- Introdução
Suponha uma ação de reconhecimento de união estável. Se o réu vem a falecer no curso da ação, indaga-se: Quem lhe deverá suceder, o espólio ou seus herdeiros?
A resposta depende do rastreamento da relação de direito material, dada pelo Direito Civil, visto que a legitimidade processual ad causam é um reflexo.
- Espólio não é necessariamente o sucessor processual no caso de morte da parte
Em regra, o espólio sucede a parte que falece no curso do processo (arts. 110 e 313, § 2º, do CPC1). Isso, porque o espólio é o sujeito de direito despersonalizado que aglomera, em si, todos os direitos e deveres do falecido enquanto não sobrevier a partilha de bens (art. 1.791, parágrafo único, do Código Civil2).
Há, porém, exceções. Há casos em, com a morte de uma parte, não necessariamente o espólio será o seu sucessor processual. Eventualmente, o sucessor processual tem de ser seus herdeiros pessoalmente ou até mesmo um terceiro que venha a ter-se tornado o titular do direito sub judice, e não o espólio.
Isso, porque a legitimidade processual ad causam tem de espelhar os polos da relação de Direito Material envolvida. O que está em discussão após a morte da parte no curso do processo é saber quem passou a ter – na relação jurídica de Direito Material – a titularidade da res in judicium deducta.
O próprio art. 110 do CPC dá respaldo para tal interpretação, ao mencionar que a sucessão processual pode dar-se pelos sucessores do falecido, e não apenas pelo espólio. Esses sucessores devem ser entendidos como as pessoas que passam a integrar a relação de direito material com o falecimento da parte.
Em termos didáticos, pode-se dizer que a definição do sucessor processual no caso de morte da parte no curso do processo coincide com a identificação de quem teria legitimidade ad causam caso o feito supostamente tivesse sido ajuizado post mortem.
- Critério para identificar legitimidade ad causam do espólio: O interesse comunitário do ecossistema sucessório
O critério adequado para identificar a legitimidade ad causam do espólio para suceder processualmente o falecido em ações judiciais é a presença do que chamamos de interesse comunitário do ecossistema sucessório. O espólio não tem legitimidade ad causam quando o feito envolver interesse meramente individual de alguns herdeiros.
Explica-se.
O ecossistema sucessório é composto por todos os envolvidos na sucessão mortis causa, como credores, herdeiros, testamenteiro etc. Para a tutela do interesse comunitário deles, o ordenamento jurídico criou o espólio, um sujeito de direito despersonalizado incumbido de velar, com imparcialidade, por esse interesse comunitário.
A estrutura do espólio é desenhada para esse fim. Por isso, o custeio das atividades do espólio é feito com dinheiro do próprio acervo hereditário, como gastos com honorários de advogados e peritos, custas judiciais, eventual pro labore devido ao inventariante etc.
Não pode essa estrutura comunitária estar a serviço de interesse meramente pessoal de qualquer dos herdeiros. A energia do inventariante, o patrimônio do monte-mor e os demais elementos da estrutura do espólio não são para a tutela de interesses individuais dos herdeiros, e sim do interesse comunitário de todos os integrantes do ecossistema sucessório.
O espólio atua com imparcialidade entre os integrantes do ecossistema sucessório, sem patrocinar o interesse meramente pessoal de nenhum deles: O espólio não é advogado pessoal de nenhum herdeiro.
No ponto, de forma bem gráfica, basta lembrar que o inventariante não necessariamente será um herdeiro. Pode ser, por exemplo, um credor ou até mesmo um terceiro nomeado como inventariante dativo (arts. 75, § 1º, e 617 do CPC). Isso demonstra que o espólio tem razão de ser fundada na tutela imparcial do interesse comunitário do ecossistema sucessório.
Por isso, não cabe ao espólio interferir nos eventuais litígios entre os herdeiros nem entre estes e outros potenciais herdeiros ou meeiros. Conflitos como esses restringem-se ao campo estritamente pessoal de cada herdeiro; não versam sobre o interesse comunitário do ecossistema sucessório.
Aliás, soaria teratológico que os recursos e a energia do espólio fossem despendidos para proteger um grupo de herdeiros que sejam familiares do falecido e que não queiram reconhecer um terceiro como familiar.
- Sucessão processual no caso de morte no curso de ações de estado
Conforme já realçado, o espólio só sucede processualmente o falecido nas ações que cuidarem de questão de interesse comunitário do ecossistema sucessório.
Assim, a título ilustrativo, ações meramente patrimoniais de que o falecido era parte, como eventual ação de indenização ou uma reclamação trabalhista, admitem a sucessão pelo espólio. Cuida-se aí de tutela do interesse comunitário do ecossistema sucessório em resguardar os itens do monte-mor.
Já em se tratando de ações de estado, como uma ação de investigação de paternidade, o espólio não detém legitimidade ad causam para suceder processualmente o falecido. Isso, porque esses feitos veiculam interesses meramente pessoais dos herdeiros que são familiares do falecido, e não o interesse comunitário do ecossistema sucessório.
Esses interesses individuais dos familiares do falecido são de ordem patrimonial e existencial.
O interesse patrimonial é pelo fato de que o êxito na ação de estado poderá vir a aumentar o número de herdeiros ou a reduzir o monte-mor partilhável diante da existência de uma meação. Nessas hipóteses, o quinhão devido aos demais herdeiros quando da partilha será reduzido, o que denuncia a presença de um interesse patrimonial pessoal dos herdeiros na ação de estado. A entrada de novos herdeiros no ecossistema sucessório pode reduzir a fatia patrimonial devida aos demais herdeiros.
O interesse existencial dos familiares diante das ações de estado que existiam contra o falecido relaciona-se com os direitos da personalidade deles.
O sucesso na ação de estado poderá alterar a árvore familiar do falecido, com o ingresso de um novo membro da família. Essa mera alteração da composição da árvore genealógica já gera, por si só, impactos existenciais nos demais familiares herdeiros, que estarão vinculados existencialmente com o novo membro. Cuida-se de direito da personalidade dos familiares herdeiros.
Igualmente, o bom termo da ação de estado poderá impactar direitos da personalidade do próprio falecido, com possibilidade, inclusive, de abalar negativamente aspectos existenciais dele, ao menos sob a ótica dos demais familiares.
Pense, por exemplo, que, com a procedência da ação de investigação de paternidade, fique desmascarada a vida dupla que o autor da herança levava, ostentando, de um lado, a aparência de uma pessoa extremamente leal à sua esposa e vivendo, à furtiva, relacionamentos extraconjugais.
Basta imaginar como a viúva se sentiria ao tomar ciência disso. O abalo reputacional aí poderia ir além do âmbito familiar e chegar a uma mancha reputacional social. Imagine, por exemplo, que o falecido era um importante político que edificara sua carreira dentro de uma agenda de defesa intransigente da família e da lealdade matrimonial. O sucesso da ação de investigação de paternidade poderia demolir, de vez, a reputação moralista do autor da herança.
O espólio não desfruta de legitimidade ad causam para agir como advogado pessoal de cada herdeiro. Não é um leão de chácara a ser manipulado por herdeiros para combater a eventual entrada de novos integrantes do ecossistema sucessório ou para tutelar direitos da personalidade desses herdeiros.3
Em igual diapasão, retine a jurisprudência do STJ, que é assente no sentido de que os herdeiros familiares do falecido são partes legítimas para ações de investigação de paternidade post mortem, e não o espólio. Confira-se4:
“3- Por se tratar de ação de estado e de natureza pessoal, a ação de investigação de paternidade em que o pretenso genitor biológico é pré-morto deve ser ajuizada somente em face dos herdeiros do falecido e não de seu espólio (…).” (STJ, REsp 1.667.576/PR, 3ª Turma, rel. ministra Nancy Andrighi, DJe 13/9/19)
“1. A jurisprudência desta Corte é pacífica no sentido de que é essencial, sob pena de nulidade, a integração à lide, nas ações de investigação de paternidade, como litisconsorte necessário, do pai registral, ou de seus herdeiros, caso já falecido.” (STJ, AgInt nos EDcl no REsp 1.734.515/RN, 4ª Turma, rel. min. Raul Araújo, DJe 19/2/19)
Idêntico raciocínio deve ser estendido às ações de reconhecimento ou dissolução de união estável existentes contra o falecido. A sucessão processual tem de recair sobre os herdeiros familiares, e não sobre o espólio, porque inexiste aí interesse comunitário do ecossistema sucessório.
- Quais familiares devem suceder processualmente o falecido nas ações de estado?
Os herdeiros familiares são as partes legítimas para suceder processualmente o falecido nas ações de estado. Indaga-se, porém: Que familiares devem ser considerados para tanto?
Entendemos que devem ser levados em conta como parte legítima aqueles que, dentro da ordem de vocação sucessória de que trata o art. 1.829 do Código Civil, sejam os contemplados prioritariamente.
Se o falecido tiver deixado viúvo e descendentes, eles serão os sucessores processuais do falecido nas ações de estado.
Já na hipótese de o falecido não ter deixado filhos nem cônjuge como herdeiros, a legitimidade ad causam para as ações de estado deverá recair sobre os herdeiros colaterais prioritários na ordem de vocação hereditária.
- Operacionalização processual para a convocação dos sucessores processuais nas ações de estado
Do ponto de vista processual, quais são as particularidades processuais na sucessão processual do falecido nas ações de estado?
No caso de morte do autor da ação, é dever dos seus próprios familiares pleitearem a sucessão processual, sob pena de eventual extinção do processo (arts. 110 e 313, § 2º, II, CPC5).
Já no caso de morte da parte ré em uma ação de estado, o autor da ação deverá buscar identificar esses herdeiros familiares mediante busca de informações em eventual processo de inventário que venha a ser aberto.
Lembre-se de que os herdeiros têm o dever jurídico de abrir o inventário no prazo de 2 meses (art. 611 do CPC). Em não havendo a abertura do inventário e não dispondo o autor da ação de documentos comprobatórios de quem são os herdeiros da falecida parte ré, entendemos viável a realização de citação por edital dos possíveis herdeiros por estes estarem em local desconhecido ao autor (art. 256, I, do CPC). Afinal de contas, a não abertura do inventário no prazo legal é um ilícito praticado pelos familiares, e uma das consequências de sua violação é estar sujeito a citações por edital em casos como o citado.
O que não se pode admitir, jamais, é que o espólio seja considerado o sucessor processual em ações de estado, como a de reconhecimento ou dissolução de sociedade de união estável, tendo em vista que aí há a predominância de interesse individual e pessoal de cada herdeiro familiar.
Não se ignora a existência de um precedente isolado de apenas uma das turmas do STJ admitindo que, no caso de haver apenas herdeiros colaterais, o espólio figurasse no polo passivo de uma ação de reconhecimento e dissolução de sociedade de fato/união estável post mortem (STJ, REsp 1.759.652/SP, 3ª Turma, rel. min. Paulo de Tarso Sanseverino, DJe de 25/9/20).
Esse julgado, todavia, nos parece muito pontual e isolado, inapto a contrapor-se à tese ora defendida.
Em primeiro lugar, o caso concreto envolvia uma decisão do juiz de primeiro grau que determinou a emenda à inicial para a inclusão de parentes colaterais da falecida como litisconsortes necessários do espólio em uma ação de reconhecimento e dissolução de união estável post mortem. Não se cuidava, portanto, de discussão de sucessão processual pela morte da parte ré em uma ação como essa.
Em segundo lugar, o referido precedente é isolado, de apenas uma das turmas do STJ, refletindo uma posição que, a nosso sentir, nos parece precária e que não resistiria a novas reflexões da mesma turma do STJ.
Em terceiro lugar, parece-nos que dificilmente o mesmo entendimento seria adotado pela outra Turma do STJ que julga questões de Direito Privado, pois é totalmente inadequado que a estrutura do espólio seja utilizada para o patrocínio de interesses meramente pessoais de herdeiros familiares, em vez de estar a serviço apenas de interesses comunitários do ecossistema sucessório.
__________
1 Art. 110. Ocorrendo a morte de qualquer das partes, dar-se-á a sucessão pelo seu espólio ou pelos seus sucessores, observado o disposto no art. 313, §§ 1º e 2º. Disponível aqui.
Art. 313. Suspende-se o processo: (…)
(…)
- 2º Não ajuizada ação de habilitação, ao tomar conhecimento da morte, o juiz determinará a suspensão do processo e observará o seguinte:
I – falecido o réu, ordenará a intimação do autor para que promova a citação do respectivo espólio, de quem for o sucessor ou, se for o caso, dos herdeiros, no prazo que designar, de no mínimo 2 (dois) e no máximo 6 (seis) meses;
II – falecido o autor e sendo transmissível o direito em litígio, determinará a intimação de seu espólio, de quem for o sucessor ou, se for o caso, dos herdeiros, pelos meios de divulgação que reputar mais adequados, para que manifestem interesse na sucessão processual e promovam a respectiva habilitação no prazo designado, sob pena de extinção do processo sem resolução de mérito.
2 Art. 1.791. A herança defere-se como um todo unitário, ainda que vários sejam os herdeiros.
Parágrafo único. Até a partilha, o direito dos co-herdeiros, quanto à propriedade e posse da herança, será indivisível, e regular-se-á pelas normas relativas ao condomínio.
3 Sobre o tema, Conrado Paulino Rosa e o saudoso Cristiano Chaves de Farias dão igual lição em sua obra “Ações de Família na Prática”, in verbis: “Por óbvio, somente se faz necessária a sucessão processual quando o óbito ocorre durante o andamento do procedimento. Em se tratando de propositura de ação que verse sobre interesse patrimonial (indenizatória, por exemplo), depois da morte do réu, a legitimidade é do seu espólio, devendo ser representado pelo inventariante, se já houver, ou, não havendo ainda, pelo administrador provisório. Se, contudo, a demanda disser respeito a interesses existenciais (como uma investigação de paternidade post mortem ou uma adoção póstuma), a legitimidade dos herdeiros, e não do espólio.”
4 Além dos julgados supracitados, há estes: STJ, REsp 1466423/GO, 4ª Turma, Rel. Ministra Maria Isabel Gallotti, DJe 02/03/2016; REsp: 1028503/MG, 3ª Turma, Rel. Ministra Nancy Andrighi, DJe 09/11/2010; REsp: 331842/AL, 3ª Turma, Rel. Min. Antônio de Pádua Ribeiro, DJ 10/06/2002; REsp 120622/RS, 3ª Turma, Rel. Min. Waldemar Zveiter, DJ 25/02/1998.
5 Art. 110. Ocorrendo a morte de qualquer das partes, dar-se-á a sucessão pelo seu espólio ou pelos seus sucessores, observado o disposto no art. 313, §§ 1º e 2º. Disponível aqui.
Art. 313. Suspende-se o processo: (…)
(…)
- 2º Não ajuizada ação de habilitação, ao tomar conhecimento da morte, o juiz determinará a suspensão do processo e observará o seguinte:
I – falecido o réu, ordenará a intimação do autor para que promova a citação do respectivo espólio, de quem for o sucessor ou, se for o caso, dos herdeiros, no prazo que designar, de no mínimo 2 (dois) e no máximo 6 (seis) meses;
II – falecido o autor e sendo transmissível o direito em litígio, determinará a intimação de seu espólio, de quem for o sucessor ou, se for o caso, dos herdeiros, pelos meios de divulgação que reputar mais adequados, para que manifestem interesse na sucessão processual e promovam a respectiva habilitação no prazo designado, sob pena de extinção do processo sem resolução de mérito.
Fonte: Migalhas
Deixe um comentário