A pandemia nos mostrou que alguns temas precisam ser enfrentados no presente, não obstante a delicadeza com que precisam ser tratados e as barreiras culturais cujo enfrentamento eles pressupõem.

 

Planejar é organizar um roteiro, programar, arquitetar formas de realizar um objetivo. Há inúmeros institutos jurídicos que traduzem esse ato de planejar. A abordagem contemporânea convida a organizá-los de forma coordenada para o alcance do objetivo do/a planejador/a.

 

Esse texto abordará dois tipos de planejamento: o planejamento do envelhecimento e o planejamento patrimonial e sucessório. Em ambos os casos, a questão central é a assunção do protagonismo na autonomia sobre a própria vida, além de zelar por aqueles que lhe são importantes.

 

A primeira modalidade de planejamento é o do envelhecimento. No Brasil, o número de idosos cresceu quase 60% nos últimos 12 anos. Em 2023, eles representavam 15,6% da população do país. O crescimento desse segmento vem ocorrendo de forma acelerada: enquanto a população do país aumentou em 6,43%, os idosos cresceram 57% em relação a 2010.1 A expectativa de vida em 2022, era de 75,5 anos,2 e em 2023, 76,4 anos.3

 

Esse aumento expressivo dos idosos implica uma série de fatores, inclusive a necessidade de uma programação da velhice, tanto em termos de saúde, quanto de finanças, da vida social, etc., enquanto se tem autonomia suficiente para traçar estratégias e manifestar livremente a vontade. É nesse sentido que o planejamento do envelhecimento também tem ganhado espaço nos escritórios de advocacia, na medida em que as pessoas querem ser independentes o quanto possível, além de desejar o respeito aos seus desejos, conforme prevê o Estatuto da Pessoa Idosa.4

 

Sabe-se que o envelhecer pode implicar o desenvolvimento de vulnerabilidades, e de vínculos de dependência de diversas ordens que podem influenciar no querer e no entender. Por essa razão, um olhar global sobre o futuro – além de um processo de autoconhecimento – pode ser interessante para se definir quais são as estratégias mais interessantes para uma velhice saudável e digna, de acordo com os parâmetros próprios de vida boa. A autonomia privada exerce papel de grande relevância para a construção da própria esfera pessoal, para que cada um possa estabelecer os parâmetros dentro dos quais pretende viver no presente e no futuro, dentro dos valores que elegeu como mais coerentes para a própria vida. Mesmo porque suas decisões devem espelhar as prioridades e as concepções do declarante.

 

A velhice pode e deve ser um tempo bom, com colheita de uma vida de experiências, novas possibilidades, convivência intergeracional, viagens e aprendizado. Mas também pode ser um tempo de perda de renda, dependências, fragilidades e solidão. Recente relatório da FAPESP informou que ao menos 1,76 milhão de brasileiros com mais de 60 anos vivem com alguma forma de demência que gera a perda progressiva das células cerebrais e, a partir daí, a incapacitação e a morte. A previsão é de que esse número cresça na medida em que a população envelhece.5 É claro que não é possível ter controle sobre tudo. Mas eleger instrumentos que facultam a melhor gestão possível da vida é uma busca que tem crescido cada vez mais, existindo algumas possibilidades interessantes para esse propósito.

 

Dispor sobre administração futura dos próprios bens para que esses tenham longevidade e possam para fazer frente aos custos do envelhecimento tem um grande valor. Se a pessoa continuar lúcida e com possibilidades de expressar sua vontade, ela poderá continuar fazendo escolhas cotidianas a respeito de seus bens e de sua saúde. Mas, e se for diferente? E se, por alguma razão, ela perder essa condição?

 

Daí a importância da autocuratela.6 Trata-se de um instrumento por meio do qual a pessoa pode fazer escolhas para expressar validamente a sua autonomia para momento futuro, se for necessário submetê-la ao procedimento de curatela. Conquanto se trate de negócio jurídico atípico, recomenda-se que seja feita por escritura pública para maior segurança da produção de efeitos da expressão de sua vontade. É um documento que só tem eficácia a partir da decisão judicial que determina a curatela de seu autor, ainda que de forma provisória – razão pela qual ele, necessariamente, deve ser parte integrante do referido processo.

 

Seu conteúdo pode ter enorme gama de possibilidades: a) escolher o curador e indicar expressamente quem não deve exercer o munus, b) dar diretrizes para administração do patrimônio, que vão desde a forma de gestão, estilo de administração, consultores específicos cujas sugestões deverão ser respeitadas, c) recusar a nomeação de pro-curador, d) determinar a remuneração do curador, e) em relação à prestação de contas, entende-se possível dispensar apresentação anual de balanço (a despeito do art. 1.756 do Código Civil), dispensar a comprovação de despesas rotineiras da prestação de contas, podendo prever uma margem de valor mensal destinado a tais despesas (como a previsão do caput do art. 1.753 do CC), exigir a prestação de contas mesmo quando o curador indicado seja o cônjuge casado sob o regime da comunhão universal, dentre outras possibilidades.7

 

Outra ferramenta é o testamento vital, documento por meio do qual a pessoa decide os tratamentos e não tratamentos aos quais deseja se submeter se não mais tiver condições de expressar seu consentimento.8 Trata-se de importante manifestação de vontade que direciona o médico e a família em relação aos desejos do paciente incapacitado de se manifestar, a partir dos seus valores e da sua história biográfica, a fim de que tenha um fim de vida e uma morte com dignidade. A determinação do como morrer é algo da maior intimidade e, por isso, estando a pessoa devidamente informada, é algo que deve estar no seu espectro de decisão.

 

Luciana Dadalto propõe que todos os que têm discernimento possam fazer seu testamento vital (inclusive menores de idade com autorização judicial), o qual deve poder assumir a forma pública ou privada – e ser sempre anexado ao prontuário médico do paciente. Por ser revogável por natureza, não deve ter prazo de validade. É um documento que só passa a produzir efeitos quando o paciente não tiver mais condições de se manifestar.9-10

 

A segunda modalidade de planejamento é o patrimonial e sucessório. Quando o planejamento se volta à sucessão, tem como propósito pensar sobre a transmissão dos bens por direito hereditário – tradicionalmente, portanto, após a morte do titular – embora, em alguns casos, possa ser antecipada em vida ou ao menos com a tomada de providências preparatórias para a sucessão.

 

Vencer o obstáculo de se deparar com a realidade de que todos são finitos requer coragem. Por outro lado, as mudanças nas estruturas familiares, as preocupações com os vulneráveis, as transformações nos bens e na riqueza, as mudanças legislativas, as questões tributárias tornam o debate a pauta do dia.

 

Têm crescido os anseios da população por maior liberdade no âmbito sucessório. O status atual em que o cônjuge casado pelo regime da separação total de bens concorre à herança com os descendentes (art. 1.829, I, CC) é causa de incômodo em quem busca um planejamento que envolva a escolha do regime de bens. Contraditoriamente, no entanto, os brasileiros não são acostumados a fazer testamentos. Os números do Colégio Notarial do Brasil apontam um crescimento dos testamentos na pandemia (2021) com uma redução posterior: em 2020 foram 31.977 testamentos públicos; em 2021, 38.264; em 2022, 26.259 e até novembro de 2023, 32.835.11 Ainda assim, a quantidade de pessoas que faz testamento público é muito pequena.

 

Percebe-se, todavia, que a sucessão sem planejamento satisfaz cada vez menos, na medida em que o ordenamento jurídico sucessório foi talhado para uma realidade bem diferente da atual. E, por esse motivo, a aplicação da lei nem sempre atenderá às necessidades de quem planeja.

 

Fazer um bom planejamento sucessório não é tarefa simples, pois não há um modelo pronto. É preciso personalizar o procedimento, a partir dos anseios do(a) titular do patrimônio: quais as razões para se buscar o planejamento? Quais as preocupações? Evitar litígios futuros, proteger algum herdeiro vulnerável, economia tributária, evitar condomínios são alguns exemplos de razões que levam as pessoas a planejar. Ter clareza na motivação é essencial, pois ela será o fio condutor de todas as etapas do procedimento e orientará as decisões quando não for possível atender a todas as expectativas.

 

Além disso, o planejamento pode potencializar a utilidade do patrimônio pelos futuros herdeiros, promovendo uma distribuição mais coerente com as necessidades de cada um, em observância de sua eventual vulnerabilidade, a fim de que a atribuição dos bens possa auxiliar no suprimento dessas fragilidades e que atue de modo a proteger o herdeiro e a promover sua dignidade, no âmbito material, quando aquele responsável por suprir seu sustento tiver falecido. Também é relevante atentar em a eventuais vínculos existentes entre potenciais herdeiros com algum bem do acervo patrimonial do titular do patrimônio e que, sob o viés quantitativo, caberia no quinhão de um dos herdeiros – é a filha, por exemplo, que trabalha na empresa do pai, sendo interessante para a continuidade do negócio e para a preservação do trabalho da filha que ela fique com as quotas da empresa, ou o filho que reside em um dos imóveis do planejador, proporcionando-lhe segurança a continuidade da moradia. Outro pilar a ser considerado são os custos com manutenção dos bens, liquidez, potencial de exploração econômica e as condições financeiras dos herdeiros, que podem demandar necessidades específicas.12

 

Os instrumentos de planejamento são inúmeros e não se restringem ao direito sucessório, que tem ferramentas clássicas, como testamento e codicilo. Há também aqueles de natureza contratual (doação, compra e venda, pacto antenupcial e de união estável etc.), real (usufruto e direito real de habitação), societária (holding, pactos parassociais etc.), financeira (previdência privada, seguro de vida), por exemplo.

 

A escolha da(s) melhor(es) ferramenta(s) será definida a partir da combinação motivação do planejador e escolha do(s) instrumento(s) adequado(s), que atenda(m) às prioridades possíveis dentro dos limites legais. É importante observar que ele não se presta a blindar o patrimônio e provocar fraudes, mas é meio de realização da vontade sucessória daquele que construiu seus bens em sua vida, administrou-os e pretende que eles sirvam à sua família ou àqueles que lhe são caros, nos espaços de autonomia permitidos pela lei, também cuidando da longevidade e crescimento dos bens.

 

Diante dessas breves reflexões, pergunta-se: planejamento é a palavra da vez? Infelizmente, não, pois parece que as barreiras culturais e os tabus morais acabam dificultando “conversas difíceis”. Mas, sem dúvida, planejamento deve se tornar cada vez mais presente no dia a dia, pois é só lançando mão desses instrumentos que será possível a assunção do verdadeiro protagonismo da própria vida e dar segurança no sentido de que os bens tenham o melhor aproveitamento possível na transmissão sucessória, independentemente do momento em que ela aconteça.

 

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1 Disponível em Censo: número de idosos no Brasil cresceu 57,4% em 12 anos – Secretaria de Comunicação Social (www.gov.br) . Acesso em 11.08.2024.

 

2 Disponível em Em 2022, expectativa de vida era de 75,5 anos | Agência de Notícias (ibge.gov.br) , acesso em 11.08.2024.

 

3 Disponível em IBGE prevê envelhecimento e queda populacional a partir de 2041 (uol.com.br). Acesso em 28.08.2024.

 

4 Destaca-se: Art. 10. É obrigação do Estado e da sociedade assegurar à pessoa idosa a liberdade, o respeito e a dignidade, como pessoa humana e sujeito de direitos civis, políticos, individuais e sociais, garantidos na Constituição e nas leis”. § 1o O direito à liberdade compreende, entre outros, os seguintes aspectos: (…) II – opinião e expressão; III – crença e culto religioso; (…)

 

  • 2o O direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, de valores, idéias e crenças, dos espaços e dos objetos pessoais.”

 

5 “Os dados brasileiros indicam que 3% dos indivíduos com idade entre 65 e 69 anos desenvolvem demência. Essa frequência sobe para 9% na faixa dos 75 aos 79, 21% na dos 85 aos 89 e chega a 43% depois dos 90 anos.” Disponível em Ao menos 1,76 milhão de pessoas têm alguma forma de demência no Brasil : Revista Pesquisa Fapesp . Acesso em 28/8/2024.

 

6 O termo autocuratela é da autoria da Profa. Thais Câmara Maia Fernandes Coelho, que em seu mestrado desenvolveu dissertação a respeito do tema “Autocuratela patrimonial”. (In COELHO, Thais Câmara Maia Fernandes. Autocuratela patrimonial: Mandato permanente para o caso de incapacidade superveniente. Dissertação de mestrado. PUC Minas. 2012).

 

7 O conteúdo da autocuratela já foi objeto de reflexão mais profunda em outra oportunidade: TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; RETTORE, Anna Cristina de Carvalho; ALMEIDA, Beatriz. Reflexões sobre a autocuratela na perspectiva dos planos do negócio jurídico. In: MENEZES, Joyceane Bezerra de (org.). Direito das pessoas com deficiência psíquica e intelectual nas relações privadas: Convenção sobre os direitos da pessoa com deficiência e Lei Brasileira de Inclusão. Rio de Janeiro: Processo, 2016, pp. 319-361.

 

8 Ver, por todos, DADALTO, Luciana. Testamento vital. 6ª ed. Indaiatuba: Foco, 2022.

 

9 DADALTO, Luciana. Testamento vital. 6ª ed. Indaiatuba: Foco, 2022, p. 93-98.

 

10 Há outras modalidades de planejamento do envelhecimento, tal como a Tomada de Decisão Apoiada, inaugurada pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência que, em suma, significa que a pessoa com deficiência, com fragilidade reduzida, propõe um plano de apoio juntamente com 2 pessoas, para fins específicos, mediante controle judicial (art. 1.783-A do Código Civil).

 

11 Trata-se de dados da 5ª edição do Relatório Cartório em Números. Disponível em Cartorios-em-Numeros-5a-Edicao-2023-Especial-Desjudicializacao.pdf (anoreg.org.br) . Acesso em 11.08.2024.

 

12 MIRANDA, Alexandre; TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. Qualificação e quantificação da legítima: critérios para partilha de bens. In: TEIXEIRA, Daniele Chaves. Arquitetura do planejamento sucessório. Tomo II. Belo Horizonte: Fórum, 2021, p. 27-39.

 

Fonte: Migalhas

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