Não é exagero afirmar que os contratos de seguro e demais atividades que orbitam o universo dos seguros dependem, quase que exclusivamente, de informações e dados fornecidos ou coletados pelos agentes dessa indústria, segurados ou seguradoras
Sem informações a respeito de condições relacionadas ao segurado ou ao objeto do contrato de seguro (seja uma coisa, seja uma atividade), não há viabilidade para a formação adequada da relação jurídica securitária. Isso se dá essencialmente devido à natureza do próprio contrato de seguro, que visa à cobertura de um risco previamente identificado e associado à descrição do sujeito segurado ou do objeto da relação jurídica.
Determinados dados tornam-se elemento essencial do negócio jurídico realizado, cuja falta impede a sua subsistência. Isso posto, os dados — pessoais ou de natureza diversa — são a matéria-prima da qual são constituídos os contratos de seguro. Seria extremamente dificultoso — senão impossível — a uma seguradora de automóveis, por exemplo, estabelecer o valor adequado e proporcional do prêmio do seguro sem informações básicas, que vão desde a marca, o modelo e o ano do veículo até o gênero e a idade do motorista principal, qualificando, assim, o perfil do segurado.
De mais a mais, a chamada “cláusula perfil”, recurso pré-contratual que viabiliza a identificação do segurado dentro de um grupo determinado, só é exequível ao permitir o conhecimento por parte da seguradora de quais riscos relacionados ao segurado devem integrar os cálculos atuariais para a avaliação dos termos da contratação.
Se, de um lado, a “perfilação” (profiling) depende do fornecimento de dados pelos segurados por meio de mecanismos contratuais ou pré-contratuais, de outro existem fontes adicionais das quais os dados podem ser conhecidos ou coletados, que vão desde informações constantes de redes sociais até aquelas provenientes de objetos conectados por rede (IoT e telemetria). Em não raras vezes, essa coleta de dados — na realidade, verdadeira extração — permite às companhias seguradoras a capacidade de conhecer materiais relevantes para a inclusão do segurado em determinada categoria de perfil, de forma mais íntegra do que se dependesse unicamente da declaração do segurado.
Entre os dados usualmente utilizados por segurados para a avaliação dos riscos, encontram-se os dados sensíveis, quais sejam, aqueles que se caracterizam por uma potencialidade discriminatória por se referirem a informações de natureza personalíssimas. O tratamento de dados sensíveis não está proibido em nosso ordenamento, sendo autorizado, desde que enquadrado em uma das bases legais previstas no artigo 11 da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais.
Evidentemente, o consentimento por meio da manifestação do segurado — resultado da proteção de sua autonomia privada — permanece como fundamento para tratamento de dados pessoais. Contudo, não é exclusiva, tampouco hierarquicamente superior às demais bases legais. A inexistência de justificativa legal para o tratamento de dados pessoais configura-se como ilícita ou irregular, a gerar para as seguradoras obrigação de indenizar os segurados por eventuais danos sofridos e sanções aplicadas pela Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD).
A necessidade da inovação no debate em torno do uso de dados pessoais na contratação de seguros é definida especialmente pela realidade de nossa sociedade que associa o fenômeno do big data ao uso de inteligência artificial em sistemas de predição. A atividade das seguradoras é sobremaneira facilitada pelo advento dessas novas tecnologias, pois permite não só a capacidade de tratar os dados de maneira mais eficiente como também, consequentemente, gera uma minimização de custos nas operações e uma maior velocidade nas tomadas de decisão. Essas vantagens, por sua vez, implicam a possibilidade de negociação de preços contratuais mais adequados, visto que os riscos estão previstos, em tese, de forma mais realista.
Ao mesmo tempo que a tecnologia traz vantagens excepcionais para o mercado de seguros, é necessário encontrar um equilíbrio adequado entre o tratamento de dados pessoais dentro desse ambiente e a proteção de direitos fundamentais dos segurados, tais como a privacidade, a proteção de seus dados e a igualdade de tratamento. Em último juízo, a tutela desses direitos visa coibir a potencial discriminação abusiva que o uso dos dados coletados massivamente pode ocasionar no mercado de seguros, segregando e retirando de inteiras parcelas da população a possibilidade de contratação de forma equitativa.
Daí a necessidade de impor às seguradoras — agentes de tratamento de dados — o cumprimento de forma estrita dos princípios relacionados ao tratamento de dados pessoais, especialmente os que se referem à finalidade, à igualdade e à não discriminação.
Formalização do contrato
O fornecimento de dados para a formação do contrato de seguro encontra-se fundamentado em três princípios inerentes a toda e qualquer atividade securitária, quais sejam, o reconhecimento do princípio da boa-fé objetiva em sua aplicação aprimorada; o princípio da solidariedade social, por meio do qual se reconhece a natureza solidarista do contrato de seguro e a necessária delimitação dos riscos segurados; e o princípio do mutualismo.
Pelo princípio da boa-fé objetiva e sua interpretação ampliada, entende-se que as partes contratantes devem fornecer, de maneira clara, informações que irão compor a função contratual e que determinarão, em última instância, o equilíbrio na contratação. A seguradora, por um lado, deve oferecer ao segurado o conhecimento prévio dos termos da contratação, e o segurado deve fornecer dados verdadeiros, necessários e suficientes para que a seguradora seja capaz de fielmente fazer cumprir a contratação de forma a respeitar o mutualismo e o equilíbrio da relação contratual.
De outro lado, os princípios da solidariedade social e do mutualismo impõem que os segurados indiquem, de modo acurado, as informações e os dados que sejam relevantes para a contratação, para que haja uma verdadeira proporcionalidade na construção do fundo social e da divisão equitativa entre os membros do grupo segurado dos valores devidos em caso de sinistro. Em interpretação conjunta, esses princípios e os previstos na LGPD reforçam a necessidade de que os dados pessoais devem ser protegidos de forma a alcançar, ao mesmo tempo, a igualdade numa contratação equilibrada e a proteção de direitos fundamentais.
Dada a evidente capacidade de uso de dados pessoais — sensíveis ou não — de maneira a violar os princípios da igualdade e da não discriminação — ambos previstos tanto em nossa Constituição quanto na LGPD —, é fundamental que se analise se os dados dos segurados tratados pelas seguradoras têm a capacidade de gerar uma discriminação abusiva.
Percebe-se, assim, que a tutela dos dados sensíveis, mais do que garantir o “sigilo” e a “anonimidade” de dados pessoais sensíveis — por se referirem a especiais categorias de dados “existenciais” —, tem como objetivo a proteção da pessoa humana contra tratamentos desiguais, que inibem a possibilidade real de acesso a direitos, como aqueles referentes à contratação. Evidentemente, não se quer com esse argumento usurpar das seguradoras o direito ao exercício de sua autonomia contratual, isto é, definir o que, como e com quem contratar.
O que se defende é que, baseada no princípio da finalidade do tratamento de dados, haja uma justificativa adequada para essa recusa e que os dados pessoais sensíveis não sejam utilizados como fundamento para a inviabilidade do exercício de sua autonomia privada, garantida, nesse caso, pelo princípio da igualdade e da não discriminação.
*esta coluna é produzida pelos professores Ilan Goldberg e Thiago Junqueira, bem como por convidados
Fonte: Migalhas
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