Há mais de 15 anos, quando eu ainda dava os primeiros passos na advocacia, tive a oportunidade de atender a um dos casos mais marcantes da minha vida: um senhor, na casa dos 60 anos, faleceu subitamente, em virtude de um AVC, deixando para trás um relacionamento de quatro décadas, sem filhos e com um patrimônio formado ao longo dos anos com o esforço conjunto do casal.

 

O que poderia parecer simples, não era, contudo, uma situação comum, protegida pelas regras do Código Civil. O relacionamento mantido por esse senhor há 40 anos, de forma estável e monogâmica, era um relacionamento homoafetivo. O seu surgimento, no final da década de 1960, quando ele e o companheiro estavam na faculdade, provocou um escândalo, com a expulsão do falecido de casa pelos pais e ruptura familiar pelos anos que se seguiram.

Nenhum contato, nenhum convívio, nenhum afeto. E, não obstante, aquele falecimento repentino, inesperado, sem que se tivesse tido a chance de organizar as coisas previamente, quando a expectativa de vida era de mais 15 ou 20 anos pela frente, impunha ao companheiro sobrevivente uma realidade dura: todos os bens adquiridos na constância do relacionamento que estavam em nome do companheiro falecido, pela interpretação literal da lei que se tinha, até então, deveria ser destinado à família biológica. Sem exceção. Qualquer pretensão em sentido contrário esbarraria, como tantas esbarraram, numa tal “impossibilidade jurídica do pedido”.

Ao receber de nós a confirmação do desafio que se impunha, vi o cliente sacar da pasta uma revista de celebridades, que estampava na capa a notícia do fim de um casamento relâmpago, de apenas alguns meses, de duas figuras conhecidas. Com uma tristeza profunda no olhar, ouvi ele me perguntar: — Que direito e que justiça são essas que reconhecem proteção a um relacionamento como esse e chama isso de família e não traz nenhuma segurança ou garantia para quem viveu uma história como a minha? Fiquei sem resposta, como poucas vezes no exercício da minha profissão e nunca me esqueci desse dia e daquele olhar. A saída que encontramos para o caso foi buscar um acordo com a família biológica do ex-companheiro, que foi, ao final, obtido.

Quatro ou cinco anos depois, desse episódio, o Supremo Tribunal Federal (STF) equiparou, para fins de garantia de direitos, uniões homoafetivas a uniões heteroafetivas, a partir da interpretação do texto do artigo 5º da Constituição, que abre o capítulo destinado aos direitos e garantias fundamentais estabelecendo que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”.

Todos sermos iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, significa que todos nós temos direitos e garantias fundamentais — entre os quais o direito à constituição de família, à sucessão, à igualdade de tratamento de dependentes para fins tributários, à seguridade social e ao plano de saúde, para citar alguns exemplos — independentemente de gênero, cor, crença ou orientação sexual.

Assegurar isso a quem é homem ou mulher, preto ou branco, crente ou ateu, homo ou heterossexual é elementar (e essencial), dentro de um Estado que se pretenda de Direito, democrático, digno e justo e não gera qualquer prejuízo de ordem legal ou jurídica a quem tem valores ou escolhas diversos. Se a sua opção for por constituir a sua relação afetiva sob as leis de Deus, isso precisa ser respeitado por todos, independentemente dos valores que se tenha. Se a sua opção for por constituir a sua relação sob as leis dos homens, em um Estado laico, isso também precisa ser respeitado por todos, independentemente da fé que professe.

Nesse cenário, quando o texto proposto para o PL 5.167/2009 — que está em discussão no Congresso Nacional — é alterado na tentativa de proibir o reconhecimento de uniões homoafetivas e retirar direitos garantidos ao longos dos últimos dez anos, não se está, apenas, retrocedendo de forma injustificável, mas fazendo uma proposta que longe de mudar a orientação sexual e as escolhas pessoais de qualquer pessoa, gera, acima de tudo indignidade e insegurança jurídica, além de ser, inequivocamente, inconstitucional.

Fonte: Conjur

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