O Código Civil de 2002 trata da RHA – reprodução humana assistida de maneira limitada, apenas mencionando o tema nos incisos III, IV e V do art. 1.597, que versam sobre as presunções de filiação.
Embora inicialmente vistas como inovadoras, essas disposições demonstraram, ao longo dos anos, mais deficiências do que soluções, gerando incertezas jurídicas que ainda perduram, é o que observam Carlos Henrique Félix Dantas e Manuel Camelo Ferreira da Silva Netto (2022, p. 146-147) “a contar do desenvolvimento de novas tecnologias e também das transformações sociojurídicas em matéria de direito das famílias, essa sistemática mostrou-se insuficiente para tutelar as relações paterno-materno-filiais na contemporaneidade”.
Além disso, a falta de uma legislação específica e a grande quantidade de projetos de lei em tramitação destacam a necessidade urgente de uma regulamentação adequada. De acordo com a pesquisa realizada por Manuel Camelo Ferreira da Silva Netto (2022), com dados coletados até 19 de abril de 2022, foram identificados 24 projetos de lei em tramitação no congresso nacional brasileiro, todos com a intenção de regulamentar, de alguma forma, o uso das RHA no Brasil.
No atual contexto jurídico brasileiro, a reprodução assistida é regulamentada por um instrumento que representa um acordo de vontades com proteção jurídica, devendo seguir as diretrizes estabelecidas na resolução 2.320/22 do CFM – Conselho Federal de Medicina. O cumprimento integral das cláusulas pactuadas é imprescindível para evitar a responsabilidade civil por eventual descumprimento. Por isso, essas resoluções deontológicas têm um papel fundamental na definição dos parâmetros para a prática da reprodução assistida.
Por outro lado, a resposta a essas lacunas legislativas, foi instituída em 2023 a comissão de juristas para a elaboração de um anteprojeto de revisão do diploma civil de 2002. Essa iniciativa visa alinhar o Código Civil às demandas jurídicas contemporâneas.
A proposta de reformulação inclui a atualização do art. 1.597 e a criação de novos dispositivos, como o art. 1.598-A, que trata da presunção de filiação em casos de RHA, além de um capítulo específico dedicado à filiação decorrente da reprodução humana assistida. Esse capítulo incluirá artigos que dispõem sobre disposições gerais, doações de gametas, cessão temporária de útero, reprodução assistida post mortem e consentimento informado.
No que tange a responsabilidade contratual em casos de reprodução assistida, Flaviana Rampazzo Soares (2021) destaca a exigência de um vínculo obrigacional prévio e a ocorrência de dano decorrente do descumprimento do contrato. A importância do termo de consentimento, um documento essencial para garantir que o paciente tenha sido devidamente informado e concordado com o procedimento, é igualmente crucial.
Nota-se que a relação de confiança nos bionegócios reprodutivos é peculiar, pois envolve não apenas a prestação de um serviço altamente especializado, mas também a realização de sonhos de parentalidade e a busca pela felicidade e plenitude existencial. Como afirmam Carla Froener e Marcos Catalan (2020), o avanço da biotecnologia é impulsionado por esses sonhos, que vão desde tratamentos estéticos até a gestação de filhos que possam trazer esperança a vidas vazias de sentido.
Portanto, o material genético criopreservado e os embriões gerados exigem cuidado, zelo e comprometimento ético e jurídico, para que o sonho da geração de filhos por meio das biotecnologias não se transforme em um pesadelo irreparável, mesmo com a tutela jurídico-ética.
Apesar da possibilidade de buscar reparação na esfera civil e penal, a valoração pecuniária raramente consegue sanar os prejuízos existenciais dos envolvidos, tornando a prevenção de tais incidentes a melhor alternativa.
- Risco de Violação de Sigilo e Consequências Jurídicas
O art. 1.629-I do anteprojeto propõe o tratamento sigiloso e estrito dos dados relativos a doadores, receptores e demais envolvidos nas técnicas de reprodução assistida. A violação desse sigilo não apenas configura uma infração ética, mas também pode resultar em ações judiciais por danos extrapatrimoniais e materiais, comprometendo a privacidade e a dignidade das partes envolvidas. A divulgação indevida dessas informações poderia gerar conflitos familiares e demandas por reconhecimento de paternidade, desencadeando uma série de questões jurídicas complexas.
Art. 1.629-I. Todos os dados relativos a doadores, receptores e demais recorrentes das técnicas de reprodução medicamente assistida devem ser tratados no mais estrito sigilo, não podendo ser facilitadas nem divulgadas informações que permitam a identificação do doador e do receptor.
O sigilo das informações, especialmente sobre doadores e receptores, é um ponto central no anteprojeto. O art. 1.629-K prevê a manutenção do anonimato, exceto em situações excepcionais, como o direito da pessoa nascida de conhecer sua origem biológica, mediante autorização judicial.
Art. 1.629-K. É garantido o sigilo ao doador de gametas, salvaguardado o direito da pessoa nascida com a utilização de seu material genético de conhecer sua origem biológica, mediante autorização judicial, para a preservação de sua vida, a manutenção de sua saúde física, a sua higidez psicológica ou por outros motivos justificados.
- 1º O mesmo direito é garantido ao doador em caso de risco para sua vida, saúde ou por outro motivo relevante, a critério do juiz.
- 2º Nenhum vínculo de filiação será estabelecido entre o concebido com material genético doado e o respectivo doador.
E é nesse ponto que surgem questionamentos, pois as situações em que o sigilo pode ser relativizado dependem exclusivamente do “critério do juiz”. Além da discussão sobre a excessiva judicialização desse tema, observa-se que o próprio CFM já flexibilizou a regra do anonimato, em função das decisões judiciais que vinham relativizando esse sigilo nos casos de parentes até o 4º grau, autorizando o tratamento de fertilização in vitro com um doador conhecido pela receptora, afastando a regra de anonimato do doador de gametas, prevista nas normas éticas para utilização das técnicas de reprodução assistida, item IV, 2, do anexo da Resolução n. 2.294/21 do CFM (VIEIRA, 2022).
Dessa forma, parece que a proposta de atualização do código devolverá ao Judiciário o papel de se debruçar sobre essa questão, sendo novamente chamado a se pronunciar sobre uma prática que já se tornava comum no uso das técnicas de reprodução humana assistida.
- Manipulação Genética: Limitações e Implicações
O art. 1.629-D do anteprojeto estabelece restrições rigorosas quanto ao uso das técnicas de reprodução assistida, com o objetivo de proteger a integridade do patrimônio genético humano e assegurar que as práticas sejam conduzidas de maneira ética e segura.
Art. 1.629-D. As técnicas reprodutivas não podem ser utilizadas para:
- fecundar ócitos humanos com qualquer outra finalidade que não o da procriação humana;
- criar seres humanos geneticamente modificados;
- criar embriões para investigação de qualquer natureza;
- criar embriões com finalidade de escolha de sexo, eugenia ou para originar híbridos ou quimeras;
- intervir sobre o genoma humano com vista à sua modificação, exceto na terapia gênica para identificação e tratamento de doenças graves via diagnóstico pré-natal ou via diagnóstico genético pré-implantacional.
As técnicas principais e auxiliares de reprodução assistida não poderão:
Inciso I (possuir finalidade diferente da reprodução humana), ou seja, o único propósito de utilização das técnicas deve ser exclusivamente o tratamento da infertilidade humana, visando concretizar o projeto de parentalidade. Qualquer uso diverso desse objetivo está estritamente proibido.
Inciso II (intenção de criar seres humanos geneticamente modificados), a norma proíbe qualquer intervenção que vise modificar geneticamente seres humanos. Essa vedação está alinhada ao princípio jurídico da diversidade no patrimônio genético humano, que serve como limitador da autonomia no planejamento familiar, principalmente diante dos avanços na terapia gênica (DANTAS, 2023). Essa proteção garante que o avanço da ciência não comprometa a integridade genética das futuras gerações.
Inciso III (fecundar embriões com a finalidade exclusiva de pesquisa científica), fica proibida a fecundação de embriões com o único intuito de pesquisa, salvo em situações específicas previstas no ordenamento. A esse respeito, a lei de biossegurança (n. 11.105/2005) permite o uso de embriões crioconservados há mais de três anos para fins de pesquisa científica, desde que com o consentimento dos beneficiários, e conforme ratificado pelo STF na ADIn n. 3.510/DF, julgada em 2008.
Inciso IV (escolher o sexo, realizar eugenia, ou criar híbridos ou quimeras), o anteprojeto traz uma vedação relativa à manipulação genética em várias frentes. A distinção entre práticas terapêuticas e de aprimoramento humano se torna nebulosa na prática, o que justifica a proibição. A eugenia, historicamente controversa, é vista com cautela para evitar intervenções que possam ser interpretadas como tentativa de melhorar a espécie humana com base em valores sociais questionáveis (DANTAS, 2022). A mestiçagem entre espécies, especialmente a coligação do DNA humano com outras espécies, é vedada, preservando a pureza genética humana. A criação de quimeras, que ocorre quando um indivíduo possui dois tipos distintos de DNA, é igualmente proibida. Esta condição, embora raríssima, é vista como altamente controvertida quando artificialmente induzida (RAMOS; CUNHA, 2016).
Inciso V (intervir no genoma), a vedação à modificação do patrimônio genético humano em linhagem germinativa é reiterada, em linha com o art. 25 da Lei de biossegurança, que estabelece: “praticar engenharia genética em célula germinal humana, zigoto humano ou embrião humano: Pena – reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa”. Por outro lado, a intervenção genética é permitida apenas para tratamentos especializados de “doenças graves”. A questão subjetiva dessa norma reside na definição precisa do que constitui uma doença grave, o que pode levar a uma nova análise pelo Judiciário.
O uso das técnicas de reprodução assistida deve ser sempre precedido de uma análise clínica detalhada, assegurando que o tratamento seja adequado ao quadro do paciente. Além disso, é essencial que os pacientes sejam plenamente informados sobre todos os possíveis riscos, tanto à saúde física quanto à saúde da descendência. Essas informações devem ser registradas em um termo de consentimento livre e esclarecido, garantindo uma efetiva compreensão por parte de todos os envolvidos acerca das implicações do procedimento.
- Falha na informação ao sistema nacional de produção de embriões
O art. 1.629-J do anteprojeto impõe uma obrigação às clínicas e centros médicos de informar ao SisEmbrio – sistema nacional de produção de embriões sobre os nascimentos decorrentes de reprodução assistida com material genético doado.
Art. 1.629-J. É obrigatório para as clínicas, hospitais e quaisquer centros médicos de reprodução medicamente assistida informar ao SisEmbrio os nascimentos de crianças com material genético doado, seus respectivos dados registrais e os dados do doador, a fim de viabilizar consulta futura pelos ofícios de registro civil de pessoas naturais, em razão de verificação de impedimentos em procedimento pré-nupcial para o casamento.
Parágrafo único. O SisEmbrio manterá arquivo atualizado, com informação de todos os nascimentos em consequência de processos de reprodução assistida heteróloga, sendo este arquivo perene.
A omissão dessa informação pode gerar problemas legais significativos, especialmente em questões de impedimentos matrimoniais e herança, resultando em insegurança jurídica e potenciais litígios. O registro adequado desses dados é fundamental para preservar a ordem jurídica e garantir os direitos de todos os envolvidos.
A obrigação de informar ao SisEmbrio busca evitar casamentos e uniões putativas e garantir a fiscalização das clínicas, assegurando que os dados sobre nascimentos de crianças resultantes de reprodução assistida sejam devidamente registrados. Essa medida visa não apenas proteger os direitos dos envolvidos, mas também assegurar a integridade do processo reprodutivo, prevenindo conflitos futuros.
Considerações finais
As normas propostas no anteprojeto do código civil sobre reprodução assistida estabelecem parâmetros para a prática segura e ética dessas técnicas. A definição de critérios claros na legislação proporciona segurança na análise de possíveis violações dessas disposições, que podem resultar em graves consequências jurídicas. Muitas vezes essas implicações transcendem a esfera civil, afetando também as dimensões éticas e existenciais das partes envolvidas.
É importante destacar que, no caso específico do dano biológico, tais lesões empobrecem a existência humana, reduzindo, sobremaneira, o valor e a dignidade da pessoa (QUEIROZ, 2015, p. 193). Portanto, deve-se buscar, sobretudo, a reparação integral desses danos, conforme estabelecido no sistema de responsabilidade civil vigente (TRIGO, 2012, p. 177). Logo, a positivação de normas claras é essencial para proteger os direitos dos envolvidos e manter a integridade do processo reprodutivo, evitando que o sonho da parentalidade se transforme em um pesadelo irreparável.
O anteprojeto é acertado ao estabelecer parâmetros e discutir temas biojurídicos que necessitam de regulamentação, fortalecendo a segurança jurídica e criando diretrizes para futuras responsabilizações civis, ao encontro da prevenção de danos.
Ao regulamentar o uso das técnicas de reprodução assistida, o anteprojeto não apenas estabelece direitos e obrigações para os envolvidos e os profissionais de saúde, mas também contribui para a prevenção de graves consequências jurídicas e danos irreparáveis, garantindo uma abordagem ética e responsável na aplicação dessas tecnologias.
________
CORRÊA, Daniel Marinho. Danos extrapatrimoniais: Interfaces entre prevenção, punição e quantificação. Londrina, Thoth: 2021.
DANTAS, Carlos Henrique Félix. Aprimoramento genético em embriões humanos: limites ético-jurídicos ao planejamento familiar na tutela da deficiência como diversidade biológica humana. 1. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2022.
DANTAS, Carlos Henrique Félix. O princípio jurídico da preservação da diversidade no patrimônio genético humano como um limitador da autonomia no planejamento familiar. In: EHRHARDT JÚNIOR, Marcos; LÔBO, Fabíola. (Org.). Constitucionalização das relações privadas: fundamentos de interpretação do direito privado brasileiro. 1ed.Belo Horizonte: Fórum, 2023, p. 169-184.
DANTAS, Carlos Henrique Félix; SILVA NETTO, Manuel Camelo Ferreira da. O ‘abismo’ normativo no trato das famílias ectogenéticas: a insuficiência do art. 1597 (incisos III, IV e V) em matéria de reprodução humana assistida homóloga e heteróloga nos 20 anos do Código Civil. In: BARBOZA, Heloisa Helena; TEPEDINO, Gustavo; MONTEIRO FILHO, Carlos Edson do Rêgo. (Orgs.). Direito Civil: o futuro do direito. Rio de Janeiro: Editora Processo, 2022.
FROENER, Carla. CATALAN, Marcos. A reprodução humana assistida na sociedade de consumo. Indaiatuba, Foco: 2020.
QUEIROZ, Luísa Monteiro de. Do dano biológico. In: Revista da Ordem dos Advogados, ano. 75, n. 1, jan.-jun. 2015.
RAMOS, Ana Virgínia Gabrich Fonseca Freire; CUNHA, Lorena Rodrigues Belo da. Um outro eu: o caso das quimeras humanas. Revisto Bioética y Derecho, Barcelona, 2016. Disponível aqui. Acesso em: 26 ago. 2024.
SILVA NETTO, Manuel Camelo Ferreira da. A reprodução humana assistida e as dificuldades na sua regulamentação jurídica no Brasil: uma análise dos vinte e quatro projetos de lei que tramitam no Congresso Nacional. In: EHRHARDT JÚNIOR, Marcos; CATALAN, Marcos; MALHEIROS, Pablo. (Orgs.). Direito Civil e Tecnologia Tomo II. 2. ed. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2022.
SOARES, Flaviana Rampazzo. Consentimento do paciente no Direito Médico. Indaiatuba: Foco, 2021.
TRIGO, Maria da Graça. Adopção do conceito de “dano biológico” pelo direito português. In: Revista da Ordem dos Advogados, ano 72, vol. I, jan.-mar. 2012.
VIEIRA, Cristiane Pinho. Fertilização in vitro com doador conhecido. Disponível aqui. Acesso em: 25 ago. 2024.
Fonte: Migalhas
Deixe um comentário