A noção de acesso à justiça precisa transpor os muros do Poder Judiciário, de modo que o jurisdicionado brasileiro, no século XXI, não seja compelido a acionar os tribunais para que consiga ter os seus litígios solucionados. Essa frase é entoada, quase que como em uníssono, nos dias atuais. Não obstante, verifica-se desconfortável discrepância entre teoria e prática.
 
O Relatório Justiça em Números de 2021, elaborado pelo CNJ, noticia o abarrotamento do Poder Judiciário, que ostenta taxa de congestionamento bruta na ordem de 75%.
 
Os índices relativos à solução consensual tampouco despertam otimismo. Havia, na justiça estadual, ao final de 2020, 1.382 CEJUSCs – Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania – responsáveis pela promoção da justiça coexistencial junto aos tribunais brasileiros -, número efetivamente maior do que o apurado no ano anterior, mas flagrantemente insuficiente para abarcar todo o país, que é atualmente composto por 5.568 municípios, segundo o IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.
 
Em 2020, apenas 9,9% das sentenças judiciais foram homologatórias de acordo, seja na fase de conhecimento ou de cumprimento/execução. Trata-se de indicador extremamente tímido para fazer jus à afirmação de abertura do presente trabalho, mais ainda para concretizar o paradigma traçado pelo legislador no art.3º do CPC, ao privilegiar a solução consensual (negociação, conciliação e mediação) em detrimento da solução adjudicada (processo judicial ou arbitral).
 
Por outro lado, se, até alguns anos atrás, seria possível – ao menos em tese – que o operador do direito creditasse o problema à ausência de regulamentação legal, hoje isso não é mais viável, diante do advento da lei Federal 13.140/15, que regulamentou a mediação, e do CPC, que previu a mediação e a conciliação em diversas passagens.
 
A análise conjugada de tais dados permite concluir que não basta a existência de um marco legal da mediação no Brasil, nem tampouco que o legislador reconheça expressamente a importância das soluções consensuais de resolução de conflitos para que automaticamente a realidade de nosso sistema de justiça seja alterada.
 
A concretização da Justiça Multiportas em nosso país depende de múltiplos esforços e iniciativas que, somados, tenham o condão de reverter a tradição secular de relegar a solução dos conflitos indistintamente ao Poder Judiciário. Não se trata, pois, de uma solução mágica, mas da conjugação de esforços surgidos em diferentes frentes deste país continental.
 
Nesse contexto, merece aplauso a precursora iniciativa do Conselho da Justiça Federal no sentido de promover, em 2021, a segunda edição da Jornada de Prevenção e Solução Extrajudicial de litígios, que, sob a Coordenação Científica dos ministros do STJ Luis Felipe Salomão e Paulo de Tarso Sanseverino, desenvolveu os seus trabalhos em quatro Comissões, a saber: arbitragem, mediação, desjudicialização e novas formas de solução de conflitos e novas tecnologias.
 
Foram recebidas dezenas de propostas de enunciados vindas de todo o Brasil, as quais foram meticulosamente analisadas pelos membros da respectiva comissão temática. As propostas pré-aprovadas pela Comissão foram submetidas à reunião plenária, que congregou os membros de todas as quatro Comissões, bem como os autores das propostas pré-aprovadas. Na Reunião Plenária, foram debatidas, uma a uma, cada qual das propostas pré-aprovadas pelas Comissões e, após cada debate, a respectiva proposta foi submetida a votação eletrônica.
 
Compuseram a reunião plenária dezenas de especialistas de diferentes partes do país e que atuam em diversas carreiras jurídicas, a saber, magistratura, advocacia pública e privada, MP, serventias extrajudiciais, etc.
 
A abertura para o recebimento de propostas da comunidade jurídica em geral, a acuidade em seu exame pela comissão temática e o amplo debate na reunião plenária a que foram submetidas as propostas revelam o lastro acadêmico das Jornadas e, por conseguinte, a relevância dos Enunciados aprovados.
 
O engajamento de dezenas de profissionais e juristas em torno da pauta de efetivamente cunhar soluções factíveis para incrementar a prevenção e a solução extrajudicial de conflitos no Brasil, sem descurar da fundamental garantia insculpida no art. 5°, XXXV da CF/88, representa uma iniciativa séria, que merece estudo e análise, para que o seu conteúdo seja conhecido pela comunidade jurídica brasileira e, a partir de então, possa ser concretamente aplicada diuturnamente em todo o país.
 
Os Enunciados aprovados na II Jornada de Prevenção e Solução Extrajudicial de litígios do CJF consistem em um importante passo para tornar a Justiça Multiportas realidade, pois congregam não apenas a melhor base teórica, mas, acima de tudo, oferecem grande aptidão para a sua aplicabilidade prática. Compõem um ferramental indispensável para a confecção de um sistema de justiça plural, que abarque, mas não se esgote no Poder Judiciário, que coordene sadia e democraticamente as diferentes carreiras jurídicas previstas na Constituição Federal, de modo que cada qual delas se enxergue como protagonista de um novo paradigma de justiça coexistencial, plasmada no diálogo como eixo central.
 
Os Enunciados da II Jornada do CJF emanaram de uma composição plural, o que lhes confere particular legitimidade, visto que a sua aplicabilidade se dará por uma composição diversificada de operadores do direito, com a finalidade precisamente de sedimentar um sistema de justiça cada vez mais atento à alteridade, em que o acesso à justiça seja possível por meio de diferentes mecanismos de solução de conflitos, diferentes entre si – e é desejável que assim seja, devendo-se nortear a escolha pelo princípio da adequação -, mas nem por isso hierarquizados ou com graus díspares de legitimidade democrática ou mesmo dissonantes da observância ao devido processo legal.
 
A imediata intervenção do Poder Judiciário deixa de ser uma condição sine qua non para o acesso à ordem jurídica justa e os Enunciados da II Jornada do CJF oferecem um precioso mapa para que se logre encontrar o caminho para a Justiça Multiportas.
 
Inúmeros seriam os Enunciados aprovados que mereceriam destaque – e consigna-se aqui o convite para que o leitor acesse a íntegra do documento -, mas, a fim de não transpor os limites do presente trabalho, destacam-se alguns Enunciados oriundos da Comissão de Mediação e da Comissão de Desjudicialização, que honrosamente os autores compuseram.
 
Quanto à Comissão de Desjudicialização, presidida pelos professores Humberto Theodoro Junior e Helena Lanna e que teve como relatores os professores Trícia Navarro e Heitor Sica, destacam-se, em primeiro lugar, os Enunciados 120 e 127, que reconhecem a admissibilidade da retomada ao nome de solteiro e a inclusão do sobrenome do cônjuge a qualquer tempo, na constância da sociedade conjugal ou depois de decretado o divórcio, por requerimento ao registro civil de pessoas naturais, independentemente de autorização judicial. Isso porque, conforme reconhecido pelo STJ, o nome consiste em direito da personalidade, cabendo, pois, ao próprio sujeito manifestar, perante o registrador civil, a sua vontade de alterar o seu patronímico, sendo certo que essa informação será prestada, pelos cartórios extrajudiciais, aos órgãos públicos, como sói ocorrer nas alterações de nome realizadas no âmbito extrajudicial em geral.
 
O Enunciado 125, por seu turno, sublinha a possibilidade de a cooperação interinstitucional ser realizada entre órgãos judiciais e serventias extrajudiciais, com vistas à prática dos mais diversos atos previstos no art. 6º da Resolução 350 do CNJ, dentre os quais atos de comunicação e atos de produção de provas. A cooperação interinstitucional entre o Poder Judiciário e as serventias extrajudiciais contribui para a economia processual, visto que promove a coordenação de esforços e o melhor aproveitamento de atos praticados na esfera extrajudicial.
 
O Enunciado 128 reconhece a admissibilidade de formalização da união estável por meio de registro, no livro E do Registro Civil de Pessoas Naturais, de instrumento particular que preencha os requisitos do art. 1.723 do CC/02, tendo em vista que, em homenagem à autonomia da vontade e à liberdade das formas, podem os interessados, facultativamente, conferir publicidade e segurança jurídica à união estável diretamente perante o oficial registrador, cabendo-lhe promover o respectivo registro do ato no livro previsto em lei (art. 33, § único, da lei de Registros Públicos), dispensando-se, assim, a intervenção judicial.
 
O Enunciado 130 contempla a admissibilidade do requerimento pelo interessado “de alteração de seu prenome, no primeiro ano após ter atingido a maioridade civil, diretamente perante o registro civil de pessoas naturais, independentemente de decisão judicial, na forma do art. 56 da lei 6.015/73”. Com efeito, o pouco conhecido, mas muito útil art. 56 da lei de Registros Públicos autoriza à pessoa natural, estritamente no primeiro ano após atingida a maioridade civil, requerer a alteração de seu nome, sendo desnecessário, segundo a lei, nesse lapso temporal, apresentar motivação. A norma em comento em momento algum exige a intervenção judicial para tanto, razão pela qual se mostra correto admitir que o interessado acesse diretamente o registro civil de Pessoas naturais que, uma vez reconhecendo a sua identidade e a sua livre manifestação de vontade, possa, no prazo previsto em lei, providenciar a averbação legalmente autorizada, prescindindo, nessa hipótese, da intervenção do Poder Judiciário, conforme, a propósito, já se encontra previsto em normas da Corregedoria de alguns entes federativos, como São Paulo.
 
No que tange à Comissão de Mediação, presidida pelo ministro Marco Buzzi e pelos Professores Kazuo Watanabe e Flavio Tartuce, e que teve como Relatores os Professores Juliana Loss e Humberto Dalla, destaca-se, primeiramente, o Enunciado 161, ao chamar a atenção para que o conceito de acesso à justiça, previsto no art. 5º, inciso XXXV, da CF/88, “não se esgota no acesso formal ao Poder Judiciário, compreendendo a existência de um sistema organizado e efetivo destinado à garanti de direitos, prevenção de conflitos e resolução pacífica das controvérsias”, o que se coaduna, à perfeição, com a principal premissa do presente trabalho. Aferrar-se ao limitado conceito de acesso à justiça como sinônimo de acesso ao Poder Judiciário, gerando a equivocada percepção de que o princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional se esgota na jurisdição estatal enquanto prima ratio consiste no primeiro grande óbice à concretização da Justiça Multiportas que precisa ser superado. É, na verdade, uma questão cultural que passou a ostentar o status de política pública de tratamento adequado de conflitos, como bem anota o Prof. Kazuo Watanabe.
 
O Enunciado 163 traz proveitosa sugestão, no sentido de que seja celebrada convenção processual que preveja cláusulas escalonadas de produção antecipada de prova seguida de mediação ou negociação entre as partes. Isso porque os litigantes, devidamente esclarecidos a partir das provas produzidas, terão melhores condições para dialogar em bases sólidas com vistas a encetar um acordo que efetivamente lhes pareça justo e atenda a seus legítimos interesses. Não raro, as informações obtidas na produção de provas serão fulcrais para que os litigantes se sintam seguros e confortáveis para celebrar um acordo.
 
O Enunciado 165, por seu turno, propala a salutar possibilidade do emprego de meios de autocomposição na fase de cumprimento de sentença, em caso de inadimplemento total ou parcial da obrigação prevista no título executivo judicial. Sabendo-se que a taxa de congestionamento na execução alcança patamares ainda mais dramáticos do que na fase de conhecimento, afigura-se de todo benfazeja a iniciativa de conclamar os operadores do Direito a se valer dos métodos autocompositivos inclusive e especialmente na fase de cumprimento/execução, desmistificando a ideia de que o acordo seria adequado para promover o acertamento da relação jurídica e não para regular a forma de cumprimento da obrigação em caso de inadimplemento.
 
O Enunciado 167, com propriedade, destaca a adequação da mediação extrajudicial para fins de planejamento sucessório sobre conteúdo patrimonial e extrapatrimonial, tendo em vista o seu potencial de prevenção dos conflitos entre herdeiros. Com efeito, a relação entre os herdeiros é de trato sucessivo, sendo, no mais das vezes, parentes, e envolvendo grande carga emocional. Sendo assim, a mediação, mais do que qualquer outro método, se predispõe a lidar com todas as variáveis, de modo a perfazer um planejamento sucessório que efetivamente condiga com os interesses e as peculiaridades de cada herdeiro.
 
A II Jornada promovida pelo CJF representa a corajosa iniciativa de demonstrar ser possível adotar medidas concretas que, paulatinamente, construam um sistema de justiça mais plural, amplo, coordenado e democrático, que não se limite ao Poder Judiciário ou tenha nele o seu protagonista, mas que efetivamente disponibilize ao jurisdicionado mecanismos extrajudiciais adequados para solucionar os seus litígios e exercer a cidadania. Trata-se de um importante aceno a uma Justiça Multiportas sólida, concreta e acessível. Oxalá as ideias debatidas na Jornada se espraiem e se multipliquem. E que venha a III Jornada!