Em 2024, o Plano Real comemora 30 anos, mas seu legado é controverso. Enquanto é celebrado por controlar a inflação, também causou desindustrialização, desemprego, aumento da dívida e precarização dos direitos trabalhistas
Neste ano de 2024, o plano real completou 30 anos de existência. As mídias escrita e falada, notadamente a tradicional , alardeiam massivamente os louros e glórias desse plano. Não faltam entrevistas e lives com os corifeus dele. Assim, pessoas como Pedro Malam, Persio Arida, Gustavo Franco, André Lara Rezende (este reviu sua posição de apoio ao real, enveredando agora para o caminho do desenvolvimentismo, dado os efeitos nefastos dele) e outros, pousam como os heróis da nação, por terem debelado a espiral inflacionária que vigia antes da implementação desse plano econômico. Todavia, omitem-se, adrede, na abordagem das consequências nefastas do plano real.
Com efeito, nada se fala sobre a desindustrialização ocorrida no Brasil a partir dos anos 90 do século passado, com a substituição da indústria pelas importações. Em consequência disso, o país experimentou uma taxa de desemprego alarmante. A dívida externa aumentou assustadoramente. Houve uma grande precarização dos direitos dos trabalhadores e dos sindicatos, inclusive arrocho salarial. Tudo isso para manter a inflação sob controle. As taxas de juro aumentaram grandemente, o que inibiu os investimentos produtivos no Brasil. A dívida interna também cresceu com o aumento das taxas de juros. A miséria grassava impiedosamente. O crescimento econômico também caiu muito. Nesse período, é de se recordar o plano contra a fome deflagrado por Betinho. Com o aumento da taxa de juro, os aplicadores financeiros se esbaldavam com o rentismo, o que persiste até hoje. As privatizações de um incontável número de empresas públicas, por preços vis, mostraram a face da dilapidação do patrimônio público e da ineficiência na prestação de serviços públicos pelas empresas privatizadas.
Nesse diapasão, adverte o ilustre filósofo e professor Paulo Giraldelli, em seu livro A Democracia de Bolsonaro , Cefa Editorial, 1ª edição, pag 54 :
“….. A maior parte das versões historiográficas não ousa qualquer avaliação crítica do plano. Sequer toca em seu objetivo maior, o de implementar uma inversão no caminho da economia brasileira, o de trazer o Brasil para o mundo globalizado. E isso foi feito segundo um custo social nada pequeno.”
De ouro lado, não se pode ignorar que o plano real foi um passo decisivo para o incremento do pernicioso neoliberalismo no Brasil, o que vigora até os dias atuais. De fato. Se ele, o neoliberalismo, começou com Collor, foi com FHC que ele ganhou notável e decisivo incremento. Ele também perpassou os governos do PT (só que estes adotaram um neoliberalismo mitigado, pois não deixaram de lado as políticas socias e a justiça social), ingressando nos desastrosos governos Temer e Bolsonaro. Esse regime econômico e político teve início no mundo nos anos setenta do século passado, chegando ao Brasil nos anos 90. Ele dá suporte ao capitalismo financeiro, pregando o estado mínimo, a flexibilização do câmbio, as desregulamentação da economia, a precarização dos direitos dos trabalhadores e dos sindicatos, o individualismo exacerbado , o empreendedorismo, tudo isso para valorizar o rentismo, em detrimento dos investimento produtivos . Ele está alicerçado no tripé macroeconômico, assim caracterizado: câmbio flutuante, metas de inflação e ajuste fiscal. Ainda hoje assistimos a luta do governo Lula 3 para investir na produção e produzir justiça social, na contramão do Banco Central, com Roberto Campos Neto na presidência, que estabelece a maior taxa de juros do mundo. Inobstante, o governo Lula reduziu a taxa de desemprego, controla a inflação e aumentou o PIB. Espera-se que ele possa, com a saída de Campos Neto, incrementar os investimentos produtivos, que diferem das aplicações, estas visando os polpudos ganhos especulativos do mercado financeiro. Aliás, é importante salientar, na esteira de um ilustre pensador, que existem dois tipos de povo: o povo do estado ou da coletividade, que é o cidadão e o eleitor, que visa o crescimento econômico do país e a justiça social, e o povo do mercado, que almeja ganhos especulativos exorbitantes, em detrimento do crescimento econômico e da justiça social. É óbvio que devemos optar pelo primeiro.
Vale atentar para os ensinamentos dos ilustres economistas Alfredo Saad Filho e Lecio Morais, em sua obra ” Brasil Neoliberalismo Versus Democracia, ed Boi tempo, 2018, pags 127 e 244:
” Desta maneira, o alto desemprego, o trabalho precário e a crescente pobreza relativa, quando não absoluta, foram resultados das políticas públicas neoliberais”
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” O neoliberalismo criou condições extraordinariamente favoráveis para a acumulação de capital e concentração de poder, renda e riqueza em todo mundo. No Brasil, e em outros países, esse sistema de acumulação foi acompanhado por taxas de investimento decrescente , redução progressiva do PIB, deterioração dos padrões de emprego, uma tendência à concentração de renda e riqueza e frequentes crises financeiras”.
É preciso, ainda, revolver algumas outras consequências negativas do plano real. Como já foi dito, ele nasceu com o governo FHC com o objetivo de debelar a grande espiral inflacionária que assolava o Brasil até os anos 90. Foram vários planos econômicos que fracassaram, tais como os planos Collor, Cruzado 1 e 2, Bresser, Cruzeiro real etc. O plano real surgiu com o objetivo de estancar a inflação ( o que se percebe hoje que ela não foi eliminada de todo) e abrir o país para o capital internacional. Para esse mister foram alterados diversos dispositivos constitucionais: o art 171 foi revogado, eliminando a distinção entre empresa brasileiras e estrangeiras; o inciso IX do art 170 foi modificado para permitir que empresas estrangeiras explorassem o subsolo; o art 178 foi alterado para eliminar o monopólio estatal de transportes em rotas costeiras; o inciso IX do art 21 foi alterado para abolir o monopólio estatal das telecomunicações etc. Mas o que se percebe hoje é que tal desiderato não foi alcançado de forma razoável pelos protagonistas do plano real. O que se vê é que os ganhos no mercado financeiro, com as altas taxas de juros, tiveram, e têm, visível preeminência sobre os investimentos produtivos. O real, que foi precedido da URV, esta objetivando realinhar os preços e desindexar a economia, foi equiparado ao dólar (1 real é igual a 1 dolar). Isso gerou uma grande euforia nos consumidores , que tiveram o seu poder de compra elevado. Só que, com o incentivo às importações, as empresas nacionais, frente à concorrência internacional, tiveram que baixar os seus preços ou fechar as portas. Desse modo, vê-se que, na questão do custo benefício, as consequências negativas desse plano superam em muito as benesses iniciais trazidas por ele. Dir-se á, então, porque ele foi o escolhido para acabar com a inflação? Foi porque a onda neoliberal que rondava , e ainda ronda, o mundo (é claro que nos países de primeiro mundo, já há algum tempo, se propugna pela sua superação, com o fortalecimento do estado de bem-estar social) influenciou decisivamente todos ou quase todos países, notadamente aqueles em desenvolvimento.
Para concluir, esperamos que tenha sido despertada a capacidade crítica e reflexiva das pessoas, que podem enxergar não só as pequenas benesses do plano real, mas também o seu lado obscuro e desalentador.
Fonte: Migalhas
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