O tema da “reforma tributária” é bastante antigo. As pessoas nunca estão satisfeitas com o sistema tributário que têm, então querem sempre reformá-lo. Com as mudanças às vezes geram mais insatisfação, tão logo aprovadas já se volta a falar no assunto. Achei, dia desses, organizando documentos antigos da sala que foi de meu pai, artigo escrito por ele em 1984 sobre uma possível reforma tributária: com pequenos retoques, poderia ser quase integralmente (re)publicado agora, 40 anos depois.

 

Essa lembrança é feita não para que desistamos de aprimorar o sistema, mas para que mudanças não sejam vistas como panaceias, como maravilhas que farão a economia deslanchar, o contencioso acabar, tornando tudo maravilhoso e superando todos os males do universo. Além de incorrer em maniqueísmo que epistemologicamente é errado por si, a postura impede de ver defeitos naquilo que se pretende colocar no lugar do que temos hoje, minimizando a possibilidade de realmente se melhorar o sistema. E, pior, a postura marginaliza a crítica, silenciando vozes discrepantes daquelas que subjazem às propostas reformatórias apresentadas, o que termina amplificando a possibilidade de a reforma ser boa apenas para um pequeno grupo, invariavelmente o que maior poder e influência tem sobre o processo, a saber, o próprio Fisco e os grandes lobbies.

 

Essa postura talvez tenha contribuído para, no meio da reforma, criar-se problema para o qual ainda não se tem solução, se é que ela existe. Não sei se todos têm consciência dele. Espero que, lendo este texto, alguém demonstre que tudo não passa de fantasia pessimista minha. Ficarei muito feliz se isso ocorrer.

 

Quando, em momento mais recente, se voltou a falar em reforma tributária, com a apresentação da PEC 45/2019, a ideia inicial era criar-se um imposto sobre o valor adicionado – IVA, de competência federal. Mais um inciso no artigo 153 da CF/88, dando à União a competência, e a sujeição passiva, de um novo imposto, que substituiria IPI, PIS, Cofins, ISS e ICMS. As finanças de estados-membros, Distrito Federal e municípios, perdendo ICMS e ISS, seriam compensadas com repartição constitucional das receitas arrecadadas com o novo imposto, nos moldes dos artigo 157 e seguintes da CF/88. Tal como hoje se dá com parte da arrecadação do imposto sobre a renda, e do IPI, só que em maior escala.

 

Destino e origem

Há alguns anos, indagado por um aluno das consequências dessa reforma sobre o processo tributário, respondi: nenhuma. O novo imposto será de competência da União. Será criado por lei federal, regulamentado por decretos, portarias, instruções normativas, do Executivo federal. Administrado pela Receita Federal, caso não seja pago no âmbito do lançamento por homologação, o auto de infração será feito por auditor da Receita, e a impugnação e os recursos apreciados por DRJ e Carf. Se necessário executar, o processo será conduzido pela PGFN, que de resto representará a União nas ações, tanto no polo ativo como no passivo, relativas ao tributo. Se pago indevidamente, a restituição, se ordenada judicialmente, dar-se-á por precatório a ser honrado pela União. Tal como hoje se dá com Imposto de Renda, IPI, IOF, ITR, Imposto de Importação, PIS, Cofins, ou qualquer outro tributo federal.

 

Isso poderia ser visto como uma excessiva centralização de poderes nas mãos da União, incompatível, ainda que veiculada por emenda constitucional, com o artigo 60, §4º, I, da CF/88. Foi quando, no meio do caminho da tramitação da PEC 45/2019, surgiu a ideia, que supostamente resolveria o problema e viabilizaria a reforma que tanto se queria aprovar, do “IVA-Dual”.

 

Formado por dois pedaços, ou, como se diz no Ceará, por duas bandas, uma federal, e outra estadual e municipal, com o detalhe, destinado a “acabar com a guerra fiscal”, de ser devido no destino, e não na origem. Nesse contexto, de nada adiantaria estados pobres tentarem usar do efeito indutor do tributo para atrair investimentos e assim realizar objetivos constitucionais ligados à redução de desigualdades regionais: o imposto seria, e será, devido ao estado em que localizado o consumidor, não naquele em que estabelecido o fornecedor. Foi dentro dessa ótica que a PEC 45/2019 passou por alterações, dando origem à EC 132/2023, que a leitora já conhece.

 

Complexidade

O problema é que o Direito, a Economia, e a sociedade a que eles dizem respeito, são sistemas complexos. Tal como organismos vivos, são formados de incontáveis partes, que interagem entre si, e cuja interação dá origem a novas realidades, contextos, causas e efeitos.

 

Pense, leitora, na indústria farmacêutica: conhecem-se os efeitos de uma substância sobre o corpo humano, com base no que se sabe sobre a substância, e sobre o corpo humano. No que se sabe, que, naturalmente, é limitado. Daí por que, passado um período de testes em simuladores, e depois em animais, se fazem testes em humanos. E mesmo assim, só depois de muitos anos, ou décadas, se conhecem os possíveis efeitos colaterais. O Viagra é um exemplo disso, remédio que era testado para questões ligadas à circulação e que terminou provocando efeito colateral não previsto, mas relatado por alguns cobaias homens, o qual deu nova destinação principal ao fármaco e fez a fortuna do laboratório – e a felicidade de muitos consumidores.

 

Há também exemplos negativos, como a talidomida tomada por mulheres grávidas para combater o enjoo, mas é melhor mudar de assunto, para que a leitora não pense que está lendo artigo sobre medicina, não sobre a reforma tributária. A ideia é mostrar que, às vezes, em um sistema complexo, se mexe em um ponto, e o efeito, não esperado e não previsto, aparece onde menos se espera, lá do outro lado, e nem sempre é bom.

 

Por isso uma mudança deve contar com amplo debate em que especialistas de diversas áreas possam participar, com ênfase para aqueles que conhecem o funcionamento do sistema em sua operacionalidade prática, e não apenas os efeitos econômicos esperados na teoria.

 

O mesmo vale para a importação de soluções de outros países, algumas meras traduções literais de textos legais alienígenas. Tal como um sistema vivo, a criatura alienígena em terras exóticas pode morrer em pouco tempo, ou virar uma praga incontrolável, o que aliás justifica forte controle sanitário em viagens internacionais. Quem já tentou trazer uma plantinha viva de outro país, em viagem internacional, sabe do que se está a falar. O mesmo deveria valer para normas jurídicas.

 

“Se quiser que vá para o Judiciário”

E o que isso tem com o IVA-Dual?

 

Tem que, agora que a Constituição foi alterada, ICMS, IPI, ISS, PIS e Cofins estão literalmente com os dias contados, e se discute avidamente a criação do IBS e da CBS, ainda não se sabe como será regulamentado o contencioso judicial tributário do novo sistema de tributação do consumo.

 

Preparei a edição de 2024 do meu livro de Processo Tributário, já em dia com a EC 132/2023, escrevendo no item dedicado à reforma que não sabia como seriam resolvidos alguns problemas, como a legitimidade ativa ad causam para propor a execução fiscal, ou a competência jurisdicional para apreciar questões relativas às “duas bandas” do IVA-Dual, que precisam ser iguais por imposição constitucional (artigo 149-B, da CF/88), mas que uma delas só pode ser julgada pela Justiça Federal (CBS). Opiniei que talvez tudo deva ser unificado no Judiciário federal, até porque o Comitê Gestor, ao fim e ao cabo, é um órgão federal.

 

Eu pensava que não sabia a solução para tais enigmas, por desinformação minha, mas que as mentes que idealizaram o IVA-Dual, e a sui generis competência “compartilhada” por todos os 26 estados, pelo Distrito Federal, e pelos mais de 5000 municípios, sabiam. Sou então surpreendido pela mensagem que acompanha o PLP 108/2023, destinado a criar o Comitê Gestor e a regulamentar o processo administrativo tributário, em cujo item 23 consta:

 

“23. Neste ponto, cabe sublinhar um aspecto importante. A Reforma Tributária provavelmente demandará mudanças no Direito material tributário (sic), sobretudo no tocante aos processos relacionados à execução fiscal do IBS e às demais espécies de ações que tenham este tributo como o seu objeto  de discussão. Tal quadro requer uma reavaliação das normas processuais de regência do contencioso judicial em sede de IBS, de sorte a conformá-las à nova realidade trazida pela Reforma, o que pode envolver, inclusive, eventual reorganização judiciária. Esta discussão demanda um diálogo entre todas as partes interessadas, notadamente o Poder Judiciário, advocacia pública e privada, administrações tributárias e contribuintes. A despeito de se reconhecer a importância do tema e a necessidade de endereçá-lo, o presente Projeto de Lei Complementar não veicula a resolução destas questões, cujo disciplinamento dar-se-á em instrumentos normativos a serem oportunamente apresentados ao Congresso Nacional, que serão elaborados a partir de um amplo diálogo sobre o tema com todas as partes interessadas.”

 

O PLP 108/2024 tem muitos problemas. Cria um contencioso de IBS que não tem, de modo explícito, competência para fazer o controle interno da legalidade de atos normativos infralegais, regulamentares, editados pelo próprio Comitê Gestor. Assim, se uma ilegalidade for determinada por portaria, resolução, instrução normativa, nada poderá ser feito para corrigi-la. Todas as provas precisam ser juntadas com a impugnação, em 20 dias da intimação do lançamento, como se o fato gerador do imposto não fosse a realização de operação com bem ou serviço, mas a preclusão, e como se à autoridade não interessasse a busca pela verdade sempre, e não só ao formular uma exigência. E, para completar, só há efetiva paritariedade, com a participação de representantes da sociedade, na segunda instância, tendo-se criado uma terceira e revisora final instância que não o é, a qual naturalmente servirá para reformar todo entendimento da segunda instância um pouco menos fazendário.

 

O PLP tem esses problemas e muitos outros, mas o que se escreveu no antes transcrito item 24 da mensagem é muito mais preocupante do que todos eles juntos, até porque a justificativa que tem sido apresentada para a criação de um contencioso administrativo de faz de conta é a velha máxima de que o contribuinte “se quiser que vá para o Judiciário”… Mesmo colocando de lado o fato de que isso assoberbará (ainda mais) o trabalho de juízes, que depois culparão contribuintes e advogados pelo excesso de processos, e ainda lhes sovinarão a sucumbência “para preservar os cofres públicos”, pode-se sinceramente indagar: Para qual Judiciário!? Mover a ação contra quem?! Nem o autor do PLP sabe.

 

Eu não sei pousar!

Narrei toda essa história ao Chat-GPT, e pedi a ele para fazer uma metáfora. Não costumo usar LLMs para escrever textos meus, e quando o faço, dou o devido crédito, então, aí vai o que ele respondeu, transcrito entre aspas:

 

“Imagine alguém decidido a reformar sua casa, planejando transformar vários cômodos para criar um grande espaço aberto e integrado. Eles começam a derrubar paredes, instalar novos pisos e modernizar os acabamentos. No meio da obra, com a casa já toda desestruturada e cheia de entulho, percebem que ao unificar a cozinha, a sala e os banheiros, esqueceram de considerar o sistema de encanamento.

 

Agora, com as diferentes tubulações de água e esgoto misturadas e sem um plano claro, surgem vazamentos e problemas de drenagem. A reforma, que deveria melhorar a funcionalidade e a estética da casa, cria novos desafios que os reformadores não previram. Eles se veem diante de uma confusão hidráulica que exige uma reavaliação completa do projeto para garantir que a casa funcione corretamente e de forma eficiente.”

 

Mas os humanos, e realidade, ainda superam a máquina e a ficção. Eu esperava um desembargador, na sala de espera de seu gabinete no tribunal, para entregar-lhe a via impressa de um parecer que fiz, por encomenda de um colega advogado. Conversávamos, eu e o colega advogado, sobre o tema deste artigo, a reforma tributária e o item 23 da mensagem do PLP 108/2024, e ele narrou ter ocorrido algo parecido com um amigo de seu pai, quando, no passado, fizera um curso de pilotagem para tirar o brevê:

 

“Era uma vez um aprendiz de pilotagem, ávido por novas experiências, que chegou ao aeroclube num dia ensolarado. Ao avistar um homem uniformizado junto a um monomotor, ele perguntou:

 

– Vamos voar?

 

O homem de macacão, com um sorriso tranquilo, assentiu e acomodou-se no assento ao lado. O aprendiz, já familiarizado com as decolagens e algumas manobras básicas, ainda não dominava a arte do pouso.

 

Após algum tempo sobrevoando a cidade, o aprendiz se virou para o acompanhante e disse com naturalidade:

 

– Agora você pode pousar.

 

O acompanhante, com uma expressão de surpresa, exclamou:

 

– Pousar? Eu não sei pousar!

 

– Como assim? Você não é o instrutor? – perguntou o aprendiz, incrédulo.

 

– Não! Sou o mecânico!

 

O uniforme dos instrutores e dos mecânicos era extremamente semelhante, e o aprendiz, na sua pressa, havia confundido os dois. O mecânico, por sua vez, assumiu que o aprendiz era um piloto experiente convidando-o para um passeio casual.

 

Depois de um breve momento de pânico, eles decidiram ligar para o verdadeiro instrutor, que permanecia em terra. Usando um telefone celular, o instrutor guiou-os meticulosamente através do processo de pouso.

 

Apesar de uma aterrissagem improvisada que danificou o trem de pouso, ambos escaparam com apenas ferimentos leves. E assim, o aprendiz e o mecânico ganharam uma história peculiar para contar, lembrando-se sempre da importância de verificar duas vezes quem escolhemos para nos assessorar antes de sair da nossa zona de conforto.”

 

Dúvidas

Será o Comitê Gestor titular da legitimidade processual ativa e passiva, relativa ao IBS? Caso a ação seja movida contra ele, serão estados, Distrito Federal e municípios obrigados a respeitar a coisa julgada, formada em um processo do qual não participaram? Como proceder no caso de repetição do indébito, notadamente em se tratando de contribuinte que fornece bens e serviços a consumidores situados em diversos municípios, em estados diferentes? O precatório correspondente sairá do orçamento de quem?

 

Se Justiça Estadual for competente para julgar questões de IBS, e a Federal, de CBS, como equacionar situação na qual dois autos iguais são julgados de modo diferente, um sendo considerado válido, e o outro inválido? Em um caso o tributo é devido, e em outro, indevido, apesar do art. 149-B da CF/88? Nem se diga que o STJ “depois unifica”, primeiro porque quem advoga de verdade sabe o quanto é difícil ter um recurso conhecido pela corte (Súmula 7 feelings), e, de mais a mais, essa não é uma mera divergência de cortes locais diversas sobre uma questão abstrata “de direito” posta em diferentes processos: é uma discrepância sobre o tratamento a ser dado pela ordem jurídica a um mesmíssimo fato, com se, em uma ação de despejo, a Justiça estadual afirmasse que o cidadão pode continuar na sala do imóvel, mas a federal afirmasse que pela porta de entrada, que é da União, ele não pode passar.

 

O imposto que será objeto desse contencioso já está a caminho, sem esperar que saibamos como resolvê-las. E quem perderá com isso é quem precisa do Judiciário para coibir possíveis excessos e pleitear eventuais restituições. O Fisco, que receberá o tributo integralmente via split payment, calculado pela alíquota cheia incidente na saída (débito), e depois decidirá soberanamente sobre se e como devolverá os créditos, não. Talvez por isso o assunto tenha ficado para depois.

 

Fonte: Conjur

Deixe um comentário