No Brasil, a atuação do Supremo Tribunal Federal tem sido intensamente discutida devido ao seu papel mais ativo nos últimos anos. As decisões a respeito das eleições de 2022, Inquérito das Fake News, 8 de janeiro, uso da tese de legítima defesa da honra no júri, prisão em segunda instância… são vários os exemplos de temas que geraram intensas discussões na imprensa, entre especialistas e na sociedade civil.
O ponto comum de todas essas questões é: qual o papel do Judiciário e qual é o limite do seu poder? Qual a linha que difere a atuação judiciária republicana, que respeita a separação de poderes, e o ativismo judicial?
Há quem defenda que não existe ativismo no Brasil, e que o papel do Poder Judiciário é de ser luz para guiar o povo, fazendo avanços democráticos que as vias legislativas não permitem, ou seja, defende-se uma postura iluminista do Judiciário, que deveria proteger direitos fundamentais e promover justiça, especialmente quando os demais Poderes falham (Barroso, 2019).
A crítica não tarda e nem é nova. A defesa do “papel iluminista” das cortes constitucionais sugere uma ausência de limitações externas, confiando apenas na vontade dos juízes – os iluminados.
Obviamente que não é possível defender, de igual forma, que o papel dos juízes se limita a ser uma máquina de aplicação da lei. O Judiciário é um espaço de tensionamentos e construções sociais, o que, por isso mesmo, exige um estudo atento de suas funções e limitações. Importa lembrar que não existe texto totalmente descolado da norma, mas a interpretação judicial não pode ser arbitrária.
O óbvio que continua sendo necessário reafirmar é: a interpretação deve estar sempre vinculada à lei.
O problema surge quando a expansão resulta em “decisionismos”, em que as decisões judiciais se baseiam mais na vontade individual dos magistrados do que em princípios jurídicos sólidos. Essa abordagem, embora pretenda corrigir falhas representativas, corre o risco de se distanciar de uma interpretação estritamente legal em favor de considerações morais ou pessoais.
Vácuo de representação
A crise de representação enfrentada pelas democracias modernas é um fator chave para compreensão da expansão do Poder Judiciário. Muitos cidadãos sentem que não são ouvidos ou que seus representantes não agem em seu interesse, gerando uma desconfiança crescente nas instituições democráticas. Essa desconexão incentiva a busca por respostas nas decisões judiciais, criando a ideia de que o STF (e as instâncias infraconstitucionais) é uma espécie de guardião mais próximo dos direitos individuais e coletivos, o que, ironicamente, tem um potencial enorme de violar esses mesmos direitos a eles confiados.
Além disso, esse tensionamento entre os poderes – que tem um sem-número de outras razões além dessas explicitadas aqui – mostra a debilidade das funções governamentais e sua falha em cumprir as promessas constitucionais pós 88.
Esse vácuo de representação cria espaço para que o Judiciário assuma um papel mais ativo e interventivo, na tentativa de suprir as falhas dos outros Poderes. No entanto, a história recente demonstra que essa expansão tem ocorrido sem o devido controle democrático, libertando-o das amarras constitucionais.
Essa crise de representação, uma das causas “de baixo” dos “poderes selvagens” que Ferrajoli enumera, é alimentada e retroalimentada pela própria incapacidade das instituições em responder às demandas sociais de maneira efetiva, do que se aproveitam alguns setores da magistratura para ocupar esse espaço de poder, decidindo de acordo com suas consciências e valores.
Salvadores da pátria
Ainda que se argumente que há pautas necessárias, que jamais avançariam sem a intervenção do Judiciário, é preciso também reconhecer que o “ativismo do bem” também é “ativismo do mal”, especialmente quando degenera para deturpar, distorcer e negar direitos fundamentais, gerando a revolta e desconfiança do jurisdicionado.
Quando isso ocorre, o que se vê é uma verdadeira autofagia do Poder Judiciário. Quando expande, degenera. Quando cresce, reduz confiança. Quando é preponderante, ameaça o próprio poder.
Ter um Judiciário “pop” — cujas pautas são constantemente discutidas na imprensa e seus membros estão assiduamente concedendo entrevistas, que são replicadas e comentadas infinitamente nas redes sociais — tem um preço alto para a democracia: cria um imaginário de juiz herói, apresentado como salvador da pátria, como ocorreu, por exemplo, no caso do mensalão com o então ministro Joaquim Barbosa e com Sergio Moro na Operação Lava-Jato.
Incomoda a visão de que essas figuras heroicas sejam apontadas como necessárias – e incensadas – para tutelar o povo, como se este não soubesse o que é melhor para si.
O populismo, como ideia de chefe como encarnação da vontade popular, ou seja, pela sua personalização – um dos poderes selvagens “do alto” – mostra que não apenas o chefe do Executivo pode se utilizar dessa forma de governar. O populismo se infiltra na esfera judicial, tornando os limites constitucionais um obstáculo ilegítimo à ação do poder daqueles que utilizam desse artifício.
Mais uma ironia. O “guardião e intérprete da Constituição” se descolando da própria em prol de um dito avanço civilizacional.
Constranger os excessos
Um Judiciário que atua como instância moral suprema, escapando aos controles democráticos essenciais, tenta se mostrar como um “superego da sociedade” (Maus, 2000), tornando crucial que a sociedade civil constantemente constranja os excessos para garantir que o Judiciário não se transforme em uma instância hegemônica, mas sim uma peça equilibrada dentro da democracia.
Não se quer, com essa constatação, sustentar a volta do juiz “boca da lei”, mas apontar o perigo da quebra dos limites constitucionais na função de julgar, permitindo que os magistrados apliquem, como regra, seus valores e ideologia, denunciando a elevação destes a fontes do Direito, transformando a esfera judicial em um jogo de azar.
Referências:
ABBOUD, Georges. Direito Constitucional pós-moderno. São Paulo: Thompson Reuters, 2021. E-book.
ABBOUD, Georges. Ativismo Judicial: os perigos de se transformar o STF em inimigo ficcional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2022.
ADEODATO, João Maurício. Jurisdição constitucional à brasileira: situações e limites. Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica, Porto Alegre, n. 2, 2004
BARROSO, Luís Roberto. Constitucionalismo Democrático: a ideologia vitoriosa do século XX. Ribeirão Preto: Migalhas, 2019.
BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro. 9ª ed, São Paulo: SaraivaJur, 2022. E-book.
FERRAJOLI, Luigi. Poderes Selvagens: a crise da democracia italiana. Trad. Alexander Araújo de Souza. São Paulo: Saraiva, 2014.
MAUS, Ingeborg. O judiciário como superego da sociedade. Trad. Martonio Lima e Paulo Albuquerque. In: Novos Estudos, nº 58, 2000, p. 183-202.
Fonte: Conjur
Deixe um comentário