Em 04 de junho de 2024 entrou em vigor a lei 14.879/2024, segundo a qual: “Altera a lei 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil), para estabelecer que a eleição de foro deve guardar pertinência com o domicílio das partes ou com o local da obrigação e que o ajuizamento de ação em juízo aleatório constitui prática abusiva, passível de declinação de competência de ofício”.
Com a promulgação da aludida nova lei, altera-se o parágrafo 1º e inclui-se o parágrafo 5º ao art. 63 do Código de Processo Civil de 2015 (“CPC/2015”). O antigo parágrafo 1º do art. 63 do CPC, ora revogado, era assim redigido: “A eleição de foro só produz efeito quando constar de instrumento escrito e aludir expressamente a negócio jurídico”. A partir da nova redação, referido artigo passa a vigorar com a seguinte redação:
“§ 1º A eleição de foro somente produz efeito quando constar de instrumento escrito, aludir expressamente a determinado negócio jurídico e guardar pertinência com o domicílio ou a residência de uma das partes ou com o local da obrigação, ressalvada a pactuação consumerista, quando favorável ao consumidor.
- 5º O ajuizamento de ação em juízo aleatório, entendido como aquele sem vinculação com o domicílio ou a residência das partes ou com o negócio jurídico discutido na demanda, constitui prática abusiva que justifica a declinação de competência de ofício.” (NR).
Não há dúvidas de que reformas legislativas podem ser benéficas a determinado sistema jurídico. Com efeito, o ponto fulcral de uma reforma legislativa, ainda mais de natureza processual, como é o caso ora em discussão, é justamente estabelecer um ponto de equilíbrio para que a celeridade, a coibição de abusos, dentre outros elementos do processo, venham a fortalecer e melhorar a defesa do direito e não a enfraquecer1. De fato, visou o legislador, com o novo regramento acima transcrito, evitar o ajuizamento de demandas em foros “aleatórios”, com o intuito de coibir o chamado “fórum shopping”, fenômeno muito verificado no âmbito do direito internacional, no qual se pratica o ato de se esquivar da competência normal de um país para tentar obter uma decisão mais favorável em outro2.
No entanto, nem sempre o legislador será bem-sucedido em suas sempre boas intenções. Isso ocorreu, por exemplo, quando da promulgação da lei 11.280/2006 que, ainda sob a vigência do Código de Processo Civil de 1973 (“CPC/1973”), acresceu-se ao art. 219 daquele código um parágrafo 5º, que dispunha que “juiz pronunciará, de ofício, a prescrição”. Apesar desta redação não constar no CPC/2015, tal código mantém a aludida regra nos arts. 332, § 1º e 487, inciso II. Nesse caso, trata-se da quebra de uma “tradição milenar – pois desde Roma a prescrição sempre foi tratada como uma exceção de direito material cuja arguição é da livre disponibilidade do devedor”3. Ainda que tecnicamente equivocada, a comunidade jurídica ainda convive com tal regramento.
No caso ora em discussão, por mais que se compreenda a intenção do legislador (claramente a de desafogar determinado foro e coibir a prática de “fórum shopping”), causa reflexos diretos no sistema arbitral, ainda que a nova regra processual não faça qualquer menção à arbitragem.
Isto porque, na arbitragem, é comum as partes elegerem uma sede, bem como câmara arbitral incumbida de administrar o processo, normalmente localizada no mesmo lugar da sede. O chamado lugar ou sede da arbitragem é aquele em que, normalmente, o processo arbitral se desenvolve, onde as audiências são realizadas e, finalmente, onde a sentença arbitral é proferida, inter alia4. Trata-se de um elemento de operacionalidade da arbitragem, em que a sede se torna de suma importância, sobretudo para os efeitos práticos do processo arbitral5.
Normalmente as cláusulas compromissórias de arbitragem, estipulam uma sede, independentemente do local do domicílio das partes ou do cumprimento das obrigações do contrato. A sede eleita, não só servirá para fixar o local de desenvolvimento do processo, mas, principalmente, para fixar o poder judiciário do respectivo local que trabalhará de forma coordenada com o juízo arbitral6, seja pela apreciação de medidas cautelares pré-arbitrais, cumprimento de cartas arbitrais, cumprimento da sentença arbitral, dentre outros, de natureza coercitiva e/ou executória.
Pela nova regra processual criada, tais medidas que normalmente seriam adotadas junto ao juízo da sede da arbitragem deverão, em tese, ser ajuizadas em locais que guardarem pertinência com o domicílio ou a residência de uma das partes ou com o local da obrigação. Tal regra, afastaria, por exemplo, o ajuizamento de determinada medida junto à sede da arbitragem, caso seja escolhida, por exemplo, São Paulo/SP, se tal local não guardar qualquer relação com o domicílio das partes ou com o local de cumprimento da obrigação contratual. Em princípio, pensa-se não ser essa a solução ideal para a arbitragem.
Em São Paulo/SP, cidade em que diversas câmaras arbitrais são sediadas, por exemplo, funcionam as chamadas Varas Empresariais e de Conflitos de Arbitragem. Devido à importância da especialização (sobretudo em arbitragem) o TJ/SP expandiu tais varas especializadas para o interior de São Paulo, com a criação da 1ª e 2ª Varas Regionais Empresariais e de Conflitos Relacionados à Arbitragem, com competência na 4ª e na 10ª Regiões Administrativas Judiciárias. Tal regra atrai a competência destas varas para todas as questões relacionadas à arbitragem, como as que foram listadas no parágrafo anterior. Com efeito, as varas especializadas, em especial as da comarca de São Paulo/SP, contam com magistrados com profundo conhecimento da matéria arbitral, o que é de suma importância para as atividades coordenadas entre tribunais arbitrais e juízes estatais, garantindo-se efetividade e segurança jurídica ao instituto e seus usuários.
A prevalecer, ipsis literis, nova regra processual do art. 63 do CPC, e, é claro, a depender das disposições de determinado contrato, perder-se-ão todas as vantagens que se teria com a competência originária das varas especializadas, uma vez que, dado que a aludida regra ignora a autonomia da vontade das partes na fixação do foro de eleição no contrato, as partes ficariam reféns, em muitos casos, de tribunais locais para tratar de questões específicas da arbitragem, que demandam certo grau de especialização.
A não ser que a nova regra processual seja interpretada de forma sistemática e coerente com as especificidades do chamado Juízo de Apoio, muito conhecido na doutrina francesa como “juge d’appui”7, isto é, assistência e colaboração com o processo arbitral, primando pela sua efetividade. A nova regra do art. 63 do CPC/2015, com efeito, é a de prevenir ajuizamento de ações em foro aleatório e não impedir que foros específicos analisem questões de arbitragem. Em outras palavras, a nova regra processual precisa ser interpretada em consonância com as especificidades das funções da sede da arbitragem.
Como já frisado alhures8, Poder Judiciário e arbitragem funcionam dentro de um sistema de intercomunicação, em que o primeiro interfere no segundo apenas no sentido da eficácia9. Ou seja, é de suma importância a cuidadosa redação dos contratos empresariais (que normalmente possui clausula de resolução de disputas pela via arbitral) de modo que se deixe clara as funções da sede da arbitragem considerando, ainda, que o Poder Judiciário do respectivo local servirá de Juízo de Apoio para eventuais medidas que escapem à jurisdição ou à atividade cognitiva dos árbitros, como medidas cautelares pré-arbitrais, cumprimento da sentença arbitral, dentre outros.
Como tal regra possui efeito imediato10 e pode causar impacto nos contratos em vigor, recomenda-se aos advogados que atentem para o regramento estabelecido pela lei vis-à-vis a competência do Poder Judiciário do local da arbitragem, fazendo com que haja um alinhamento entre a vontade das partes e a vontade do legislador prevista no novo § 1º do art. 63 do CPC, além de mitigar quaisquer percepções de abusividade, prevista no novo § 5º da referida disposição.
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1 Nesse sentido, oportuna e pertinente a lição de José Rogério Cruz e Tucci, que, com apoio nos ensinamentos de Celso Agrícola Barbi, afirma que “as sucessivas reformas processuais têm sempre o objetivo de encontrar o ponto de equilíbrio, em que a celeridade desejável não provoque o enfraquecimento de defesa do direito de cada um” (Tempo e processo. São Paulo: RT, 1997. p. 38-39)
2 Ver, a esse respeito, NUNES. Thiago Marinho. Arbitragem e Prescrição. São Paulo: Atlas, 2014, p. 139.
3 Vide, nesse sentido, THEODORO JÚNIOR, Humberto. Prescrição – Liberdade e dignidade da pessoa humana. Revista Dialética de Direito Processual, São Paulo: Dialética, nº 40, p. 64-78, jul. 2006; do mesmo autor, A exceção de prescrição no processo civil. Impugnação do devedor e decretação de ofício pelo juiz. In: FABRÍCIO, Adroaldo Furtado; CARNEIRO, Paulo Cezar Pinheiro (Coord.). Meios de impugnação ao julgado civil. Estudos em homenagem a José Carlos Barbosa Moreira. Rio de Janeiro: Forense, 2007. p. 303-323. Ver, ainda, APRIGLIANO, Ricardo de Carvalho. Ordem pública e processo: o tratamento das questões de ordem pública no direito processual civil. São Paulo: Atlas, 2011, p. 124.
4 No direito brasileiro, a escolha da sede da arbitragem configura fator que define a nacionalidade da sentença arbitral, em virtude da redação do parágrafo único do art. 34 da lei 9.307/1996: “Considera-se sentença arbitral estrangeira a que tenha sido proferida fora do território nacional”.
5 Nesse sentido, explica Adriana Braghetta: “A sede da arbitragem deve ter estrutura logística adequada para que os atos procedimentais, especialmente as audiências, se realizem sem percalços, apesar de não ser imprescindível que os atos procedimentais aconteçam na sede. A estrutura compreende hotéis, locomoção, tradução, possibilidade de obtenção de vistos, serviços de degravação das audiências, etc. No Brasil, por exemplo, ainda não é simples obter serviços de alta qualidade para gravação e degravação de audiências em línguas estrangeiras” (A escolha da sede da arbitragem. Revista do Advogado, São Paulo: AASP, ano XXVI, p. 13, set. 2006).
6 Como bem frisado por Carlos Alberto Carmona, trata-se de uma relação (entre o Poder Judiciário e a arbitragem) vista sob o prisma cooperativo (ou de “coordenação”) e jamais de supremacia ou hierarquia (ou “subordinação”). A esse respeito ver CARMONA. Carlos Alberto. Das Boas Relações entre os Juízes e os Árbitros. Revista do Advogado, São Paulo: AASP, n.º 51, pp. 17-24, out. 1997.
7 Expressão utilizada no direito francês, para caracterizar o papel dos juízes estatais perante a arbitragem (“Juiz de Apoio”). No âmbito do direito francês, Philipe Fouchard discorre como o Presidente do “Tribunal de Grande Instance” coopera com o sistema da arbitragem, como, por exemplo na formação do Tribunal Arbitral. (La coopération du Président du Tribunal de Grande Instance à l’Arbitrage. Philippe Fouchard: Écrits – Droit de l’arbitrage e droit du commerce international. Paris: Comité français de l’arbitrage, 2007. p. 5-33).
8 Ver, a esse respeito: O Poder Judiciário da sede da arbitragem: o “juge d’appui” – Migalhas. Acesso em 18 jun. 2024.
9 PARENTE. Eduardo de Albuquerque. Processo arbitral e Sistema. São Paulo: Atlas, 2012.
10 CPC, “Art. 14. A norma processual não retroagirá e será aplicável imediatamente aos processos em curso, respeitados os atos processuais praticados e as situações jurídicas consolidadas sob a vigência da norma revogada.”
Fonte: Migalhas
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