O mundo digital, que afeta todas as relações humanas, entrou também nas relações do sistema de Justiça. Isto já vinha ocorrendo aos poucos desde 2004, mas com a Covid-19 teve um aumento significativo. A bem dizer, o que era exceção tornou-se regra.
Os que viveram outros tempos sentem falta do contato pessoal com magistrados, servidores e outros atores jurídicos. Lamentam o quase fim das audiências presenciais, com todo o importante componente psicológico que continham. Percebem as dificuldades de negociar um acordo ambiental em uma audiência virtual, em que o agente do Ministério Público atua em uma outra cidade, com uma realidade diversa, e o advogado da União é lotado em outro estado. Abominam as inúmeras plataformas, com os seus diabólicos procedimentos de ingresso e os sistemas do processo eletrônico que, por vezes, variam de um tribunal para outro.
Mas esta, bem ou mal, é uma via de uma só mão, não há faixa de retorno. Doravante, o mundo digital judiciário será cada vez mais predominante, ficando reservadas as tarefas presenciais para casos especiais, como o Tribunal do Júri. Se assim é, o melhor a fazer é adaptar-se. Adotar a máxima, “se é impossível destruir o inimigo, una-se a ele”.
Há alguns anos era comum os advogados despacharem diretamente com o juiz ou exporem alguma situação mais complexa. Nos tribunais, fazia parte da rotina uma visita para entregar o memorial ou destacar algum aspecto da posição adotada. Aquele era um momento de criar-se um relacionamento, que não poucas vezes revelava interesses comuns em outros assuntos.
Estas práticas mudaram. Regra geral, nem se sabe se o magistrado está no Fórum ou Tribunal ou se está trabalhando em casa. Mas, supondo que se solicite uma reunião, ela costuma ocorrer em termos mais frios, por menos tempo e por vezes em clima de desconfiança, com a presença acauteladora de uma servidora na sala.
É preciso ter equilíbrio na condução destes encontros. Se de um lado o mundo atual exige cautelas, de outro é necessário não formalizar demais. Já bastam as dezenas de regras do CPC e resoluções. Não se trata de audiência, mas sim de conversa. Não há compromisso do juiz com nada, ele apenas ouvirá. E para ouvir não precisa um aparato de regras formais ou costumeiras.
Se assim é a realidade do mundo jurídico digitalizado, continuam sendo importantes as relações humanas? A resposta é: sim.
Elas devem dar-se não apenas no mundo visível das relações externas, mas também no das relações internas. O juiz não deve ser um estranho que mal conhece os seus servidores e que trabalha no computador, por vezes residindo em outra cidade. A vara ou o gabinete nos tribunais forma uma equipe e esta nada tem a ver com seres autônomos, meros reprodutores de dados estatísticos. A presença e as reuniões formais, que em algumas circunstâncias podem ser eletrônicas, ou informais (p. ex., nos aniversários) são essenciais para o bom funcionamento.
No âmbito externo as relações humanas não serão nos termos em que se davam no passado, quando o número de advogados era menor e os profissionais, na maioria das vezes, se conheciam. Mas, ainda que de maneira diferente, o relacionamento continua sendo essencial. Dele depende boa parte do sucesso na profissão escolhida.
A primeira questão a ser abordada é o risco que o anonimato na internet possibilita. Os freios inibitórios, que a presença de pessoas impediria alguém de expressar-se de forma virulenta, cedem quando se acha sozinho. Ademais, a crítica virulenta encontra mais apoio no grupo de pessoas que pensam da mesma forma, além de ser menos trabalhoso do que propor formalmente uma mudança.
Vejamos alguns exemplos
Na advocacia, uma petição inicial ou um simples requerimento no processo eletrônico não começará por uma crítica, como, por exemplo, o fato de a ação estar tramitando há décadas. Mesmo que isto seja verdade, o magistrado que a receber não ficará mais inclinado a deferir o que for requerido. Pelo contrário, ficará irritado e tenderá a criar algum tipo de obstáculo ao pretendido. Além disto, é comum que ele esteja na Vara há pouco tempo e não aceite a crítica. Em suma, o desabafo em nada ajudará no acolhimento da pretensão formulada.
Falar com o juiz é outro ponto sensível no relacionamento. Há os que atendem pessoalmente, outros on line e alguns que simplesmente não recebem o advogado, o que evidencia um certo tipo de insegurança. Não há lei ou regulamento, seja de que origem for, que possa controlar milhares de situações deste tipo em todas as varas do Brasil.
Com foco apenas nas audiências online, que podem ser para justificar um pedido de liminar em primeira instância ou para explicar uma situação especial antes do julgamento no tribunal, é preciso agir com estratégia. Antes de mais nada, refletir sobre a real necessidade da visita. Os juízes atualmente carregam o peso de milhares de processos. É preciso colocar-se no lugar deles. Qualquer perda de tempo desnecessária será vista com má vontade.
Vencida esta análise e considerada essencial a visita, impõe-se saber quem é e como pensa o magistrado, quais são as suas tendências e como vem julgando ações sobre a matéria. Por exemplo, a um juiz conhecido por seguidas e rigorosas posições contra o consumidor, não compensa pedir audiência tentando convencê-lo da oportunidade da liminar. Melhor deixar o agravo preparado e buscar o sucesso na segunda instância. A um juiz ambiental equilibrado, que analisa as ponderações dos dois lados, será oportuna a audiência, para expor um ponto nebuloso ou complexo.
Ao sentir que a posição de quem vai julgar é contrária à tese defendida, será inútil e perigoso procurar convencer, explicitamente, o magistrado, de que ele está errado. O fato poderá gerar um antagonismo que fechará as portas para qualquer esclarecimento. É preciso ter habilidade para explicar a situação, mas sem qualquer menção a erro. Uma boa técnica será apontá-la após um elogio. Por exemplo: “o senhor é conhecido pela habilidade na apreciação das provas, por isso não terá dificuldades em perceber que as respostas 7 e 8 do laudo não estão de acordo com a realidade”.
Em julgamentos colegiados, com maior razão, caso haja erro do relator, seja de direito (v.g., lei revogada) ou de matéria de fato (a prova não condiz com o voto), jamais deve ser apontado explicitamente, expondo-o ao constrangimento de ser censurado em público. A tendência do humilhado, pouco importa com ou sem razão, será a de reagir negando a pretensão. E a de seus colegas da câmara ou turma, a de serem solidários ao ofendido.
Interessar-se pelos outros sempre foi importante e continuará sendo em tempos de mundo digital. Ainda que em menor número, há servidores nas secretarias ou cartórios das varas. Interessar-se pelo que fazem, doar um livro de Direito, recomendar um filme ou perguntar ao estagiário qual o seu projeto profissional, torna as relações mais amigáveis. Antes do início da audiência online, trocar algumas palavras com os presentes, perguntar sobre o volume de processos, número de audiências, coisas da rotina forense, sempre amenizam a tensão do ambiente
Nas audiências online, a distância e o fato de ver o outro apenas na tela e não do outro lado da mesa, poderão estimular ridicularizar ou ofender a parte contrária. Se isto pode dar-se em qualquer ação cível ou criminal, mais comum ainda será em uma ação envolvendo Direito de Família, onde os nervos estão à flor da pele. Qualquer que seja a situação, por mais abominável que seja a conduta do oponente, é preciso preservar a sua dignidade. Diminui-lo o aniquilá-lo não levará a nenhum resultado positivo e inviabilizará qualquer possibilidade de conciliação, ainda que parcial ou mesmo na fase de cumprimento de sentença.
Cuidado especial é preciso ter com o que se fala nas audiências de primeira instância e nos julgamentos nos tribunais. Tudo é filmado e gravado. Uma frase impensada, uma roupa inapropriada, um deslize de comportamento, poderão render sérios aborrecimentos.
Elogiar sem desejar nada em troca e desde que de forma sincera e não por bajulação, nunca será demais. Ainda que não haja contato pessoal, mas apenas digital, o elogio de um advogado à secretária de uma empresa, por tê-lo atendido bem, ou à chefia, pelos serviços por ela prestados, além do reconhecimento justificado, poderá ser decisivo na próxima contratação, pois nela ele terá uma aliada.
Por vezes, o elogio pode ser feito a alguém que, aparentemente, apenas cumpre o seu dever. Elogiar o juiz que prontamente decidiu o tão esperado pedido de alvará de levantamento de depósito, nunca será demais e o levará a manter esta postura positiva. Muito embora o Defensor Público esteja cumprindo o seu dever ao defender alguém na esfera criminal, elogiar as suas razões finais, quando feitas com esmero, servirá de estímulo para que ele se esforce para exercer as suas funções com mais dedicação.
Em suma, o mundo digital chegou com vantagens e desvantagens. Mas as relações interpessoais sempre foram e sempre serão as mesmas, com os serem humanos esperando ser respeitados e reconhecidos. Portanto, ainda que de forma diferente, elas continuam sendo essenciais nesta nova realidade.
Fonte: Conjur
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