A partir da Constituição de 1988, o contribuinte tem o direito ao contraditório em processo administrativo e judicial, com ampla defesa, com os meios e recursos próprios, nos termos do artigo 5º, LV, CF/88. [1]
Portanto, para todo o crédito tributário exigido de ofício, em que a constituição do título executivo extrajudicial é feita de forma unilateral pela Fazenda Pública, há de se ofertar ao contribuinte o direito a contraditar a exigência fiscal, ainda na via administrativa, para depois ingressar com o contencioso judicial, se necessário.
Atualmente, este contencioso administrativo representa uma oportunidade importante para que o contribuinte discuta e resista à pretensão da Fazenda Pública da exigência fiscal em todos os entes tributários: União, estados, Distrito Federal e municípios, cada um com a sua legislação própria e composição dos tribunais que julgarem adequada para as suas realidades. Tal diversidade normativa, evidentemente, é um fator complicador para o exercício da defesa administrativa, o que já poderia ter sido resolvido há muito tempo com a edição de uma lei geral nacional tratando das normas gerais do contencioso administrativo tributário, que até agora não ocorreu.
Outro problema não solucionado é a ausência do contencioso administrativo estruturado para os pequenos municípios, nos quais muitas vezes, o julgamento do lançamento é feito pelo colega agente fiscal ou pelo secretário de finanças municipal, modelo não condizente com um contencioso administrativo com julgamento imparcial, seguro e justo e em nada se alinha com os desígnios constitucionais.
Com a reforma tributária tão ambiciosa em andamento, já aprovada pela Emenda Constitucional nº 132/2023, faltando agora a edição das inúmeras leis complementares para a sua regulamentação, teremos uma nova era no processo administrativo tributário, com profundas inovações, algumas positivas, e outras negativas, ou pelo menos discutíveis no plano jurídico.
A regulamentação do novo processo administrativo tributário está contida no PLP 108/2024, que institui o Comitê Gestor do Imposto sobre Bens e Serviços (CG-IBS), e dispõe sobre o processo administrativo tributário relativo ao IBS, entre outras providências.
O material para análise é extenso, mas dada a limitação de espaço, pretendemos neste artigo enfocar apenas alguns pontos que merecem destaque, ou por que aprimoram o processo ou pela sua inadequação jurídica e que merecem ajustes para evitar retrocessos.
Como aspecto positivo deve-se destacar:
- A uniformização do sistema processual para todos os estados, Distrito Federal e municípios, livrando o contribuinte da obrigatoriedade de conhecer diversas legislações processuais administrativas do modelo atual.
- A reforma também soluciona o problema da inexistência do contencioso estruturado nos municípios de menor porte, ao qual nos referimos linhas acima. No modelo proposto, todos os contribuintes terão igualdade no direito contraditório, seja ele de um estado ou de um município de pequeno porte.
- Os provimentos vinculantes são de grande valia na solução das lides no plano administrativo. Deverá o julgador observar, entre outros precedentes judiciais, as súmulas vinculantes do STF, as decisões do STF em controle concentrado da constitucionalidade, as decisões do STF afetadas pela repercussão geral, bem com aquelas proferidas pelo STJ em rito repetitivo (art. 91 PLP 108/2024). Fica a única ressalva para o § 4º deste artigo, que determina que a autoridade julgadora submeta o seu julgamento à apreciação prévia da “representação fazendária competente” para examinar a identidade entre a matéria tratada no processo administrativo e as decisões vinculantes paradigmas, presumindo, talvez, que o julgador não tenha o condicionamento técnico jurídico para tal investigação.
- Ponto positivo também para a uniformização da jurisprudência administrativa, que decorre do próprio modelo concebido da reforma tributária, que é um avanço na previsibilidade determinante da tão almejada segurança jurídica.
Evitando um retrocesso desnecessário
Há outras questões, no entanto, que merecem ser melhor analisadas e ajustadas, porque não se alinham com o propósito de avanço na melhoria do processo, podendo representar um retrocesso desnecessário.
O primeiro ponto é mais uma observação. O PLP 108/2024 trata do CG do IBS e ITCMD, impostos arrecadados pelos estados, Distrito Federal e municípios e o respectivo processo administrativo tributário, não dispondo sobre a CBS, IS, que são tributos de competência da União, o que rivaliza com a tão propagada simplicidade do sistema tributário, inclusive com relação ao processo administrativo tributário.
O exíguo prazo para as impugnações de 20 dias (artigo 83, §1º) contra o lançamento de ofício nos parece um outro ponto negativo. Hoje este prazo, pelo menos em alguns entes tributantes, é de 30 dias.
É preciso lembrar que os procedimentos de fiscalização, por vezes, são realizados durante meses, até 180 dias em alguns casos, envolvendo pesquisas complexas e análise de uma infinidade de quantidade de documentos, planilhas e controles, pesquisa da legislação pertinente ao fato sob investigação, resultando na elaboração de extensos relatórios, com a documentação de prova anexada, o que demanda de um tempo razoável para análise por parte do sujeito passivo, para estruturar a sua defesa.
Não faz sentido esta diminuição do prazo de 20 dias conforme pretendido. Nem mesmo o argumento da desejada celeridade processual autoriza qualquer manobra legislativa que possa militar contra o pleno exercício do direito de defesa.
É temerária a prescrição da possibilidade de saneamento do lançamento, no todo ou em parte, pela autoridade lançadora em face da impugnação (artigo 83, º 4º) [2]. Por uma leitura possível deste dispositivo, a autoridade lançadora poderá incorrer em qualquer erro de fato ou de direito, com a possibilidade de retificá-lo após ser alertada pelas razões da defesa, como se o lançamento fosse uma espécie de minuta ou uma proposição inicial do ato, sem compromisso com a higidez jurídica e certeza na exigência do crédito tributário.
Não existe a figura de lançamento provisório; o sistema convive com o lançamento definitivo após notificado ao sujeito passivo. Esta questão deve merecer uma discussão aprofundada que não faremos aqui por ser inadequada aos propósitos do artigo.
Entendemos como negativo também a previsão das sessões de julgamento por meio virtual, de forma exclusiva, com perda de qualidade nas discussões e debates das matérias examinadas. Sessões presenciais são mais produtivas do ponto de vista de elucidação dos fatos, com troca de ideias, tudo para evitar erro de julgamento.
A praticidade e economia orçamentária não justificam esta opção legislativa. Sabemos da dificuldade das reuniões presenciais, dada a abrangência da competência judicante, mas não há como não reconhecer este ponto desabonador de um julgamento de qualidade.
Para os defensores da paridade na composição dos tribunais administrativos, entre julgadores da Fazenda Pública e representantes dos contribuintes, o projeto reformista frusta em certa medida. Isto porque as câmaras de julgamento da primeira instância serão formadas, exclusivamente, por agentes fiscais com competência para lançar crédito tributário, sem a participação de representantes do contribuinte (artigo 104).
Na instância recursal, embora haja paridade entre os julgadores, o presidente, que terá o voto de desempate, deverá ser indicado entre os servidores da Fazenda Pública (artigo 106, §§ 3º e 5º), E por fim, a câmara superior do IBS, competente para as decisões de uniformização da jurisprudência, será composta exclusivamente por servidores de carreira do estado, do Distrito Federal e dos municípios.
Conforme advertido no início deste artigo, o tema oferece conteúdo para uma análise muito mais ampla e aprofundada sob diversos aspectos. Limitamos o nosso texto a abordar apenas alguns pontos essenciais em favor da sua brevidade. Uma reforma tributária desta dimensão, inclusiva a do processo administrativo, precisa de um amplo debate entre os estudiosos e militantes da área, para garantir a operatividade no mundo prático.
Pela regulamentação até agora divulgada, surge a incerteza sobre o cumprimento dos propósitos de simplificação do sistema tributário. Esta preocupação também deve estar presente na configuração definitiva do processo administrativo tributário para que a reforma represente um avanço neste campo que consagra o direito ao contraditório e não venha perpetuar a complexidade atual.
[1] “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
LV – aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;”
[2] Art. 83 … § 4º A autoridade julgadora, antes de decidir pela vinculação, ouvirá a representação fazendária competente sobre a identidade entre a matéria tratada no processo administrativo tributário e os atos vinculantes descritos neste artigo.”
Fonte: Conjur
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