O projeto de lei complementar 108/24, em análise no Senado, propõe mudanças significativas no ITCMD, incluindo a incidência sobre dividendos distribuídos desproporcionalmente, sem justificativa negocial comprovada

 

A regulamentação da reforma tributária está em andamento no Congresso Nacional. Dentre os projetos de lei que pretendem fazer essa regulamentação há um que poderá causar enormes alterações no imposto sobre doação e herança: O projeto de lei complementar 108/24, que foi recentemente aprovado pela Câmara dos Deputados e segue para apreciação do Senado.

 

Esse projeto de lei, dentre várias outras disposições, dedica um livro (Livro II) integralmente ao ITCMD – Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação de Quaisquer Bens ou Direitos.

 

O imposto é de competência dos estados (e do Distrito Federal), que são os únicos entes que podem instituí-lo e cobrá-lo dos contribuintes. Mas as regras gerais – que devem ser seguidas por todos os estados – são definidas por lei complementar federal, como a que está atualmente em votação.

 

São vários os novos contornos que o projeto de lei pretende conferir ao ITCMD, definindo regras novas sobre alíquotas, contribuintes, sujeitos ativos e base de cálculo.

 

No presente texto, será analisada uma nada ortodoxa nova definição de fato gerador do imposto: A distribuição desproporcional de dividendos.

 

ITCMD e a subjetividade

 

O ITCMD tem por um de seus fatos geradores a doação. O projeto de lei determina que, para fins de incidência do imposto, são considerados doações os atos societários que resultem em benefícios desproporcionais para sócio ou acionista caso não tenham justificativa negocial passível de comprovação. E, como exemplo destas espécies de atos, é citada expressamente a distribuição desproporcional de dividendos.

 

Isso significa que, se o projeto de lei for aprovado com a redação atual, os estados poderão exigir ITCMD sobre distribuição de dividendos caso ela seja desproporcional e o ente tributante entenda que não existe justificativa negocial para essa forma de distribuição ou – ainda pior – caso entenda que não é possível comprovar a justificativa negocial. Atualmente, a alíquota do ITCMD pode chegar a 8%, mas há outros projetos de lei em curso que podem elevá-la para 16%.

 

De início, já salta aos olhos que essa nova disposição possui grande potencial de geração de disputas ente fisco e contribuinte. A conclusão pela existência ou não de justificativa negocial dos atos societários pode ser extremamente subjetiva, especialmente atos societários que são praticados por razões também subjetivas e peculiares a cada negócio e ocasião.

 

Isso ocorre em relação aos parâmetros que norteiam os sócios de uma empresa para decidir que seus lucros devem ser distribuídos de maneira desproporcional às quotas que detêm. Esses parâmetros são precisamente a justificativa negocial. E, para cada empresa, estas justificativas são específicas e únicas ao seu negócio.

 

Por exemplo, determinada empresa pode ter decidido distribuir lucros de modo desproporcional para premiar um sócio que trabalha mais que os demais na administração da sociedade. Outra empresa pode entender que deve receber mais lucros não aquela pessoa que administra mais a sociedade, mas sim quem traz maior número de clientes ou faturamento. Em ambas as hipóteses as empresas possuem justificativas negociais para a distribuição desproporcional de dividendos. E as justificativas são totalmente distintas, já que elas surgem de acordo com os valores que a empresa atribui para condutas distintas.

 

Se a primeira empresa do exemplo acima fosse julgar se há justificativa negocial para a distribuição desproporcional de dividendos da segunda empresa ela poderia concluir que não há. O mesmo poderia acontecer em sentido inverso. Os atributos aos quais estas duas empresas conferem maior valor são distintos entre si. Nota-se a subjetividade quanto à justificativa para estes atos societários, que é própria de cada administração e está relacionada à própria visão de negócios de cada uma desta empresas.

 

É perigoso o texto do projeto de lei complementar que permite que os estados fiscalizem e concluam por si quanto a existência ou não de justificativa negocial que baliza a decisão da empresa por fazer a distribuição desproporcional de lucros.

 

E não bastasse, o texto do projeto de lei exige que esta justificativa negocial seja passível de comprovação. Como comprovar as razões estratégicas que fundamentaram determinada decisão?

 

Criar embaraços para que a vontade dos sócios prevaleça é uma clara violação ao princípio da autonomia da vontade, o qual deve reger as relações de direito privado. Há ainda outra mácula técnica no texto do projeto de lei complementar 108/24: Ele distorce o conceito de “doação” – que é um instituto de Direito Privado – para alargar a competência tributária dos Estados, o que é proibido pelo CTN (art. 110).

 

Em outras palavras, o texto do projeto de lei pretende distorcer o conceito de doação para que, alargando-o, possam os estados cobrar imposto sobre um evento jurídico que normalmente não poderia atrair a incidência do ITCMD.

 

Ora, a doação é definida no Código Civil, em seu art. 538: “Considera-se doação o contrato em que uma pessoa, por liberalidade, transfere do seu patrimônio bens ou vantagens para o de outra.” Ou seja, doação tem por premissa liberalidade.

 

Na distribuição de dividendos não há transferência de valores por liberalidade da pessoa jurídica que apura lucro. A distribuição decorre de um ajuste societário entre sócios e sociedade, estampado no contrato social. A sociedade foi instituída justamente com a finalidade de gerar lucros e repassá-los a seus sócios, ou seja, havendo previsão nesse sentido no contrato social, a sociedade possui a obrigação de distribuir lucros. Não há liberalidade.

 

Esse raciocínio aplica-se a qualquer distribuição de lucros, seja ela proporcional ou desproporcional. Raciocínio em sentido diverso implica a excêntrica conclusão de que toda distribuição de lucro seria uma doação, pois a sociedade – por “liberalidade” – decidiria pela distribuição de lucros ou não.

 

Atenção à tramitação

 

Independentemente dessas considerações, caso o projeto de lei complementar 108/24 seja aprovado com a redação com a qual se encontra, é importante que as sociedades revisem seus contratos sociais para assegurar que, na hipótese de previsão de distribuição desproporcional de dividendos, haja o registro de elementos aptos a embasar o argumento de que há justificativa negocial para esta previsão.

 

Isto é, ainda que subjetivos, quanto mais elementos constarem do contrato social das sociedades que revelem o racional por trás da distribuição desproporcional de dividendos, maiores são as chances de ser afastada a incidência do ITCMD caso os estados decidam fiscalizar esses atos jurídicos.

 

Fonte: Migalhas

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