A 3ª turma do STJ se deparou recentemente com importante caso envolvendo o recorrente tema da violência doméstica1, especificamente a respeito da possibilidade de o potencial agressor, a cujo respeito não houve ainda trânsito em julgado de sentença penal condenatória, fazer jus a indenização por meio de arbitramento de aluguel pelo fato de não mais poder usar e gozar de bem imóvel.
 
No caso examinado pela Corte por força do REsp 1.966.556/SP, havia sido concedida medida protetiva de urgência, com previsão na le 11.340/06 (Maria da Penha), em desfavor de homem que teria protagonizado episódios de violência doméstica contra sua mãe e irmã, esta última coproprietária do bem imóvel em que residiam, impedindo-o de se aproximar de ambas e, por consequência, de ingressar na residência.
 
Reputando-se prejudicado em razão da concessão da medida protetiva e do impedimento de exercer plenamente o seu direito de propriedade, Eduardo M. A. ajuizou ação de extinção de condomínio cumulada com arbitramento de aluguel em face de sua referida irmã e também de outro irmão, cada qual deles com fração ideal de 1/6 do bem imóvel, ao passo que o demandante titularizava o domínio na proporção de 2/3.
 
O juízo de piso julgou procedentes os pedidos formulados pelo autor, determinando a alienação do imóvel em hasta pública e cominando à sua irmã o dever de lhe pagar aluguel mensal pela ocupação exclusiva do bem, em montante que seria apurado em sede de liquidação de sentença.
 
Insatisfeita com a decisão, Ana Lucia M. A. apelou da sentença prolatada, recurso esse a que se deu provimento nos termos da ementa abaixo transcrita:
 

“APELAÇÃO CÍVEL – AÇÃO DE EXTINÇÃO DE CONDOMÍNIO C.C. ARBITRAMENTO DE ALUGUEL – SENTENÇA PROCEDENTE QUE DETERMINOU ALIENAÇÃO DO IMÓVEL EM HASTA PÚBLICA E CONDENOU A RÉ AO PAGAMENTO DE ALUGUEL PELO USO EXCLUSIVO DO BEM – INCONFORMISMO DA RÉ – AUTOR AFASTADO DO IMÓVEL EM DECORRÊNCIA DE MEDIDA PROTETIVA – ABSOLVIÇÃO NA AÇÃO PENAL NO CURSO DA LIDE POR FALTA DE PROVAS – SENTENÇA QUE NÃO TRANSITOU EM JULGADO E NOTICIA BELIGERÂNCIA ENTRE AS PARTES – AFASTAMENTO QUE NÃO DECORREU DE ATO VOLUNTÁRIO DA RÉ INCABÍVEL CONDENAÇÃO AO PAGAMENTO DE ALUGUEL – DADO PROVIMENTO AO RECURSO.”

 
Invocando violação à parte final do art. 1.319 do Código Civil (“Cada condômino responde aos outros pelos frutos que percebeu da coisa e pelo dano que lhe causou”), o autor interpôs recurso especial, inadmitido na origem e posteriormente conhecido em virtude de agravo, sorteada a relatoria ao Min. Marco Aurélio Bellizze.
 
Consideradas as breves notas sobre os fatos, não há dúvidas de que o Superior Tribunal de Justiça tem entendimento firmado no sentido de que o obstáculo ao exercício de quaisquer dos atributos da propriedade pelos demais coproprietários importa no dever de indenizar aquele que foi privado de usar e gozar do bem especialmente por meio do arbitramento de aluguel.
 
Contudo, – e essa constitui a grande peculiaridade do caso concreto -, subsiste o dever de indenizar por parte do coproprietário que não privou o outro de modo direto de exercer plenamente a propriedade e seus consectários, mas através de decisão judicial fundamentada em indícios de violência doméstica? E mais: eventual absolvição na seara penal teria o condão de tornar exigível a indenização?
 
Ao reformar a sentença para deixar de reconhecer o pedido de arbitramento de aluguel, o Tribunal de Justiça de São Paulo, com acerto, já havia apontado o relevante fato para deslinde da controvérsia de que foi o próprio autor quem havia dado azo à proibição da utilização do bem, com o consequente uso exclusivo por sua mãe e sua irmã enquanto perdurasse a medida protetiva de urgência.
 
Trata-se da adequada aplicação da máxima de que ninguém pode se beneficiar da sua própria torpeza, absorvida, ainda que em contexto diverso, pelo art. 150 do Código Civil, segundo o qual se ambas as partes procedem com dolo, nenhuma delas pode invocá-lo para anular o negócio jurídico ou exigir a correspondente indenização.
 
Ora, se a noção de torpeza abarca o comportamento indigno e repulsivo, ainda que indiciário, daquele que por qualquer ação ou omissão, nos termos do caput do art. 5º da Lei Maria da Penha, com base no gênero, cause à mulher morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial, resta evidente que o protagonista da violência em questão não pode, sob qualquer prisma, locupletar-se a despeito de sua própria ação ou omissão.
 
Se ao fim e ao cabo o juízo penal determinar a cessação da medida protetiva de urgência e formar seu convencimento no sentido de que não houve a prática real de quaisquer das espécies de violência doméstica contra a mulher ou as mulheres, no caso a irmã e a mãe do autor, tampouco esse fato fará surgir em seu proveito o direito de ser indenizado por meio de arbitramento de aluguel.
 
Em situações dessa natureza, deve-se afastar a aplicação da cláusula geral da vedação ao enriquecimento sem causa. A razão é simples. O autor foi alijado do exercício de plenitude da propriedade por iniciativa própria, sem que tenham concorrido sua mãe ou sua irmã com qualquer espécie de ato ilícito.
 
Nesse contexto, torna-se juridicamente irrelevante, para o fim de arbitramento de aluguel, a emissão de juízo não exauriente por meio de magistrado que concede referidas medidas cautelares e que posteriormente, ao formar em definitivo seu convencimento, não vislumbra reais e efetivos atos de violência doméstica.
 
De fato, a mera possibilidade de vir a pagar alugueis ao cônjuge, companheiro ou parente potencialmente agressor, mesmo que se conclua pela inexistência de violência doméstica ao final, constituiria um grave desestímulo para que a mulher buscasse o amparo estatal, por exemplo, para a fixação de medidas protetivas de urgência.
 
A razão para a vedação ao aludido arbitramento encontra ainda amparo em princípios de matriz constitucional, rememorando-se, em primeiríssimo lugar, que o direito de propriedade, evidentemente, não é absoluto, podendo sofrer restrições em não poucas ocasiões.
 
Nessa esteira, o relator, Min. Marco Aurélio Bellizze, invoca a ofensa ao art. 226, § 8º, da Constituição Federal, segundo o qual é dever do Estado assegurar assistência à família na pessoa de cada um dos seus membros, criando mecanismos para coibir a violência nas relações que se desenvolvem em seu seio.
 
Não só. Fundamenta ainda seu voto enunciando os arts. 1º, III (o ubíquo princípio da dignidade da pessoa humana), 3º, IV (o objetivo de promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação) e 5º, caput e I (igualdade entre homens e mulheres em direitos e obrigações).
 
Por fim, a decisão corrobora o dever estatal da vedação à proteção insuficiente, por meio do qual é essencial a concretização de um patamar mínimo de proteção,  cuidando-se de espécie de outra dimensão da proporcionalidade na condição de proibição de excesso de intervenção, de modo que a noção de proporcionalidade se relaciona intimamente com a ideia de que os fins, mesmo que legítimos, não autorizam o emprego de quaisquer meios para a sua consecução.
 
Por todos esses motivos, oportuno e alvissareiro o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, garantindo às mulheres a proteção necessária para que levem sempre ao conhecimento do Poder Público, sem receio de futuro revés em termos patrimoniais, situações de violência doméstica de que sejam vítimas.