
 
Em causa estão duas declarações negociais que encontram a sua causa uma na outra e convergem no sentido da formação de um contrato (sucessório).  
 
A intervenção de cada um dos  esposados, no âmbito desta estipulação, dá-se como parte negocial que, em simultâneo, renuncia e aceita a renúncia da outra parte. Portanto, estamos longe de um negócio jurídico unilateral, como ocorre na renúncia em geral.
 
O efeito jurídico imediato dos pactos em apreço é o de impedir a designação sucessória como herdeiro legitimário. 
 

3.1.  Requisitos de validade dos pactos sucessórios renunciativos previstos no art. 1700.º, n.º 1, al. c)  ¾ A lei faz depender a validade da celebração dos pactos sucessórios renunciativos, previstos no art. 1700.º, n.º 1, al. c),  da reunião cumulativa do seguinte conjunto de requisitos:
 
i. A celebração do casamento dos renunciantes sob o regime de separação de bens (art. 1700.º, n.º 3) ¾ O legislador português entendeu que o interesse em excluir a produção de (certos) efeitos sucessórios decorrentes do estatuto do cônjuge só merece tutela quando, no plano     matrimonial, vigore – por escolha ou imposição (nos termos do art.1720.º do CC) – aquele regime de bens    que envolve maior autonomia patrimonial entre os cônjuges.
 
ii. A reciprocidade da renúncia ¾  Apenas se admite a validade do pacto renunciativo entre nubentes quando a renúncia é recíproca. A exigência da reciprocidade da renúncia resulta expressamente da letra do art. 1700.º, n.º 1, al. c).

 
O requisito da reciprocidade explica-se sobretudo pelo princípio da igualdade entre os cônjuges – proclamado no art. 36.º, n.º 3 da Constituição da República Portuguesa e pela diretriz imposta pelo art. 1671.º, n.º 1 do Código Civil: “o casamento baseia-se na igualdade de direitos e deveres dos cônjuges” – e visa impedir desequilíbrios patrimoniais entre os cônjuges.
 
No entanto, bem sabemos que só um dos fenómenos sucessórios (o do cônjuge que morra em primeiro lugar) será marcado decisivamente pela renúncia, já que quanto ao outro (o do consorte que faleça em segundo lugar), o não chamamento sucessório resultará da prévia dissolução do casamento pela  morte que, consequentemente, extinguirá o estatuto de cônjuge. Por outra via, apesar da reciprocidade da renúncia, a ordem das mortes determinará o real significado do ato sucessório renunciativo efetuado ao  abrigo do art. 1700.º, n.º 1, al. c). Em síntese, em termos práticos, só um dos cônjuges poderá suceder ao outro e, portanto, haverá uma inevitável unilateralidade.
 
Acresce que, dados sociológicos indicam que, num casamento heterossexual, com frequência, a mulher é o cônjuge sobrevivo. Na verdade, nas últimas cinco décadas, as informações demográficas existentes, permitem chegar à conclusão de que existe uma diferença  de cerca de seis anos na esperança de vida entre homens e mulheres, em favor destas. Ora, tal realidade pode,  também em termos práticos, desequilibrar a renúncia recíproca.
 
Por fim, a lei prevê, no art. 1707.º-A, n.º 1, a  possibilidade de a renúncia ser condicionada em termos unilaterais, à sobrevivência ou não de sucessíveis de qualquer classe, bem como de outras pessoas. O que, obviamente, pode perturbar a concretização da efetiva bilateralidade dos efeitos jurídicos produzidos pelo pacto renunciativo e, consequentemente, colocar em causa o princípio da  igualdade que presidiu à redação do art. 1700.º, n.º 1, al. c).
 

iii. As exigências de forma e de tempo de celebração ¾ Prevêem-se, também, requisitos de forma, de publicidade e de tempo, que resultam da exigência de o pacto renunciativo ter de ser integrado a convenção antenupcial.

 
A saber:
 

¾  Quanto à forma, o pacto renunciativo deve constar de    convenção antenupcial celebrada em cartório notarial, por escritura pública, ou nas conservatórias do registo civil, por meio de declaração prestada perante conservador ou oficial de registo em que o aquele delegue essa competên cia (art. 189.º, n.º 1 do Código de Registo Civil). Da inobservância da forma resulta a nulidade da convenção antenupcial e, portanto, do pacto renunciativo nela contido, nos termos do art. 220.º, beneficiando os cônjuges do estatuto sucessório privilegiado.
 
¾  Quanto à publicidade, para que as estipulações contidas nas convenções matrimoniais produzam efeitos jurídicos em relação a terceiros (art. 1711.º, n.º 1 do Código Civil e art. 1.º, n.º 1, al. e) do Código do Registo Civil), e de entre elas, o pacto renunciativo, hão de ser susceptíveis de por eles serem conhecidas, mediante a publicidade registal.
 
¾ Quanto ao tempo, a faculdade, conferida pelo art. 1700.º, n.º 1, al. c), do Código Civil, só pode ser exercida antes da celebração do contrato de casamento dos nubentes renunciantes, devendo ser respeitado o lapso máximo  de um ano de antecedência em relação a esse momento, sob pena de caducidade do ato (art. 1716.º do Código Civil). Consequentemente, os cônjuges que celebraram casamento antes da entrada em vigor desta lei estão desprovidos desta faculdade e aqueles que, podendo recorrer a esta faculdade, não o fizeram, já não poderão  realizar um pacto renunciativo, mesmo que, por exemplo, venha a ocorrer o nascimento ou o reconhecimento de um filho. 
 

4. As liberalidades a favor do cônjuge renunciante e a redução por inoficiosidade – a solução do novo n.º 2 do art. 2168.º do Código Civil  – A lei n.º 48/2018, de 14 de Agosto, alterou o art. 2168.º do Código Civil, sob a epígrafe “liberalidades inoficiosas”, introduzindo-lhe um n.º 2, onde se pode ler:
 

“Não são inoficiosas as liberalidades a favor do cônjuge sobrevivo que tenha renunciado à herança nos termos da alínea c) do n.º 1 do art. 1700.º,  até à parte da herança correspondente à legítima do cônjuge caso a renúncia não existisse”.

 
Este preceito legal visa atenuar os efeitos jurídicos associados à celebração do pacto renunciativo entre nubentes.
 
Concordamos, portanto, com Parecer do Conselho Consultivo do Instituto dos Registos e do Notariado 84/18 STjSR-CC, de 15 de Novembro de 2018, no qual se pode ler “a razão de ser desta norma consiste em permitir que, por via de liberalidades entre os cônjuges – que, contudo, não são necessariamente recíprocas – possam ser mitigados os efeitos da renúncia antecipada à condição de herdeirolegitimário do outro cônjuge (.)”.
 
Ou seja, esta norma cria uma espécie de escudo protetor, que blinda as liberalidades feitas a favor do cônjuge renunciante, contra a redutibilidade por  inoficiosidade até à medida correspondente à legítima subjectiva a que teria direito caso a renúncia não tivesse ocorrido. O mesmo é dizer que as liberalidades feitas a favor do cônjuge sobrevivo renunciante, desde que sejam de valor igual ou inferior à legítima subjectiva a que teria direito, se não houvesse renunciado, não podem ser reduzidas por inoficiosidade. Cria-se, assim, uma legítima subjectiva virtual a favor do cônjuge renunciante.
 
Consequentemente, a legítima dos herdeiros legitimários não será preenchida  à custa das liberalidades feitas em benefício do cônjuge sobrevivo renunciante, dentro do perímetro fixado no n.º 2 do art. 2168.º, a saber: o montante da legítima subjectiva do cônjuge caso a renúncia não tivesse ocorrido.
 
Se a liberalidade a favor do cônjuge renunciante ultrapassar o valor da legítima virtual, o excesso será suscetível de   redução, como acontece com as demais liberalidades que excedam a quota disponível, aplicando-se as regras e ordem previstas no art. 2171.º e ss.
 
Em consequência da aplicação do art. 2168.º, n.º 2, no limite, ocorrerá a reposição do resultado patrimonial que se  verificaria se não tivesse sido celebrado o pacto sucessório. Ou, por outra via, a aplicação do art. 2168.º, n.º 2 permitirá uma  reversão (total ou parcial) dos efeitos do pacto renunciativo.
 
 Os herdeiros legitimários (os que concorreriam com o cônjuge se ele não tivesse renunciado) receberão sempre pelo menos o que receberiam se não tivesse havido renúncia.
 

5.       A Proteção Sucessória Legalmente Prevista para o Cônjuge Sobrevivo Renunciante  – Em primeiro lugar, ao consorte sobrevivo é atribuído o direito de habitação do imóvel onde se situava a casa de morada de família e o direito de uso sobre o respetivo recheio (n.os 3 a 6 e 10 do art. 1707.º-A,).

 
 Em causa estão dois direitos reais menores intuito personae previstos nos art. 1484.º e ss. do Código Civil.
 
A duração destes direitos corresponderá, em regra, a cinco anos. Mas, se o cônjuge sobrevivo tiver completado sessenta e cinco anos de idade à data da abertura da sucessão, o direito de habitação da casa (não o direito de uso) será vitalício.
 
Findo o período,  por que o cônjuge sobrevivo renunciante beneficia do  direito real de habitação, é-lhe reconhecido o direito de permanecer no imóvel na qualidade de arrendatário, nas condições gerais do mercado.
 
O cônjuge sobrevivo poderá, portanto, exercer um direito potestativo à celebração do contrato de arrendamento (n.º 7 do art. 1707.º-A). Direito este que se impõe ao(s) sucessível(is) que venham a adquirir o imóvel     , a menos que este(s) satisfaça(m) os requisitos legalmente exigidos para a denúncia, pelo senhorio, do contrato de arrendamento para habitação.
 
Os termos do contrato de arrendamento  devem ser estipulados por negociação das partes, à luz das condições gerais do mercado. Mas, na ausência de acordo, o tribunal pode ser chamado a     intervir para definir os termos contratuais, após audição dos interessados (n.º 8 do art. 1707.º-A).
 
Acresce que, enquanto o contrato não se encontrar celebrado, o cônjuge pode permanecer no imóvel, com base no direito pessoal de gozo legalmente previsto na parte final do n.º 7 do art. 1707.º-A.  
 
Na hipótese de o contrato de arrendamento já ter sido celebrado, ao abrigo do disposto na referida disposição legal, antes do imóvel ser alienado a um terceiro, o cônjuge sobrevivo pode opor a sua posição contratual de arrendatário ao adquirente, à luz da regra “emptio non tollit locatum” (art. 1057.º do C.C.).
 
Finalmente, prevê-se, no n.º 9, in fine, do art. 1707.º, em benefício do cônjuge     sobrevivo renunciante, durante todo o período em que o cônjuge o habitar e “a qualquer título”, o direito legal de preferência em caso de alienação do imóvel onde se situava a casa de morada de família.