A atividade de incorporação imobiliária tem enorme impacto social no Brasil e, pela dinâmica em que se estabelece desperta, consequentemente, riscos que podem enfraquecer o setor e, consequentemente, a economia como um todo
 
I. Introdução.
 
A incorporação imobiliária é a atividade pela qual uma pessoa física ou jurídica, promove, em caráter permanente ou eventual, a construção de edificação dividida em unidades autônomas, a serem alienadas individualmente.
 
Promulgada em 1964, a lei 4.591, também conhecida como Lei de Incorporações é, portanto, muito anterior ao CDC, lei 8.078/90. No entanto, justamente por estar voltada principalmente à proteção dos adquirentes, ela é considerada por um de seus principais idealizadores, o professor Caio Mário da Silva Pereira, como “lei precursora do CDC” (PEREIRA, 2014, p. 248).
 
Um dos fatores legais de autossustentação da incorporação imobiliária é o patrimônio de afetação, incluído na lei 4.591/64 em 2004, para, basicamente, possibilitar que os direitos e obrigações da incorporação se tornem incomunicáveis em relação ao patrimônio geral da incorporadora, objetivando que o empreendimento imobiliário e, consequentemente, as obras que levarão à sua conclusão, não sejam prejudicadas pela má gestão dos ativos da incorporação.
 
Este regime (de afetação patrimonial) traria mais segurança aos adquirentes de unidades imobiliárias compradas na planta ou em construção, à medida que reduziria os riscos de paralisação da construção pela incorporadora.
 
No entanto, no caso de incorporações imobiliárias que não tenham constituído patrimônio de afetação e que venham a ter suas obras atrasadas ou simplesmente abandonadas por incorporadoras, perguntamo-nos: quais os instrumentos e os procedimentos que estes adquirentes terão para proteger seus direitos ou minimizar os impactos de sua violação?
 
II. O patrimônio de afetação na incorporação imobiliária.
 
Embora não seja instituto exclusivo do direito imobiliário, o patrimônio de afetação foi inserido no ordenamento jurídico voltado à incorporação imobiliária pela MP 2.221/01 e, posteriormente, pela lei 10.931/04, que incluiu na lei 4.591/64 os artigos 31-A a 31-F, com o objetivo de assegurar direitos aos adquirentes de unidades imobiliárias em empreendimentos em construção no caso de falência, insolvência civil ou abandono da incorporadora.
 
O patrimônio de afetação surge, neste contexto, como proposta para conferir maior segurança jurídica aos adquirentes de unidades autônomas compradas na planta ou em construção e, ainda, retomar a confiança do mercado nesta modalidade de investimento, à medida que, separando o patrimônio geral da incorporadora do patrimônio da incorporação imobiliária por ela lançada, cria justamente mecanismos de securitização dos bens e créditos do empreendimento, impedindo o deslocamento de recursos de uma incorporação para outros projetos ou interesses exclusivos da empresa incorporadora.
 
Trata-se, portanto, de exceção à regra da responsabilização patrimonial da pessoa jurídica ou da pessoa física (caso a incorporadora o seja), de forma que o patrimônio da incorporação afetada não poderá ser atingida por dívidas contraídas pela incorporadora se não tiverem relação com aquele projeto em específico (CAMBLER, 2014).
 
Tal blindagem tem por objetivo a consecução do empreendimento, a conclusão das obras e a entrega das unidades aos adquirentes, que é a finalidade e a função social por excelência da incorporação imobiliária. Por isso, essa blindagem é limitada aos recursos financeiros necessários para tanto, restando, portanto, excluídos desse regime as quantias que excederem o necessário à conclusão da obra, bem como o valor referente ao preço de alienação da fração ideal de terreno de cada unidade vendida (CAMBLER, 2014).
 
Assim, em caso de decretação da falência ou da insolvência civil da incorporadora, o patrimônio de afetação não fará parte da massa concursal. Mas, também na hipótese de destituição do incorporador por atraso injustificado das obras por mais de 30 dias ou o por abandono propriamente das obras, na forma do art. 43, VI, da lei 4.591/64, o patrimônio de afetação será de suma importância, como explica Melhim Namen Chalhub, reconhecidamente o maior influenciador teórico das alterações legislativas da lei 4.591/64:
 
“Segundo a nova legislação, o acervo relativo à incorporação (terreno e acessões, bem como os demais bens, direitos e obrigações a ela vinculados), é destacado do patrimônio geral do incorporador, passando a constituir um patrimônio autônomo, destinado a satisfazer exclusivamente os direitos dos adquirentes e dos demais credores vinculados à incorporação, ficando, assim, cada conjunto de adquirentes imune aos efeitos de eventuais desequilíbrios gerados por outros negócios do incorporador.” (CHALHUB, 2012, p. 311).
 
III. A destituição do incorporador e a retomada de empreendimentos em incorporações paralisadas ou abandonadas.
 
A lei 4.591/64 estabelece uma série de responsabilidades (civis e criminais) à incorporadora vinculada, valendo, para fins da abordagem aqui proposta, destacar as repercussões civis da paralisação injustificada ou simples abandono da incorporação pela incorporadora responsável, sem a conclusão do empreendimento.
 
Em caso como esse, de paralisação ou abandono das obras por mais de 30 dias, sem justa causa, poderão, então, os adquirentes exercerem o seu direito ao desfazimento do negócio (de aquisição das unidades), na forma do art. 395 do CC/02 e do art. 43, II da lei 4.591/64 (PEREIRA, 2014) ou, ainda, se notificada a incorporadora, ela permanecer inerte, a destituição da incorporadora, na forma do art. 43, VI da lei 4.591/64, caso em que os adquirentes podem, se assim deliberarem por maioria absoluta, gerir por conta própria (através de seus representantes), a referida incorporação.
 
A destituição é uma das sanções cíveis possivelmente aplicadas à incorporadora que esteja em mora ou inadimplente com suas obrigações e possibilita que, nessas hipóteses e seguindo determinados procedimentos formais e burocráticos (os requisitos), os adquirentes possam, coletivamente, retomar a obra, preservando seus direitos ou minimizando os prejuízos decorrentes do atraso ou do abandono perpetrado pela incorporadora.
 
“Os requisitos necessários à caracterização da sanção civil de destituição (art. 43, VI, da LCI) prevista na legislação, para as construções a prazo e preço certos, são os seguintes: a) paralisação ou retardamento das obras por mais de 30 dias, sem justa causa comprovada; b) notificação judicial do incorporador para reinício das obras ou para que restabeleça seu ritmo normal, no prazo de 30 dias, a pedido do interessado; c) desatendimento, por parte do incorporador, à notificação enviada; d) realização de assembleia geral dos condôminos, que deliberará sobre a destituição, exigindo-se quorum especial que represente metade mais um da totalidade dos candidatos à aquisição das unidades condominiais efetivamente negociadas (maioria absoluta), destituição esta que se fará sem necessidade de recurso à autoridade judicial,21 prosseguindo-se as obras sem que ao incorporador seja permitida qualquer intervenção.” (CAMBLER, 2014). 
 
A destituição do incorporador é, portanto, um direito dos adquirentes de imóveis em incorporações imobiliárias, para que possam retomar e prosseguir com as obras em casos de paralisação ou abandono das obras. Cumpridas todas as formalidades, a deliberação do grupo de adquirentes em Assembleia Geral obrigará a todos os adquirentes, inclusive aqueles que, tendo sido convocados a participarem, se omitiram ou não exerceram o seu direito ao voto, uma vez que a Assembleia é soberana, cogente e surte efeitos imediatos, independentemente de respaldo judicial.
 
Porém, a destituição da incorporadora, por si só, não transfere automaticamente os ativos daquela incorporação para a coletividade de adquirentes. E, em casos em que não há o patrimônio de afetação instituído previamente, os bens e ativos do empreendimento (unidades de “estoque” – não vendidas – e créditos de saldo devedor a receber, especialmente) continuam formalmente vinculados à incorporadora e não à incorporação imobiliária em particular.
 
Ainda que destituída formalmente, se estivermos diante de uma incorporação sem afetação patrimonial, a incorporadora permaneceria titular dos ativos da incorporação, isto é, das unidades de estoque (não vendidas ou devolvidas por adquirentes que rescindiram o instrumento de aquisição de unidade) e do saldo devedor em recebíveis (daqueles que não chegaram a quitar integralmente o preço da unidade perante a incorporadora). E a coletividade de adquirentes, por outro lado, dificilmente assumirá ou poderá pagar, além do preço das unidades transacionadas com a incorporadora, os vultosos valores de aportes complementares necessários para a conclusão da obra.
 
Diante deste quadro, a opção, muitas vezes maliciosa e com objetivo fraudulento, de incorporadoras pela não formação de um patrimônio de afetação prévio não devem constituir um empecilho à securitização do patrimônio do empreendimento em prol da finalização das obras, abandonadas, sem conclusão, pelas incorporadoras.
 
Certamente, esse não é o intuito da lei 4.591/64, que positiva, através das modificações trazidas pela lei 10.931/04 (que dispõe sobre o Patrimônio de Afetação e dá outras providências) a sub-rogação dos adquirentes, em caso de optarem pela continuidade do empreendimento, no que diz respeito aos direitos e encargos daquela incorporação em específico.
 
Neste sentido, dispõe o §11 do art. 31-F que “caso decidam pela continuação da obra, os adquirentes ficarão automaticamente sub-rogados nos direitos, nas obrigações e nos encargos relativos à incorporação, inclusive aqueles relativos ao contrato de financiamento da obra, se houver”.
 
Os princípios e normas comuns da lei 4.591/64 com o CDC, tais como a boa-fé objetiva, o equilíbrio contratual e função social do contrato nos lembram que a Lei de Incorporações é uma lei consumerista que, por isso, deve ter como interpretação as possibilidades que mais se adequem à defesa dos interesses dos adquirentes consumidores, que são, inequivocamente, as partes mais vulneráveis da relação.
 
Por ser o patrimônio de afetação uma proteção aos adquirentes consumidores, no sentido de vincular e possibilitar o prosseguimento das obras em caso de abandono da incorporadora, ele obviamente não pode deixar de ser aplicado em razão da desídia da incorporadora que não registrou a opção pelo regime tributário especial do patrimônio de afetação.
 
O STJ, em caso de falência da incorporadora – REsp: 1.115.605/RJ, já reconheceu a afetação do patrimônio como a melhor maneira de se assegurar a funcionalidade econômica e preservar a função social da incorporação, mesmo em casos em que o incorporador não opte, inicialmente, pela instituição do patrimônio de afetação, como se vê do trecho do referido julgado:
 
“Embora o art. 43, III, da lei 4.591/64 não admita expressamente excluir do patrimônio da incorporadora falida e transferir para comissão formada por adquirentes de unidades a propriedade do empreendimento, de maneira a viabilizar a continuidade da obra, esse caminho constitui a melhor maneira de assegurar a funcionalidade econômica e preservar a função social do contrato de incorporação, do ponto de vista da coletividade dos contratantes e não dos interesses meramente individuais de seus integrantes. Apesar de o legislador não excluir o direito de qualquer adquirente pedir individualmente a rescisão do contrato e o pagamento de indenização frente ao inadimplemento do incorporador, o espírito da lei 4.591/64 se volta claramente para o interesse coletivo da incorporação, tanto que seus arts. 43, III e VI, e 49, autorizam, em caso de mora ou falência do incorporador, que a administração do empreendimento seja assumida por comissão formada por adquirentes das unidades, cujas decisões, tomadas em assembleia, serão soberanas e vincularão a minoria. Recurso especial provido.”
 
A vinculação das unidades “estoque” do empreendimento e dos recebíveis é a medida que mais se aproxima à tutela pensada pelo legislador e consolidada pela jurisprudência em relação aos adquirentes de unidades em incorporações fracassadas ou abandonadas pelas incorporadoras, e a única forma de que os mesmos venham a ser ressarcidos – ou minimizados – em seus prejuízos.
 
Contudo, ela não se opera de forma automática e a intervenção do Poder Judiciário se faz essencial para conferir segurança jurídica e garantias não apenas aos adquirentes, como também aos futuros investidores do empreendimento, resguardando os atributos essenciais e a função social da incorporação imobiliária.
 
IV – Conclusão.
 
A atividade de incorporação imobiliária tem enorme impacto social no Brasil e, pela dinâmica em que se estabelece – de pagamento de valores por unidades imobiliárias autônomas que ainda estão na planta ou em construção e somente depois serão recebidas pelos adquirentes – desperta, consequentemente, riscos que podem enfraquecer o setor e, consequentemente, a economia como um todo.
 
Com isso, espera-se que eventuais práticas decorrentes de fraude ou simples má gestão da incorporadora, não prejudiquem toda a viabilidade econômica da incorporação imobiliária. E, por isso, a possibilidade de separação patrimonial representou significativo avanço técnico e conquista para a proteção dos adquirentes e demais credores do empreendimento a partir de 2004.
 
A escolha legislativa por condicionar a criação do patrimônio de afetação à escolha (opção) da incorporadora pode ir contra o objetivo do instituto, uma vez que, em casos de incorporações imobiliárias paralisadas ou abandonadas pela incorporadora, sem a instituição do patrimônio de afetação, a ausência de ativos financeiros vinculados à concretização do empreendimento, aliada à falta de recursos complementares pelos adquirentes, pode inviabilizar por completo a retomada do empreendimento pelos adquirentes e, consequentemente, impedir a concretização da função social da incorporação, que é justamente a conclusão do empreendimento e entrega das unidades imobiliárias prontas.
 
Diante desta aparente contradição da lei 4.591/64, a jurisprudência do STJ acena com a possibilidade de interpretação extensiva do art. 31-A, em conjunto com toda a Lei de Incorporações, tomando a mesma como uma norma de princípio consumerista e de ordem pública, e de todos os demais princípios que orientam o ordenamento jurídico como um todo, de forma a possibilitar a criação de um patrimônio de afetação a posteriori, por decisão judicial.
 
E isso é possível porque o patrimônio de afetação deve ser entendido como um direito da coletividade de adquirentes de incorporações imobiliárias, independente de expresso registro do regime da afetação, e não como direito das incorporadoras, devendo, portanto, estar orientado sempre para a proteção e segurança das partes mais vulneráveis da incorporação e não servir como mais um instrumento de penalização.