A função social da propriedade, em cada caso, seguirá o destino adequado do bem imóvel porquanto, como dizia a Constituição brasileira de 1946, no art. 147: “O uso da propriedade será condicionado ao bem-estar social”
 
O tema, por certo, é antigo mas continua sempre atual. Na economia, muitos estudiosos postulam a eliminação da distinção entre imóvel urbano e imóvel rural diante do modo de produção capitalista, que os unificou em termos de exploração econômica. É que o capitalismo nasceu nas feiras livres, nos mercados medievais, atividades urbanas por excelência, e só depois avançou para o campo – e o invadiu. Exemplo claro disso é o do agronegócio em expansão em atividades agropecuárias, que significa a implantação e afirmação do regime de empresa mercantil no mundo rural. Outro exemplo é o da igualdade substancial entre trabalhador urbano e rural promovida pela Constituição Federal de 1988 (art. 7º), ao contrário do que ocorria no passado.
 
Marx e Engels, no Manifesto do Partido Comunista, de 1848, já previam a supressão paulatina da diferença entre cidade e campo, uma vez que a agricultura e a indústria seriam unificadas. Se, do ponto de vista econômico, isto é correto, do ponto de vista jurídico ainda se manifestam diversos pontos de divergência e dissintonia entre campo e cidade, entre lote e prédio rústico, entre zona urbana e zona rural, que iremos aqui arrolar para demonstrar que esta diferenciação ou classificação ainda faz todo sentido no ordenamento jurídico brasileiro por suas múltiplas implicações. Iremos indicar apenas algumas delas porque há inúmeras diferenças entre ambos os imóveis, determinando regime jurídico bastante diferenciado.
 
1. A legislação sobre solo urbano é nitidamente municipal tal como dispõe o art. 30/VIII da Constituição Federal – que estabelece a competência para o ente local promover o ordenamento do solo urbano a partir do documento central que é o plano urbanístico diretor. Já a legislação sobre solo rural é prevalentemente federal, envolvendo tributação, política agrícola, reforma agrária, cadastro fundiário, etc (arts. 184-191 da CF);
 
2. Quanto à destinação, o solo urbano destina-se ao assentamento populacional e ao sistema viário – e o solo rural destina-se à produção agrícola, pecuária, extrativa, etc. Nesse sentido, o art. 4º/I do Estatuto da Terra, de 1964, conceitua imóvel rural como “o prédio rústico, de área contínua, qualquer que seja a sua localização, que se destina à exploração extrativa agrícola, pecuária ou agroindustrial”. Este importante conceito legal adota claramente o critério da destinação ou da vocação para caracterização do imóvel rural e, portanto, mesmo em zona urbana poderá haver imóveis com fins rurais (ou vice-versa);
 
3. Tanto aquilo é certo (ou seja, tanto o imóvel rural é vocacionado à produção), que a usucapião especial rural exige a moradia e a produção no imóvel pretendido (art. 191 da CF), enquanto a usucapião especial urbana só exige a moradia do interessado ou de sua família no imóvel sobre o qual se tem posse (art. 183 da CF);
 
4. O imóvel urbano – chamado de lote – é composto por terreno acrescido de infraestrutura uma vez que ele precisa estar ligado à infraestrutura viária, energética e sanitária para garantir a dignidade da vida urbana (art. 5º/§ 4º da Lei 6766/79). O que caracteriza a cidade, em tal sentido, é a densidade da infraestrutura urbana e comunitária existente. Já a infraestrutura de imóvel rural é de outra ordem identificando-se com a primeira sobretudo quanto ao sistema viário de acesso à propriedade e ao sistema energético;
 
5. Quanto à localização, o solo urbano encontra-se delimitado pelo perímetro urbano – que delimita a zona urbana e é definido em lei municipal ou, mais especificamente, no plano urbanístico diretor – enquanto o solo rural define-se por exclusão, a partir do primeiro: no território municipal, tudo o que não for zona urbana será, residualmente, zona rural. Assim, a lei disciplinadora do ITR (lei 9.393/96), contemplando o critério da localização diz logo no art. 1º que “o Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural – ITR, de apuração anual, tem como fato gerador a propriedade, o domínio útil ou a posse de imóvel por natureza, localizado fora da zona urbana do município, em 1º de janeiro de cada ano”;
 
6. No entanto, voltando à destinação (v. tópico 2), a jurisprudência pacífica atenua o critério da localização para definir o imóvel rural. Assim entende o Tribunal de Justiça de São Paulo: “aos municípios se confere o direito de arrecadar o IPTU dos imóveis situados em zona urbana, definida em lei municipal, qualquer que seja sua destinação, ressalvados aqueles utilizados em exploração extrativa vegetal, agrícola, pecuária ou agroindustrial, sobre os quais incide o Imposto Territorial Rural” (Ap. 1011792-85.2019.8.26.0577, j. em outubro de 2020). No mesmo sentido, com maior fundamentação, julgado mais recente, de novembro de 2021: “Frise-se que o simples fato de estar inserido em zona urbana não permite a cobrança do IPTU, se devidamente comprovada a destinação agrícola do imóvel, pois o critério da destinação econômica prevalece sobre o critério topográfico” (Ap. 1512244-33.2019.8.26.0320);
 
7. No que refere à tributação, o imóvel rural é tributado pelo ITR – Imposto Territorial Rural, de competência federal, que tem alíquotas progressivas de acordo com o grau de utilização da terra uma vez que grava um empreendimento econômico. Na forma do disposto na lei 9.393/96, o grau de utilização é “a relação percentual entre a área efetivamente utilizada e a área aproveitável”. Já o imóvel urbano, o lote, é tributado pelo IPTU – Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana, de competência municipal. O IPTU também pode ter alíquotas progressivas fiscais e extrafiscais com base, respectivamente, nos arts. 156/§ 1º e 182/§ 4º da CF. Grife-se: ITR e IPTU são impostos imobiliários que incidem sobre imóveis distintos não podendo coincidir, o que seria bitributação;
 
8. No que refere aos espaços territoriais especialmente protegidos por razões ambientais, apenas o imóvel rural deve ter Reserva Florestal Legal, que assegura o “uso econômico de modo sustentável dos recursos naturais do imóvel rural” (v. art. 12 do “Código Florestal” de 2012). E tal “Código” ainda afirma que esta reserva deixa de existir tão logo o imóvel se transforme em imóvel urbano mediante o registro do parcelamento do solo para fins urbanos (art. 19 da mesma lei). Também o CAR – Cadastro Ambiental Rural só é exigido, por certo, de imóvel rural para apuração de seu eventual passivo ambiental (art. 29 do “Código Florestal”);
 
9. Agora uma identidade: no que tange à APP – Área de Preservação Permanente, os imóveis se igualam porque tal espaço ambiental existe para a proteção de um bem ambiental, notadamente a água: são as APPs hídricas. Assim, o art. 4º do “Código Florestal”, resolvendo antiga polêmica, diz que elas existem “em zonas rurais ou urbanas”, indistintamente. Neste sentido, em abril de 2021, o STJ fixou a tese: “Na vigência do novo Código Florestal (lei 12.651/2012), a extensão não edificável nas Áreas de Preservação Permanente de qualquer curso d'água, perene ou intermitente, em trechos caracterizados como área urbana consolidada, deve respeitar o que disciplinado pelo seu art. 4º, caput, inciso I, alíneas a, b, c, d e e, a fim de assegurar a mais ampla garantia ambiental a esses espaços territoriais especialmente protegidos e, por conseguinte, à coletividade ” (Tema repetitivo 1010);
 
10. Depois desse julgamento do STJ, em resposta, o Congresso Nacional aprovou, em dezembro de 2021, projeto de lei que transforma a disciplina das APPs urbanas em matéria de competência municipal (PL 2510/19). Se a lei derivou de um “conflito entre poderes”, a solução encontrada parece um claro equívoco porque a APP hídrica existe em função da água, ou seja, existe com “a função ambiental de preservar os recursos hídricos” (art. 3º/I do “Código Florestal”). E, assim, não se trata de ordenação do espaço urbano mas, bem ao contrário, a ordenação do solo é que deve respeitar as condicionantes ambientais porquanto o quadro natural precede o ambiente construído. Portanto, parece que a nova lei não passa no teste da constitucionalidade que por certo se seguirá em nome da proteção dos bens ambientais;
 
11. Quanto ao sistema registral imobiliário, apenas o imóvel rural deve ser georreferenciado, com base na lei 10.267/01, uma vez que o lote, com área bem menor, é mais facilmente localizável a partir de seu endereço e confrontações, sem necessidade de os vértices definidores de seus limites estarem amarrados ao Sistema Geodésico Brasileiro (embora isso seja algo que, sem dúvida, acontecerá num futuro próximo). O princípio da especialidade objetiva é, então, aprimorado, aperfeiçoado, em se tratando apenas de imóvel rural;
 
12. O cadastro de imóveis rural é de responsabilidade do INCRA – uma autarquia federal responsável pelo ordenamento da estrutura fundiária do país – mas o cadastro imobiliário urbano é de responsabilidade dos Municípios uma vez que se trata de solo urbano, que o poder local organiza (v. tópico 1). O cadastro de imóveis rurais compõe o Sistema Nacional de Cadastro Rural que gera o CCIR – Certificado de Cadastro de Imóvel Rural, cujo código deve constar das fichas de matrícula dos Serviços Registrais Imobiliários, assim como o número do cadastro municipal, em se tratando de imóvel urbano (“designação cadastral, se houver”, diz a lei de registros);
 
13. A locação de imóvel residencial ou comercial não tem, a rigor, prazo mínimo previsto na lei (cf. art. 3º da lei 8.245/91), mas o arrendamento de imóvel rural, contrato agrário regido por norma distinta (Decreto 59.566/66, art. 13/II), tem prazo mínimo de três, cinco ou sete anos, conforme o caso, exatamente porque o imóvel se destina à produção. Assim, aquela norma determina, por exemplo, prazo mínimo de cinco anos “nos casos de arrendamento em que ocorra atividade de exploração de lavoura permanente e ou de pecuária de grande porte para cria, recria, engorda ou extração de matérias primas de origem animal” (carne, leite, couro). Cogente, este prazo mínimo legal não poderá ser modificado por vontade das partes.
 
Haverá muitos outros temas que separam o regime jurídico do imóvel urbano daquele regime jurídico do imóvel rural (módulo rural, fração mínima de parcelamento, índices urbanísticos, etc), mas, para fins apenas da demonstração da importância dessa distinção perante o Direito Fundiário, os dez (ou onze) pontos acima serão bastantes, dispensando maiores extensões. A função social da propriedade, em cada caso, seguirá o destino adequado do bem imóvel porquanto, como dizia a Constituição brasileira de 1946, no art. 147: “O uso da propriedade será condicionado ao bem-estar social”, seja ela classificada como urbana ou rural.