Análise crítica da cobrança do ITCMD em São Paulo, destacando violações legais e riscos ao Estado de Direito e à justiça fiscal

 

A busca desenfreada por receitas e seus riscos

 

É inegável a importância da fiscalização e da arrecadação adequadas para o bom funcionamento do Estado. No entanto, a intensificação da cobrança do ITCMD em São Paulo, impulsionada pela busca desenfreada por receitas, levanta sérias preocupações quanto à legalidade e legitimidade dos métodos utilizados. Essa postura do Fisco Paulista configura um grave risco ao Estado de Direito, pois viola os princípios constitucionais, além de afrontar diversos dispositivos da legislação federal.

 

Violações à Legislação e à jurisprudência

 

O Fisco Paulista tem enviado ‘Notificações de Instauração de Arbitramento’ a diversos contribuintes, com o objetivo de cobrar o ITCMD com base em valores superiores ao valor venal utilizado para fins de IPTU. Essa prática se baseia unicamente no art. 11 da lei 10.705/00, desconsiderando flagrantemente a Constituição Federal, artigo 150, inciso I, o CTN – Código Tributário Nacional, art. 148 e 97, e a jurisprudência dominante dos tribunais superiores.

 

Nos procedimentos de arbitramento, o Fisco revisa as bases de cálculo dos imóveis transmitidos, utilizando o “Método Comparativo Direto de Dados do Mercado”. Esse método se baseia em anúncios de sites de imobiliárias e portais de anúncios online, selecionados sem critérios transparentes. A partir desses anúncios, o Fisco identifica imóveis com características comparáveis na mesma região e calcula a média do metro quadrado, a qual é utilizada para determinar o valor do ITCMD.

 

Embora a lei Estadual 10.705/00, art. 11, permita o procedimento de arbitramento, sua aplicação isolada, ou seja, quando o Fisco discorda dos valores declarados pelos contribuintes, demonstra um desrespeito frontal ao ordenamento jurídico e aos princípios da legalidade. A aplicação do arbitramento deve seguir rigorosamente as condicionantes específicas previstas na legislação tributária nacional, jamais podendo ser utilizado de forma arbitrária ou abusiva pelo Fisco, sob pena de nulidade absoluta dos atos praticados.

 

Permitir o arbitramento apenas pela vontade do Fisco, sem o cumprimento das condicionantes estabelecidas no art. 148 do CTN, ou seja, na ausência de omissão ou declarações inidôneas, desvirtua um importante instituto jurídico e configura um atentado aos princípios da segurança jurídica e da legalidade.

 

Sabe-se que, quando o motivo (formalidade legal) para o ato administrativo não se subsume aos fatos do caso, o ato está viciado em sua origem, pois não atende ao requisito basilar para sua validade no mundo jurídico. A doutrina explica claramente o que se entende por motivo para fins de atos administrativos, conforme caracterizado pelo doutrinador Eurico Santi, da seguinte forma:

 

“(ii) motivo: acontecimento no mundo fenomênico que exige ou possibilita a prática do ato. (..)”

 

Enquanto o motivo é pressuposto fático do ato, representado pela “ocorrência da vida real que satisfaz a todos os critérios identificadores tipificados na hipótese tributária”, a motivação compõe o próprio ato administrativo, consistindo na descrição do motivo do ato, situada no antecedente da norma individual e concreta. Em se tratando de ato de lançamento, o motivo é o evento tributário, ao passo que a motivação constitui o fato jurídico correspondente. O mesmo se verifica no ato de aplicação de penalidade: o motivo é o evento ilícito, sendo o fato da ilicitude introduzido no universo jurídico pela motivação.1

 

Assim, ao realizar uma análise conjunta do art. 148 do CTN com o art. 11 da lei Estadual 10.705, de 28/12/00, verifica-se que o arbitramento do ITCMD só é permitido quando houver omissão ou declarações inidôneas. Na ausência desses motivos, quaisquer procedimentos de arbitramento são nulos, em virtude dos vícios materiais inerentes ao conteúdo do ato, ou seja, à norma individual e concreta que estabelece o crédito e sua motivação.2

 

A prática do Fisco Paulista de utilizar o arbitramento de forma ilegal e abusiva configura uma grave violação ao art. 148 do CTN, bem como ao art. 97, inciso IV, que estabelece que somente a lei pode alterar a base de cálculo de um tributo. Permitir a alteração da base de cálculo do ITCMD através do arbitramento, utilizando o “método comparativo direto de dados do mercado” de forma arbitrária, gera enorme insegurança jurídica e viola o princípio da reserva legal.

 

Apesar da clara violação da legislação e da Constituição Federal, a Procuradoria continua a insistir na utilização do método de arbitramento, mesmo quando o contribuinte utiliza como base de cálculo os valores declarados para fins de IPTU. Embora ainda não haja um entendimento consolidado no TJ/SP, existem decisões favoráveis aos contribuintes. Vejamos:

 

APELAÇÃO E REEXAME NECESSÁRIO – Mandado de segurança com pedido liminar – ITCMD – Base de cálculo – lei Estadual 10.705/00 – Imóvel rural – Valor fixado para o lançamento do ITR, como patamar mínimo – Procedimento administrativo de arbitramento (art. 11 da LE nº 10.705/2000), que exige avaliação singular ou concreta, com elementos e critérios objetivos de indicação de valores – Alteração, contudo, da base de cálculo, mediante critério genérico, pautado em “valores médios da terra nua e das benfeitorias, divulgados pela Secretaria de Agricultura e Abastecimento do Estado de São Paulo através do IEA – Instituto de Economia Agrícola” – decreto 46.655/02 (art. 16, III, parágrafo único) – Inadmissibilidade – Nada adiante, ainda, invocar, em paralelo, o decreto 55.002/09 (valor venal de referência e não o valor venal apontado no IPTU, para imóvel urbano), que padece de igual vício – Ofensa ao princípio da legalidade, por real e indevida substituição de patamar mínimo de base de cálculo (do do ITR para o IEA; do IPTU para o ITBI) e majoração destas bases de cálculo despidas de lei formal – Sentença mantida. APELAÇÃO E REEXAME NECESSÁRIO DESPROVIDOS. As bases de cálculo do ITCMD são aquelas apontadas na legislação paulista (IPTU e ITR), não podendo ser adotado critério geral diverso daquele utilizado pela própria Administração Pública para propriedade do bem, observada que a criação de base de cálculo pelo decreto 55.002/09, em referência ao ITBI e valor divulgado pelo IEA, consiste em ofensa ao princípio da legalidade. (TJ/SP;  Apelação / Remessa Necessária 1001433-66.2022.8.26.0417; relator (a): Vicente de Abreu Amadei; Órgão Julgador: 1ª Câmara de Direito Público; Foro de Marília – Vara da Fazenda Pública; Data do Julgamento: 12/12/23; Data de Registro: 12/12/23)

 

EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. REMESSA NECESSÁRIA MANDADO DE SEGURANÇA. ITCMD. BASE DE CÁLCULO. PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO. OMISSÃO. ACOLHIMENTO. Embargos opostos em remessa necessária de sentença que concedeu a segurança em ordem a determinar a adoção do valor venal do IPTU do imóvel como base de cálculo do ITCMD. Omissão quanto à possibilidade de arbitramento da base de cálculo mediante procedimento administrativo. Incidência de valor de referência do IPTU, à míngua de evidência sobre o real valor de mercado do imóvel. Arbitramento. Procedimento excepcional e subsidiário, reservado a casos em que evidenciada omissão ou má-fé do contribuinte, aqui não aferidas. Observação que se faz em integração ao julgado, mercê do acolhimento da via aclaratória, sem alteração no resultado do recurso. EMBARGOS ACOLHIDOS. (TJ/SP;  Embargos de Declaração Cível 1064578-92.2020.8.26.0053; relator (a): Márcio Kammer de Lima; Órgão Julgador: 11ª Câmara de Direito Público; Foro Central – Fazenda Pública/Acidentes – 7ª Vara de Fazenda Pública; Data do Julgamento: 24/11/23; Data de Registro: 24/11/23)

 

Adicionalmente, cabe mencionar que o STJ já se debruçou sobre a questão em duas ocasiões. Embora ainda não exista um tema repetitivo que fixe um entendimento definitivo sob a forma vinculante, observa-se um incipiente direcionamento jurisprudencial no sentido de afastar a cobrança de ITCMD baseada exclusivamente na discordância do Fisco quanto aos valores declarados.

 

Em duas situações análogas, quando o Tribunal de Justiça de São Paulo barrou o arbitramento do Fisco Paulista por ausência de omissão ou declarações inidôneas, a Procuradoria, por meio de recursos especiais, buscou questionar a legalidade da decisão. No entanto, tanto no AREsp 2.423.122, sob relatoria da ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, quanto no AREsp 2.448.595, sob relatoria do ministro Herman Benjamin, o agravo foi conhecido, mas os recursos especiais não foram admitidos.

 

Conclusão

 

Sob a sombra das ilegalidades na cobrança do ITCMD pelo Fisco Paulista, o Poder Judiciário surge como um farol de esperança para os contribuintes. Através de sua atuação firme e imparcial, garante a observância da legalidade e a justiça fiscal, erguendo-se como um escudo protetor dos direitos dos cidadãos e reforçando a confiança no sistema jurídico.

 

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1 p.562, Curso de especialização em direito tributário, Estudos analíticos em homenagem a Paulo de Barros Carvalho, Editora Forense, Rio de Janeiro, 2007) (grifo nosso)

 

2 Acórdão de nº 2301-003.426 – Número do Processo –  13888.002450/2008-14 – Data da Sessão – 14/03/2013 –  Relator(a) – ADRIANO GONZALES SILVERIO

 

Fonte: Migalhas

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