O federalismo brasileiro traz, na prática, um excesso de centralização do poder na União. Os estados deveriam ter mais autonomia, especialmente em questões fiscais, mas, embora a Constituição abra espaço para isso, a repartição de competências não é bem gerida pelos entes federados.

 

Essa análise é da advogada constitucionalista Vera Chemim, que também é mestre em Administração Pública pela FGV de São Paulo. Em entrevista à revista eletrônica Consultor Jurídico, ela explica como o federalismo brasileiro se dá na prática, faz um histórico de como esse conceito mudou desde a primeira Constituição do país e compara nosso modelo com o dos Estados Unidos.

 

De acordo com Chemim, o federalismo brasileiro é pretensamente híbrido: em tese, os entes federados são esferas de poder igualmente autônomas, mas há uma livre cooperação da União com os estados-membros, que garante uma intervenção maior da esfera federal. Na prática, a centralização do poder na União é preponderante.

 

Segundo a constitucionalista, o modelo federalista brasileiro é inspirado no americano e segue as mesmas premissas, mas tem origens distintas. Nos EUA, os estados já eram soberanos, resolveram adotar o federalismo e mantiveram sua autonomia. Já no Brasil, o Estado unitário descentralizou seu poder para as províncias, hoje estados.

 

Ela explica que, na primeira Constituição da República brasileira, de 1891, a ideia era adotar o federalismo nos moldes americanos, mas o modelo foi se distanciando da sua inspiração, especialmente nos períodos do Estado Novo e da ditadura militar, que centralizaram mais poderes na União.

 

A diferença na origem e o distanciamento ao longo do tempo são fatores que, para Chemim, levam o federalismo brasileiro a enfrentar muitos obstáculos na prática atualmente.

 

Leia a seguir a entrevista:

 

ConJur — O modelo federativo brasileiro segue as mesmas premissas do modelo dos Estados Unidos?

Vera Chemim — Teoricamente sim, embora nos EUA os entes federados detenham de fato amplo poder e autonomia irrestrita, ao contrário do Brasil, cujo modelo federalista remete à simetria entre cada um dos entes federados — União, estados, Distrito Federal e municípios.

 

O federalismo é uma forma de organização do Estado em que os entes federados são dotados de autonomia política, administrativa, tributária e financeira. Eles se aliam na criação de um governo central por meio de um pacto federativo. Não significa necessariamente que esse governo terá maiores poderes.

 

É diferente do conceito de confederação, que remete a uma união de estados por meio de um acordo. Todos mantêm a sua soberania, liberdade e independência.

 

As 13 colônias inglesas, no final do século 18, proclamaram a sua independência e se reuniram em uma confederação, que só foi consolidada quando a maioria das antigas colônias explícita e voluntariamente a ratificou.

 

O federalismo dos EUA surgiu da constatação de que a confederação não garantia a paz interna, além de outros problemas relacionados ao fato de um estado estar quase sempre em conflito com outro, por várias razões ligadas a temas de natureza política, econômica e tributária. Por exemplo, havia legislações muito conflitantes entre um estado e outro, rivalidades regionais. No caso de cometimento de abuso de um estado com relação a outro, não havia previsão de sanções. Tudo isso fez com que a confederação não satisfizesse a sua finalidade.

 

Na confederação havia um acordo, não havia Constituição. A partir do momento em que se transformou no federalismo, isso começou a ser disciplinado pela Constituição americana.

 

No federalismo, a soberania foi transferida para um ente central. A finalidade era fortificar politicamente as antigas colônias inglesas. De fato, todos os estados que passaram a compor o federalismo americano mantiveram a sua soberania, ou seja, a sua autonomia total decorrente da confederação.

 

No caso do Brasil, o contexto era totalmente diferente. Era a época do governo imperial. O Estado era unitário, detentor de toda a soberania. E tínhamos províncias. A partir do momento em que adotamos o modelo do federalismo, o próprio governo passou a descentralizar o poder político-administrativo para as províncias, que se tornaram estados-membros.

 

O federalismo brasileiro, por razões históricas, é reconhecido como centrífugo. O Estado era unitário e se movimentou de dentro para fora, ou seja, expandiu-se. Diferentemente dos EUA, em que o federalismo é considerado centrípeto porque se expandiu de fora para dentro: os estados eram soberanos, reuniram-se e formaram um federalismo, mantendo até hoje a sua soberania.

 

Os EUA adotam o chamado federalismo por agregação, que tem como característica a maior descentralização do Estado. Os entes regionais possuem competências muito mais amplas do que os do Brasil.

 

A outra forma de surgimento do federalismo é por desagregação, na qual a centralização do Estado é maior. Ou seja, a União, que é o ente central, recebe a maior parcela de poderes relativamente aos estados-membros — justamente o caso brasileiro.

 

No Brasil, as províncias do tempo do Império tornaram-se estados-membros e o modelo herdou inevitavelmente a maior centralização de poder político da União.

 

Um exemplo emblemático é a questão da institucionalização da pena de morte. Isso ocorreu em parte dos estados americanos, e não em todos eles. No caso do Brasil, não há essa diversidade de posicionamento jurídico. O ente central — a União — impõe as disposições às quais se subordinam os estados-membros.

 

O federalismo brasileiro foca especialmente na cidadania e no regime político. A organização política ficou como a de um Estado unitário, cedendo apenas uma pequena autonomia constitucional para os estados-membros.

 

A diferença mais relevante entre o federalismo americano e o brasileiro reside na relação entre os estados-membros e o poder central. Nos EUA, essa relação é bem menor do que no Brasil. Cada estado atua de forma autônoma e participa das decisões a nível nacional de forma distinta, devido à herança do federalismo dual.

 

O federalismo dual, próprio dos EUA, ocorre quando há duas esferas de poder igualmente autônomas. No caso americano, o ente central (o Estado federal) e os estados que compõem o federalismo são duas esferas de poder igualmente autônomas.

 

No Brasil, o federalismo é predominantemente de cooperação: os estados-membros têm uma maior tendência a atuar em conjunto para tratar de decisões a nível federal. O federalismo de cooperação corresponde a uma intervenção maior da União, no domínio econômico principalmente, a fim de garantir o modelo do estado de bem-estar social a partir de uma livre cooperação da União com os estados-membros.

 

Nos últimos anos, o poder central dos EUA sofreu maior centralização, embora ainda se constate claramente a independência dos seus estados em comparação com a do Brasil.

 

ConJur — Apesar das diferenças na origem, o modelo federativo brasileiro é inspirado no dos EUA?

Vera Chemim — Ele é inspirado, com certeza, no modelo americano. Só que, com o passar do tempo, começamos a nos distanciar um pouco desse modelo. De um lado, aprofundamos aquele modelo com relação à divisão de poderes e à repartição de competências. Mas, de outro lado, acabamos adotando um modelo híbrido.

 

ConJur — Como o federalismo foi tratado em cada Constituição brasileira?

Vera Chemim — A primeira Constituição republicana, de 1891, adotou, a princípio, supostamente, um federalismo dual, a exemplo do federalismo americano. A ideia inicial era que União e estados-membros fossem duas esferas de governo autônomas.

 

Já na Constituição de 1934, referente ao governo provisório de Getúlio Vargas, houve uma tendência de adotar um federalismo cooperativo. Cada ente federado iria “fazer a sua parte” para satisfazer necessidades sociais.

 

De 1937 a 1945, durante o Estado Novo, a União acabou tendo um poder político novamente maior. Houve uma centralização maior do poder na União.

 

Na Constituição de 1946, que retomou o regime democrático, ainda se manteve, de certa forma, esse ranço dessa centralização da União, embora se mantivesse também o federalismo cooperativo.

 

Em 1967, houve de novo, devido ao regime militar, maior centralização do poder na União, passando do federalismo cooperativo para o federalismo denominado nominal — aí, sim, distanciando-se completamente do federalismo americano.

 

O federalismo nominal remete justamente ao fato de que, em vez de o Brasil concretizar a repartição de poderes e de competências entre todos os entes federados, houve uma maior centralização na União relativamente aos estados-membros, que viram o seu poder diminuir a cada ano.

 

O federalismo nominal se distancia do modelo americano porque o federalismo, na sua essência, significa descentralização do poder, ao contrário do que ocorreu no regime militar.

 

Depois, a Constituição de 1988 tentou resgatar tudo aquilo que foi perdido ao longo do Estado Novo e da ditadura militar — a repartição de poderes e a repartição de competências entre os estados federados.

 

ConJur — A inspiração no modelo dos EUA foi mantida na Constituição de 1988?

Vera Chemim — A base doutrinária continua igual, mas a Constituição Federal de 1988 aperfeiçoou o princípio federalista ao estruturar o sistema de repartição de competências. Ela tentou refazer o equilíbrio das relações entre o poder central e os poderes estaduais e municipais.

 

A União detém maiores poderes para garantir a defesa comum dos estados-membros, a preservação da paz pública, a regulamentação do comércio com outras nações e entre os estados, a superintendência das relações políticas e comerciais com os países estrangeiros etc. Os poderes da União são maiores do que os dos estados-membros.

 

As características do modelo de federalismo previsto na Constituição de 1988 se coadunam com dois tipos de federalismo: dual e de cooperação. Nesse ponto, ele acaba se tornando um modelo híbrido, diferente daquele modelo inicial espelhado no modelo americano.

 

Diferentemente do modelo dos EUA, que adotam o federalismo dual, a repartição de competências do federalismo brasileiro é híbrida, por tentar conciliar o sistema horizontal — que diz respeito às competências exclusivas e privativas de cada ente federado, algo típico do federalismo dual — com o sistema vertical — que remete às competências comuns e concorrentes da União e dos estados, algo próprio do federalismo de cooperação.

 

O federalismo brasileiro previsto na Constituição de 1988 conserva as premissas do federalismo dos EUA no que diz respeito à repartição de poderes e de competências entre os estados federados. Mas, dadas as peculiaridades do território brasileiro, que se apresenta de forma totalmente desigual, o Brasil acabou mesclando os elementos dos federalismos dual e cooperativo, no sentido de tentar solucionar os problemas de cada região — o que não ocorre nos EUA, tendo em vista que os estados já eram separados e independentes.

 

Essa repartição de competências híbrida enfrenta muitos obstáculos na prática. Cada estado-membro apresenta peculiaridades que lhe são próprias e demandam legislação eficaz para o seu desenvolvimento.

 

Os estados necessitam de uma maior autonomia, até por conta do excesso de burocratização e da mora do Congresso em legislar sobre temas urgentes e que remetam às diferentes realidades regionais.

 

ConJur — Por que a descentralização não é atingida na prática?

Vera Chemim — Temos um excesso de centralização do poder na União e condições impostas pela Constituição que acabam dificultando essa descentralização. O que se dá no Brasil é uma mera desconcentração de poder.

 

A descentralização supõe a existência de pelo menos dois entes entre os quais efetivamente se repartem tanto o poder quanto as competências de uma maneira igual. Já a desconcentração remete à hierarquia: União, depois estados e Distrito Federal, depois municípios.

 

Uma das causas dessa disfuncionalidade remete à origem do federalismo brasileiro. Historicamente, o Brasil passou de um federalismo que se pretendia dual, depois cooperativo, a partir da Constituição de 1934, passando para um federalismo nominal durante o Estado Novo e o regime militar.

 

Hoje, há um federalismo pretensamente híbrido — ou seja, seria dual e cooperativo ao mesmo tempo, embora, na prática, prepondere a centralização de poder na União, especialmente no que diz respeito ao federalismo fiscal.

 

Os estados-membros acabam tendo algumas competências subsidiárias. O parágrafo único do artigo 22 da Constituição prevê que a competência privativa da União para legislar sobre vários temas pode ser complementada pela legislação dos estados, desde que trate de questões específicas de todas as matérias representativas e desde que haja uma lei complementar federal delegando aquela competência.

 

Ou seja, se um tema é de competência privativa da União, é possível registrar uma lei complementar autorizando os estados a legislar sobre questões específicas relacionadas a esse tema.

 

Muitas vezes, na prática, essa repartição de competência é inócua. Os estados se encontram muitas vezes impedidos de legislar sobre matérias de seu interesse, específicas e peculiares à sua região, porque não há lei complementar federal delegando aquela competência.

 

O principal problema é que cada estado-membro tem as suas peculiaridades de natureza geográfica, populacional, econômica e política, o que contribui para o agravamento das assimetrias entre cada estado, além de a centralização de poder e competências na figura do ente central dificultar sobremaneira o seu desenvolvimento.

 

ConJur — Qual modelo é melhor para o Brasil? Um modelo que dê mais autonomia para os estados ou um que centralize mais questões na União?

Vera Chemim — O melhor modelo para um país com a dimensão continental do Brasil é o modelo híbrido, proposto pela Constituição, uma vez que as regiões diferem em aspecto geográfico, econômico, político e cultural.

 

O problema não reside no modelo híbrido de federalismo, mas, sim, na forma da sua operacionalização. Ele tem potencial para ser efetivamente materializado na prática, mas há negligência e omissão da União e dos estados no sentido de cobrir as lacunas legislativas relativamente aos temas de suas respectivas competências constitucionais, notadamente as concorrentes.

 

A União sabe que pode delegar competência para os estados, conforme está previsto no parágrafo único do artigo 22. Mas, se não há lei complementar autorizando os estados a legislar sobre questões específicas, os estados ficam no limbo.

 

Por sua vez, os estados não cobram nem da União e nem do Legislativo essa lei complementar autorizando-os a legislar sobre questões que são importantes para cada um deles.

 

Também há lacunas no que diz respeito às competências concorrentes. O artigo 24 da Constituição prevê que tanto União quanto estados e Distrito Federal podem legislar concorrentemente. O parágrafo 1º desse dispositivo diz que a competência da União se limita a estabelecer normas gerais. E o parágrafo 3º diz que, inexistindo lei federal com normas gerais, os estados exercerão a competência legislativa plena para atender às suas peculiaridades.

 

Já o parágrafo 2º desse mesmo artigo 24 diz que a competência da União para legislar sobre normas gerais não exclui a competência suplementar dos estados. Então, o estado pode suplementar uma lei federal que trata de normas gerais de acordo com as suas peculiaridades e necessidades.

 

Apesar de o federalismo e a separação dos poderes serem considerados cláusulas pétreas, insuscetíveis de alteração substancial, secundariamente eles não são imunes a uma reforma por meio de emenda constitucional, no sentido de transferir a competência aos entes federativos — desde que as alterações não afetem o núcleo duro das cláusulas pétreas.

 

Um exemplo disso foi a federalização de crimes contra os direitos humanos, prevista na Emenda Constitucional 45/2004. A EC também concedeu competência ao Conselho Nacional de Justiça para exercer um controle recíproco ou interno entre os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário.

 

De outro lado, existem rodovias federalizadas, estadualizadas e municipalizadas. Um trecho da BR-116 em Taboão da Serra (SP) foi municipalizado por questões de interesse de São Paulo.

 

ConJur — Quais são os principais exemplos de problemas resultantes da falta de autonomia dos estados?

Vera Chemim — De uma forma geral, as questões mais polêmicas e de difícil solução dizem respeito às searas econômica e fiscal. O problema é que o Estado adota o federalismo, mas o sistema tributário remete ao Estado unitário, em que os estados-membros dependem da União para o recebimento de recursos oriundos de arrecadação de tributos federais.

 

A descentralização fiscal não existe na prática no federalismo brasileiro. A União arrecada impostos de sua competência e parte dessa receita é transferida para os estados, que, por sua vez, também transferem receitas tributárias para os municípios.

 

Os estados não fazem nenhum esforço e não têm nenhum custo para arrecadar essas receitas. Com isso, também ficam na dependência da União com relação a esse dinheiro e não têm poder para criar impostos que vão mais ao encontro das suas necessidades. Por isso, há um engessamento das suas políticas públicas.

 

As regiões possuem peculiaridades totalmente diferentes, que demandam realmente uma autonomia total dos estados, pelo menos em algumas searas — de modo especial, a tributária. Somente por meio do exercício da sua própria competência tributária os estados e municípios podem garantir o cumprimento das suas prioridades, e não as da União, preservando a sua autonomia.

 

Se estados e municípios tivessem liberdade para criar tributos que fossem ao encontro de suas reais necessidades — e não aqueles que são impostos pela União —, eles poderiam arrecadar muito mais e não dependeriam da transferência de receita da União e da vontade do Congresso de criar lei complementar para atender às suas prioridades regionais.

 

A simples transferência constitucional do produto da arrecadação de impostos federais aos estados não garante a sua autoadministração. É inerente à autonomia dos estados a descentralização territorial do poder, no sentido de permitir que eles definam as suas próprias prioridades, independentemente das políticas definidas pela União.

 

De um lado, o artigo 155 da Constituição prevê condições extremamente rígidas para evitar abusos de natureza fiscal e macroeconômica de um estado para outro. De outro lado, essa mesma rigidez acaba inevitavelmente diminuindo a autonomia local de cada estado, com relação ao ICMS.

 

No final da história, o ente que acaba imune é a União, porque acaba tendo a maior parcela de poder político.

 

Fonte: Conjur

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