Em um momento social em que se tem ampliado as discussões sobre as novas modalidades de relacionamentos interpessoais ganha cada vez mais espaço na mídia suas novas modalidades contratualizadas, com uma grande ênfase nos últimos tempos à figura do malfadado contrato de namoro.

 

O interesse de estabelecer regras específicas e feitas sob medida para os desejos de cada “casal”, atrelado à falta de uma regulamentação legal que vá além das figuras de constituição de entidades familiares (casamento e união estável), vem fomentando um alargamento dos embates acerca dos limites do que vem sendo chamado de contratualização do Direito de Família.

 

Todavia vemos também que, ainda que não se possa configurar como uma hipótese atrelada ao Direito de Família, outras discussões vêm a reboque, pois tangenciam, em alguma medida, relacionamentos interpessoais que se assentam em convivência mútua, afeto, carinho, desejo, amor e relações sexuais.

 

Nesse universo amplificado do Direito de Família, com contatos com o Direito Contratual e muita presença de aspectos vinculados com preceitos de moral, surgem os Relacionamentos Sugar.1 Em linhas bastante singelas podemos nomear como tal a avença estabelecida entre uma pessoa que se compromete a remunerar a outra por sua companhia, sendo que tais contrapartidas podem ser ofertadas em espécie ou pelo intermédio da entrega de bens.

 

Por meio dessa avença as partes expressam que, inquestionavelmente, não almejam a constituição de um relacionamento afetivo-amoroso, o estabelecimento de uma entidade familiar ou mesmo qualquer hipótese similar. Manifestam sim o desejo de obtenção de benefícios mútuos, através de uma relação eminentemente contratual, baseada simplesmente na liberdade de contratar.

 

Não fosse pelo fato de tratar-se de um negócio jurídico que tangencia aspectos de natureza afetiva/sexual não atiçaria a sanha dos “auditores da moral e dos bons costumes” existentes em nossa sociedade tão deturpada. Não se trata de uma hipótese de tentativa de constituição de família, o que automaticamente a apartaria de qualquer vínculo com o Direito de Família, mas tudo o que envolve a possibilidade da existência de uma relação de afeto ou sexual acaba recebendo uma atenção diferenciada.

 

Apesar de parecer uma discussão recente a hipótese que permeia o chamado relacionamento sugar, com algumas variáveis, é realidade fática vetusta, que encontra grande similitude com situações bastante conhecidas, como a das “teúdas e manteúdas” e das acompanhantes contratadas por famílias ricas para ocultar a sexualidade dos filhos.

 

Porém o fato de alguém se disponibilizar a ser companhia de outrem mediante pagamento remete à uma concepção de que tal convivência importará em manutenção de relações sexuais, conduzindo a discussões que se vinculam à moral e aos bons costumes, fazendo com que muitos venham a expressar algum tipo de desconforto com relação a tal negócio jurídico.

 

Logo de plano é importante que se consigne que a melhor forma de fazer com que tal desconforto seja apaziguado está na ciência de que é plena a liberdade que se confere a essas pessoas de não firmar tal tipo de contrato. Ante a prevalência da autonomia, se tal negócio não lhe atrai basta que não se vincule a ele, deixando-o apenas para aqueles que por ele se interessarem. Simples como tal.

 

Inexiste no ordenamento jurídico pátrio qualquer tipo de imposição coercitiva que determine que quem quer que seja estabeleça um contrato desses. Se os incomodados simplesmente não entabularem esse contrato certamente seu incomodo há de desaparecer.

 

Contudo bem sabemos que não basta isso na nossa atual sociedade da informação, que tenho pensado ser mais de manifestação do que de informação. Poucos se informam adequadamente, com robustez científica, mas muitos (ou quase todos) sentem-se plenamente confortáveis para se manifestarem sobre todo e qualquer tema, como se detentores de uma expertise que os permitiria pleitear um título de doutorado.

 

Os “livre docentes” das redes sociais, empertigados com suas concepções baseadas em um senso comum altamente enviesado, avocam para si o direito de expressar seu pensar com tons de uma certeza que apenas os tolos revelam. Sua moral, seus princípios, seus preceitos religiosos são de tal grandeza que devem ser postos como universais e subjugar as demais individualidades, já que supremos detentores de todo o saber.

 

Superada toda a ironia que acompanhou os últimos parágrafos, é primordial se tratar o tema sob lentes técnicas, conferindo todo o aporte jurídico pertinente para tal realidade social.

 

Por meio do contrato que estabelece o relacionamento sugar a parte que contrata a companhia e se compromete a oferecer benesses em decorrência disso é chamada de “sugar daddy”, se do gênero masculino, ou “sugar mommy”, caso seja do gênero feminino. Trata-se do detentor do poder econômico, que ordinariamente é uma pessoa mais velha, já estabelecida financeiramente, e que está disposta a ofertar parte do seu patrimônio pela experiência de ter a pessoa contratada em sua companhia.

 

De se consignar que não existe uma “regra” insuperável nesse sentido, não encerrando uma hipótese de invalidade do contrato se for alguém mais novo ou sem uma condição econômica exacerbada, sendo esses apenas os traços tradicionais dessa modalidade de avença.

 

No outro polo desse contrato está a pessoa que oferece a sua companhia, que ganha o nome de “sugar baby”, e que normalmente é uma pessoa mais nova e dotada de atributos físicos que lhe inserem no conceito tradicionalmente posto de uma pessoa bela e atraente. Novamente não há que se falar em desnaturação do contrato se não se tratar de uma pessoa jovem ou que não se enquadre no padrão de beleza esperado.

 

Relevante se ressaltar que tais características são apenas as usuais e não gozam de obrigatoriedade, mormente por estarmos diante de um tema onde facilmente algum rábula possa emergir em sua proeminente sapiência e asseverar que uma dada pessoa não é nova ou velha o suficiente, rica ou bela o bastante para que os parâmetros de um relacionamento sugar se estabeleçam. Reitera-se: Não há previsão entre os contratos típicos do Código Civil da figura do contrato sugar, portanto não existem requisitos legais específicos para a sua configuração e validade.

 

A natureza da contrapartida oferecida pelo “sugar daddy” ou pela “sugar mommy” é uma questão relevante, pois pode ser convencionada em uma quantia específica em moeda correte, mas pode também fixar que caberá ao contratante o dever de pagar contas da pessoa contratada, como aluguel, contas de consumo (telefonia, energia elétrica, internet, streaming, etc.), bem como a presenteá-la com joias e viagens.

 

Sob uma perspectiva eminentemente técnica, considerando os parâmetros firmados em sede de direito das obrigações, é de boa técnica que ao elaborar o contrato esteja perfeitamente estabelecido os valores e a quem compete escolher os presentes e viagens a serem ofertadas, sob pena de incidir os delicados parâmetros que regem as obrigações de dar coisa incerta (art. 243 e seguintes do Código Civil).

 

A extensão da companhia ofertada pela/o “sugar baby” revela-se como um ponto nevrálgico na análise dos contratos sugar. De forma geral as plataformas que facilitam o contato entre os interessados são veementes em ressaltar que o que compreende a companhia que será oferecida pelo contratado está vinculado à discricionariedade de cada pessoa.

 

Tal ponto é crucial pois da mesma forma que tal companhia pode se dar para que as partes desfrutem os prazeres de um jantar em um restaurante, de uma ida ao cinema, teatro ou museu, pode também acabar em alguma intimidade entre elas, e que pode se consumar em beijos, abraços ou até mesmo na manutenção de relações sexuais. E aqui se tem um ponto delicado para os “censores da sexualidade alheia”.

 

Mesmo que já estejamos longe de um tempo em que a Igreja regia oficialmente a estruturação do Estado é evidente que muitos ainda ignoram a mais do que centenária separação, sem falar daqueles que anseiam e lutam, de forma explícita ou escamoteada, pelo estabelecimento de um Estado Teocrático. Nesse mundo paralelo a liberdade sexual, especialmente das mulheres, não tem espaço, resistindo um preceito romantizado de que as relações sexuais apenas podem existir quando lastreadas no amor, especialmente constituído em sede de um casamento, de sorte que relações sexuais baseadas em contrato seriam uma aberração imoral, ainda mais quando vinculadas a algum tipo de contrapartida.

 

Contudo a visão hipócrita não revela qualquer incômodo com os casamentos arranjados, aqueles em que os cônjuges não mais nutrem (se é que um dia tiveram) nenhum tipo de sentimento de afeto/amor pelo outro, ou mesmo naquelas relações tidas como ideais segundo alguns em que a mulher se vê obrigada a manter-se em casa, recebendo o dinheiro que o “varão” provedor lhe oferta, sendo obrigada a manter relações sexuais com ele, ainda que não o deseje.

 

Como pontuava Simone de Beauvoir em alguns casos a linha que separa o casamento da prostituição é absurdamente tênue, pois “‘entre as prostitutas e as que se vendem pelo casamento, a única diferença consiste no preço e na duração do contrato’… Para ambas, o ato sexual é um serviço; a segunda é contratada pela vida inteira por um só homem; a primeira tem vários clientes que lhe pagam tanto por vez.”2

 

É exatamente na existência da possibilidade ou na previsão de que deva haver relações sexuais entre contratante e contratado nos relacionamentos sugar que se vê alguns fazerem um alvoroço, pontuando que tal avença é apenas uma prostituição com roupagem nova.

 

E se for, qual seria o problema?

 

A questão problemática não se assenta na relação sexual mediante pagamento. O que há de se discutir é o nível de autonomia da pessoa que oferece seus préstimos sexuais, quão vulnerabilizada está, se não está sendo vítima de alguma agressão física ou psicológica para estar ali.

 

Existem inúmeras outras formas de prestação de serviço em que se oferta o corpo para o empregador que se mostram muito mais ofensivas aos parâmetros mais elementares da dignidade humana que seguem sendo autorizados, a bem da liberdade econômica, de sorte que a única razão para as restrições impostas às profissionais do sexo (com claro recorte de gênero) é o preconceito.

 

Gostaria de estar equivocado e que o objetivo real de quem apresenta objeções ao trabalho oferecido pelas profissionais do sexo fosse efetivamente proteger as pessoas que se veem compelidas a prestar tal tipo de serviço em razão de sua vulnerabilidade. Mas, como já bastante consolidado, minorias e grupos vulnerabilizados por motivos associados à sexualidade têm sua condição reconhecida, na prática, para que sejam vítimas de discriminação, e não para serem destinatárias da especial proteção preconizada por um Estado Democrático de Direito.3

 

Basta se considerar que ainda hoje as profissionais do sexo seguem não encontrando respaldo legal para cobrar os serviços por elas prestado, pois continua se entendendo que o objeto do negócio jurídico por ela firmado seria atentatório à moral e aos bons costumes, ofendendo ao disposto no art. 104, II do Código Civil, encerrando em invalidade, por nulidade, daquele negócio jurídico (art. 166, II).

 

Essa interpretação vetusta e discriminatória impõe que não se possa simplesmente exigir a satisfação do contrato. A solução “técnica” dada é que se pode superar essa impossibilidade por meio de uma ação de indenização baseada no enriquecimento sem causa experimentado por quem se beneficiou do seu serviço e que não lhe ofertou a contrapartida esperada.

 

Tecnicamente lindo, mas de efetividade questionável, especialmente por considerar que nem sempre a profissional conta com condições econômicas para contratar um advogado ou mesmo terá meios de fazer prova de suas alegações.

 

E essa mesma interpretação teratológica tende a se abater sobre os contratos sugar, o que mais uma vez revela a discriminação que ordinariamente recai sobre tudo o que tangencia a sexualidade.

 

O crucial aqui é que os contratos firmados a fim de convencionar um relacionamento sugar, sejam eles escritos ou não, vinculam as partes que o firmaram, criando, bilateralmente, direitos e deveres a serem cumpridos, lastreados na discricionariedade das pessoas que a ele se atrelaram, respeitada sua natureza contratual e os limites do pacta sunt servanda.

 

Dotado de uma boa-fé e transparência que muitas vezes é capaz de superar aquela que se constata em casamentos e uniões estáveis, as relações sugar merecem a devida atenção, sem que sejam sobrepujadas por uma visão de terceiros que nenhuma relação possuem com o caso concreto.

 

E, por fim, retomando o pensamento de Simone de Beauvoir, quantos casamentos e uniões estáveis não são, em verdade, relacionamentos sugar com um nome socialmente aceito? O nome atribuído à situação fática não lhe retira ou transmuda a essência…

 

Para questionar a coerência dos aurores dos bons costumes se pergunta: O repúdio aos casamentos de fachada é o mesmo destinado aos relacionamentos sugar?

 

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1 Atribui-se a origem da nomenclatura ao relacionamento de Adolph Spreckles, um famoso herdeiro da maior fábrica de refinamento de açúcar do mundo nos idos de 1908, que se casou com Alma de Bretteville, uma moça 24 anos mais jovem que ele, em que chamava a atenção os presentes vultosos que ele dava a ela, sendo ele chamado de Sugar Daddy e ela de Sugar Baby.

 

2 BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo: 2. A experiência vivida, 2. ed., São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1967, p. 324.

 

3 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 60-61.

 

Fonte: Migalhas

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