A proteção sucessória, em concorrência com os descendentes, é feita em função do regime de casamento e dos bens existentes
O Código Beviláqua, de 1916, já revogado, não concedia ao cônjuge, que concorria com o descendente, vocação hereditária. Era fato que a reserva de bens do cônjuge sobrevivente se daria, única e exclusivamente, através do regime matrimonial adotado no casamento e a apuração de eventual meação de bens.
Mas também era fato que, caso não houvesse descendentes ou ascendentes, todo o espólio seria deferido ao cônjuge sobrevivente
Art. 1.603. A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte:
I – Aos descendentes.
II – Aos ascendentes.
III – Ao cônjuge sobrevivente.
IV – Aos colaterais.
V – Aos Municípios, ao Distrito Federal ou à União.
A codificação civil de 2002 rompeu esse paradigma, pois, a despeito de eventual meação em função do regime patrimonial do casamento, o cônjuge sobrevivente também seria considerado herdeiro em concorrência com os descendentes e ascendentes:
Art. 1.829. A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte:
I – aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens (art. 1.640, parágrafo único); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares;
II – aos ascendentes, em concorrência com o cônjuge;
III – ao cônjuge sobrevivente;
IV – aos colaterais.
A intenção do legislador foi a de contemplar o cônjuge sobrevivente, em concorrência com o descendente, em função do regime de casamento, tentando criar a regra do “na parte em que for meeiro, não herda; na parte que em não for meeiro, herda”. Ora, o escopo do art. 1829, I, do CC, é reconhecer que o cônjuge será sempre herdeiro, em concorrência com o descendente, salvo em 3 (três) regimes de casamento:
- na comunhão universal – como, no referido regime (art. 1.667, com as exceções dos incisos do art. 1.668, ambos do CC), os bens integram a meação, resta óbvio que o cônjuge será considerado meeiro dos que houver e não ficará à míngua após o óbito1;
- na separação obrigatória (legal) – nas hipóteses previstas no art. 1.641, do CC (e não no parágrafo único, do art. 1.640, como erradamente remete à redação do art. 1.829, I), a lei exclui a concorrência do cônjuge casado por esse regime2, sendo certo que, há muitos anos3, a jurisprudência brasileira reconhece o direito à meação do cônjuge, desde que tenha havido efetivo e real esforço comum, ainda que não financeiro, à construção do patrimônio adquirido na constância do casamento, não bastando a mera presunção de contribuição financeira4; e
- na comunhão parcial de bens – pela letra fria do inciso I, cuja redação é muito criticada, até pela dupla negativa no período, o cônjuge casado pelo regime supletivo não será herdeiro, salvo se o de cujus não houver deixado bens particulares. Logo, se deixar bens particulares, o cônjuge terá o atributo de herdeiro da totalidade do monte, e não só sobre os bens particulares, enquanto que, não tendo bens particulares, o sobrevivo não terá o mesmo status.
Como consequência lógica, excluídos os três “salvos” do inciso I, do art. 1.829, nos regimes da separação voluntária/convencional de bens e na participação final dos aquestos, o cônjuge sobrevivo herdaria, em concorrência com os descendentes, em quinhão incidente sobre a totalidade do espólio.
Assim, se o motivo para considerar o cônjuge herdeiro no Brasil seria agraciá-lo na parte em que o mesmo não seria meeiro, vê-se que o legislador brasileiro, através da pífia redação do art. 1.829, I, não conseguiu, nem de perto, atingir o objetivo. A redação é por demais criticada na doutrina, como se apura da contundente manifestação de Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald5, verbis:
“Ao parametrizar a sucessão do cônjuge – o que ocorreu também quando da disciplina da sucessão do companheiro -, o legislador não primou pelo uso da técnica, preterindo, em tom quase emotivo, reconhecer sequencialmente vantagens ao sobrevivente. O resultado, como se verá, é uma profusão de dúvidas e controvérsias, que terminam ocasionando uma incerteza e uma insegurança na sociedade. Trata-se de uma verdadeira Torre de Babel legislativa, com textos imprecisos e, não raro, ininteligíveis.”
Para tentar apaziguar os ânimos jurídicos no Brasil, o Conselho da Justiça Federal, na III Jornada de Direito Civil, em dezembro de 2004, tentou tornar transparente a regra já referida do “na parte em que for meeiro, não herda; na parte que em não for meeiro, herda”, através do enunciado 270, ora transcrito:
“Art. 1.829: O art. 1.829, inc. I, so’ assegura ao co^njuge sobrevivente o direito de concorre^ncia com os descendentes do autor da heranc¸a quando casados no regime da separac¸a~o convencional de bens ou, se casados nos regimes da comunha~o parcial ou participac¸a~o final nos aqu¨estos, o falecido possui’sse bens particulares, hipo’teses em que a concorre^ncia se restringe a tais bens, devendo os bens comuns (meac¸a~o) ser partilhados exclusivamente entre os descendentes.”
Todavia, após mais de 20 (vinte) anos da vigência do malfadado dispositivo sucessório, ainda com alguma divergência e causando instabilidade, a jurisprudência brasileira tenta interpretar o art. 1.829, I, do CC, buscando compreender a essência da proteção do cônjuge sobrevivente em função do regime do casamento, quando venha a concorrer com descendente.
O quadro abaixo, de modo simples e pragmático, compila a essência do inciso I, do art. 1829, à luz de todos os posicionamentos atuais existentes:
Vê-se, assim, que a proteção sucessória, em concorrência com os descendentes, é feita em função do regime de casamento e dos bens existentes, tornando o sistema sucessório extremamente desordenado e sem padronização, inexistindo previsibilidade e causando tremenda insegurança jurídica.
Trata-se de ponto nodal que precisa ser abordado pela Comissão de Juristas responsável pela revisão e atualização do Código Civil, com a melhora significativa da redação ao 1.829, I, do CC, e da concorrência do cônjuge com o descendente.
______________
1 Convém destacar a posição de José Luiz Gavião de Almeida que, em resumo, reconhece que dos bens excluídos da meação (art. 1668, do CC), o cônjuge, casado pelo regime da comunhão universal, será herdeiro:
“Mesmo nesse regime podem existir bens incomunicáveis. E podem existir apenas bens incomunicáveis [.] por isso, o dispositivo deve ser entendido no sentido de que ficará ele privado da sucessão concorrente se houver patrimônio comum. Não o havendo, cabe-lhe quota na sucessão dos bens particulares do falecido.”
(DE ALMEIDA, José Luiz Gavião – Código Civil Comentado vol. XVIII – Direito das Sucessões. Sucessão em Geral. Sucessão Legítima. São Paulo: Editora Atlas, 2003, p. 224.)
2 A exclusão do cônjuge casado pelo regime da separação obrigatória é vista com revolta por Gustavo Rene Nicolau:
“Outra hipótese na qual a lei pareceu atuar de modo injusto ou pouco coerente envolve o caso da viúva que for a casada no regime de separação obrigatória de bens. Apesar da remissão equivocada ao artigo 1.640, parágrafo único, a lei é taxativa ao vedar a concorrência sucessória da pessoa nesta peculiar situação com descendentes do de cujus.”
(NICOLAU, Gustavo Rene – Sucessão Legítima, Desacertos do Sistema e Proposta de Alteração Legislativa. In Direito de Família e das Sucessões – Temas Atuais. São Paulo: Editora Método, 2009. p. 525.)
3 Como já aludido, a matéria encontra-se sumulada no Supremo Tribunal Federal desde 1964, através do verbete n.o 377: “No regime de separação legal de bens, comunicam-se os adquiridos na constância do casamento”.
4 De todos os recentes julgados do Superior Tribunal de Justiça sobre o thema, há relevante precedente sobre união estável, mas que se refere exatamente à necessidade de que, no regime da separação obrigatória, pode ser amealhado o bem adquirido na constância da união, desde que decorra do real esforço comum, verbis:
“EMENTA
EMBARGOS DE DIVERGE^NCIA NO RECURSO ESPECIAL. DIREITO DE FAMI’LIA. UNIA~O ESTA’VEL. COMPANHEIRO SEXAGENA’RIO. SEPARAC¸A~O OBRIGATO’RIA DE BENS (CC/1916, ART. 258, II; CC/2002, ART. 1.641, II). DISSOLUC¸A~O. BENS ADQUIRIDOS ONEROSAMENTE. PARTILHA. NECESSIDADE DE PROVA DO ESFORC¸O COMUM. PRESSUPOSTO DA PRETENSA~O. EMBARGOS DE DIVERGE^NCIA PROVIDOS.
- Nos moldes do art. 258, II, do Co’digo Civil de 1916, vigente a` e’poca dos fatos (mate’ria atualmente regida pelo art. 1.641, II, do Co’digo Civil de 2002), a` unia~o esta’vel de sexagena’rio, se homem, ou cinquentena’ria, se mulher, impo~e-se o regime da separac¸a~o obrigato’ria de bens.
- Nessa hipo’tese, apenas os bens adquiridos onerosamente na consta^ncia da unia~o esta’vel, e desde que comprovado o esforc¸o comum na sua aquisic¸a~o, devem ser objeto de partilha. 3. Embargos de diverge^ncia conhecidos e providos para negar seguimento ao recurso especial.
VOTO DO RELATOR
[…]
Tem-se, assim, que a adoc¸a~o da compreensa~o de que o esforc¸o comum deve ser presumido (por ser a regra) conduz a` inefica’cia do regime da separac¸a~o obrigato’ria (ou legal) de bens, pois, para afastar a presunc¸a~o, devera’ o interessado fazer prova negativa, comprovar que o ex-co^njuge ou ex-companheiro em nada contribuiu para a aquisic¸a~o onerosa de determinado bem, conquanto tenha sido a coisa adquirida na consta^ncia da unia~o. Torna, portanto, praticamente impossi’vel a separac¸a~o dos aquestos.
Por sua vez, o entendimento de que a comunha~o dos bens adquiridos pode ocorrer, desde que comprovado o esforc¸o comum, parece mais consenta^nea com o sistema legal de regime de bens do casamento, recentemente confirmado no Co’digo Civil de 2002, pois prestigia a efica’cia do regime de separac¸a~o legal de bens. Cabera’ ao interessado comprovar que teve efetiva e relevante (ainda que na~o financeira) participac¸a~o no esforc¸o para aquisic¸a~o onerosa de determinado bem a ser partilhado com a dissoluc¸a~o da unia~o (prova positiva).”
(Embargos de Divergência em Recurso Especial n.o 1.171.820, da 2a Seção do STJ, relatado pelo Ministro Raul Araújo, julgado em 26/06/2015 e com acórdão publicado em 21/09/2015).
5 FARIAS, Cristiano Chaves de ; ROSENVALD, Nelson – Curso de Direito Civil vol. 7 – Sucessões. São Paulo: Editora Atlas, 2014. p. 241.
6 ALMEIDA, José Luiz Gavião de – Código Civil Comentado vol. XVIII – Direito das Sucessões. Sucessão em Geral. Sucessão Legítima. São Paulo: Editora Atlas, 2003, p. 224.)
7 A interpretação se baseia na existência de um ponto e vírgula no artigo: em DIAS, Maria Berenice – Ponto-e-vírgula. Revista Jus Navigandi [Em linha]. Teresina, ano 8, n.o 66 (Jun.2003). [Consult. 15 Jan. 2019]. Disponível em http://jus.com.br/artigos/4177/ponto-e-virgula.
Fonte: Migalhas
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