A utilização de banheiro é algo tão prosaico que nos faz questionar se somos uma sociedade evoluída a ponto de já termos resolvido todos os problemas centrais existentes que podemos nos permitir discutir acerca de qual o preceito adequado a definir onde cada pessoa deve fazer suas necessidades fisiológicas ou se estamos atrasados de tal maneira que ainda nos preocupamos com o local onde as pessoas urinam e defecam.1

 

De qualquer sorte ainda que não se tenha legalmente estabelecido se o que define a utilização de banheiros segregados é o sexo (a compleição física da pessoa) ou o gênero (expressão sociocultural de sexualidade), esse é um tema cuja discussão gera muita celeuma. Sequer há uma definição na nomenclatura distintiva a ser utilizada nesses espaços, o que acaba se constituindo em um problema social.

 

Evidente que a questão não reside na utilização em si de um vaso sanitário mas sim da presença de pessoas de sexo/gênero distintos no mesmo local, o que revela em si o nosso fracasso como sociedade já que a mera presença de pessoas distintas no mesmo espaço se configura como um potencial risco.

 

O posicionamento adotado pela maioria das pessoas lastreia-se em meros achismos ou mesmo no terror criado contra a existência das pessoas que não se enquadram no padrão de normalidade posta. Trata-se de uma questão que gera enorme impacto para a existência das pessoas transgênero, causando inúmeros problemas de saúde e sociais.2

 

Uma situação envolvendo a utilização de banheiro por pessoas transgênero chegou ao STF, no RE 845.779. A decisão recorrida tinha como pano de fundo o pleito de indenização por danos morais decorrente da vedação de que uma mulher transgênero usasse o banheiro vinculado à sua identidade de gênero. O fato ocorrido em um shopping em Florianópolis acabou com a pessoa fazendo suas necessidades fisiológicas na roupa e tendo que retornar para sua casa com as roupas sujas.

 

Em 1ª instância houve a condenação do shopping, contudo o TJ/SC entendeu que o fato teria configurado apenas um “mero dissabor”, afastando a incidência de qualquer dano moral.

 

Já no STF, em 2014, reconheceu-se a repercussão geral da matéria (Tema 7783), entendendo se tratar de “Recurso extraordinário em que se discute, à luz dos arts. 1º, III, 5º, V, X, XXXII, LIV e LV, e 93 da Constituição Federal, se a abordagem de transexual para utilizar banheiro do sexo oposto ao qual se dirigiu configura ou não conduta ofensiva à dignidade da pessoa humana e aos direitos da personalidade, indenizável a título de dano moral”.

 

Em 2015 o ministro Luis Roberto Barroso, relator do recurso, votou fixando a tese que pessoas transgênero “têm direito a serem tratadas socialmente de acordo com a sua identidade de gênero, inclusive na utilização de banheiros de acesso público”, acompanhado em seu voto pelo ministro Edson Fachin. Na sequência o ministro Luiz Fux pediu vista, restando o processo parado até 2024.

 

Na apresentação de seu voto-vista, quase 10 anos depois, o ministro Luiz Fux manifestou-se entendendo que não haveria no caso concreto um elemento constitucional, mas somente uma questão de cunho fático vinculado a danos morais, de forma que teria de negar-se seguimento ao recurso, cancelando-se, ato contínuo, a repercussão geral conhecida.

 

Em seguida os ministros Flávio Dino, Cristiano Zanin, André Mendonça, Nunes Marques, Dias Toffoli e Gilmar Mendes acompanharam o voto-vista, tendo a ministra Cármen Lúcia seguido o voto do relator.

 

Trazidos os elementos fundamentais do tema cumpre destacar que o presente texto não tem por objetivo discutir o mérito em si da decisão proferida pelo STF, nem mesmo discorrer profundamente sobre o seu objeto. O que se questiona é quais os sinais que uma decisão desse jaez passa para a sociedade no atual momento.

 

Não se questiona a existência da possibilidade de que ocorra uma revisão de uma decisão que tenha reconhecido repercussão geral, conforme disposto no art. 323-B do Regimento Interno do STF. Compreende-se também a premissa que pautou o voto-vista do Min. Luiz Fux de que a decisão recorrida, proferida pelo TJ/SC tenha se lastreado na falta de provas de que a abordagem à recorrente tenha se dado de forma “rude ou impulsionada por preconceito ou transfobia”.

 

Há também respaldo para a assertiva trazida no voto-vista de que o STF há de estar atento aos limites impostos pela sistemática processual e que a competência recursal seja respeitada. Contudo impõe-se a atenção ao argumento consignado pelo ministro Luis Roberto Barroso de que o reconhecimento da repercussão geral se atem à compreensão de que o fato revela uma natureza constitucional e que o preconceito contra pessoas transgênero é claramente um fato constitucional.

 

Encerrar o julgamento do RE 845.779 sem apreciar o mérito depois de tanto tempo tem um impacto social terrível. Além da óbvia consequência de manter a questão sem uma solução traz uma impressão para a sociedade de que o tema é irrelevante, além de permitir que se deturpe a questão possibilitando que pessoas mal-intencionadas manipulem a informação e induzam os menos versados a acreditar que o STF teria negado o direito às pessoas transgênero.

 

Manter um processo parado por quase 10 anos para depois encerrá-lo por uma questão técnica não configura em si nenhuma ilegalidade mas expressa claramente o tipo de consideração que recorrentemente se destina a temas que se relacionam com os direitos e interesses das minorias sexuais.

 

Inusitado se ponderar que a justificativa apresentada pelo ministro Luiz Fux para o pedido de vista que interrompeu o julgamento em 2015 assentava-se na assertiva de que seria necessário que a sociedade fosse ouvida pois o tema do uso de banheiro por pessoas transgênero encerraria “desacordo moral razoável”.

 

O desvio que recai sobre os direitos das minorias sexuais é tamanho que se considera pertinente que a manifestação da opinião pública possa gozar de algum impacto na sua concessão.4 Mais uma vez é possível se vislumbrar o manejo da legislação processual como um meio de perpetuar a exposição das pessoas transgênero, mantendo-a vulnerabilizada e apartada do acesso aos direitos mais fundamentais.

 

Não foi um aspecto processual que fez com que o ministro Luiz Fux pedisse vista. Reter o andamento do processo por quase 10 anos tampouco goza de plausibilidade. Parâmetros processuais puderam ser ignorados enquanto desfavoreciam pessoas transgênero, contudo esses se tornaram intransponíveis para lhes conferir a proteção que a Constituição Federal garante.

 

O alegado risco de vulgarização da jurisdição constitucional não pautou o posicionamento do STF durante todo o período que o recurso ficou parado, permitindo que a condição de genocídio vivenciado pelas pessoas transgênero5 em nosso país persistisse e se aprofundasse.

 

Mais vale não “vulgarizar a jurisdição constitucional” do que garantir a existência de um grupo social? Então pode-se permitir que todas as mazelas sigam recaindo sobre as pessoas transgênero? Pode a instrumentalidade processual sobrepor-se à proteção das pessoas?

 

Não parece ser esse o preceito nuclear de um Estado Democrático de Direito. Entre proteger a aspectos processuais e resguardar os ditames nucleares da Constituição Federal é inquestionável que esse último há de prevalecer. Toda preliminar processual é transponível quando se trata de fazer valer o objeto fundante do texto constitucional.

 

A todas as pessoas a Constituição Federal assegura os direitos fundamentais, contudo se essa pessoa for uma pessoa transgênero haveria algum tipo de análise a ser realizada, lastreada na opinião pública, para que a sua dignidade humana seja respeitada… Como se pudesse ser suscitado algum questionamento acerca de se conferir às pessoas transgênero os direitos mais elementares que são ofertados a toda e qualquer pessoa.6

 

Contudo não se pode jamais olvidar que toda essa questão tem como lastro a absurda leniência legislativa7 que marca o nosso Estado Esquizofrênico.8 Exigir que o Tribunal Constitucional se manifeste sobre temas tidos por ordinários mas que alçam um “grau de complexidade” extremo apenas por se tratar da busca da proteção de minorias sexuais é uma constante em nossa realidade.

 

Basta considerar que em 2011 do STF teve que se manifestar sobre a adequação de se aplicar analogia em um caso de lacuna da lei, fato que dificilmente chegaria às suas mãos caso não se tratasse de uma questão atrelada à sexualidade e aos direitos das minorias sexuais, como se deu no julgamento da ADI 4.277 que reconheceu a possibilidade da união estável entre pessoas do mesmo sexo.9

 

Não busco questionar a tecnicidade que envolve a decisão mas é preciso ressaltar que o fim precípuo do STF de defensor da Constituição Federal restou ignorado. Infelizmente faltou sensibilidade ao guardião do Estado Democrático de Direito que negou a uma das parcelas mais vulneráveis da população o reconhecimento de seus direitos fundamentais, aprofundando sua marginalização ao não se posicionar de forma a simplesmente resguardar os direitos mais basilares que existem.

 

Negar a efetivação dos direitos fundamentais a um grupo vulnerabilizado sob o argumento de um eventual risco de vulgarização da jurisdição constitucional parece ser uma escolha muito simples e que foge do cerne da questão.

 

Há de se garantir a vida e a existência daqueles que claramente vivenciam uma situação de estado inconstitucional de coisa. Entre a proteção de uma preliminar processual, como fundamentado no voto vencedor, e as bases da democracia, evidentemente devemos pugnar pela vida das minorias.

 

Enquanto persistir essa realidade de oferta seletiva dos direitos fundamentais estaremos atentando contra as premissas mais básicas de uma democracia, e será primordial que se continue a repetir que pessoas transgênero existem, são cidadãos e merecem ver garantidos a si os mesmos direitos franqueados a todos.

 

_________

 

1 CUNHA, Leandro Reinaldo da. RIOS, Vinícius Custódio. Mercado transgênero e a dignidade da pessoa humana sob a perspectiva do capitalismo humanista, Revista dos Tribunais: RT, São Paulo, v. 105, n. 972, p. 165-184, out. 2016, p. 167.

 

2 HERMAN, Jody L.. Gendered restrooms and minority stress: The public regulation of gender and its impact on transgender people’s lives. Journal of Public Management & Social Policy, 19(1), 65-80.

 

3 Tema 778: “Possibilidade de uma pessoa, considerados os direitos da personalidade e a dignidade da pessoa humana, ser tratada socialmente como se pertencesse a sexo diverso do qual se identifica e se apresenta publicamente”

 

4 Disponível aqui.

 

5 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Genocídio trans: a culpa é de quem?. Revista Direito e Sexualidade. Salvador, v.3, n.1, p. I – IV, 2022.

 

6 CUNHA, Leandro Reinaldo da; CAZELATTO, Caio Eduardo Costa. Pluralismo jurídico e movimentos LGBTQIA+: do reconhecimento jurídico da liberdade de expressão sexual minoritária enquanto uma necessidade básica humana. Revista Jurídica – Unicuritiba, [S.l.], v. 1, n. 68, p. 486 – 526, mar. 2022, p. 504.

 

7 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade de gênero e a responsabilidade civil do Estado pela leniência legislativa, RT 962 p. 37 – 52, 2015, p. 48.

 

8 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p 17.

 

9 CUNHA, Leandro Reinaldo da. A vara de família é a competente para apreciar e julgar pedido de reconhecimento e dissolução de união estável homoafetiva. Revista DOS Tribunais (São Paulo. Impresso), v.984, p.305 – 315, 2017.

 

Fonte: Migalhas

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