Dentre as inúmeras e importantíssimas inovações trazidas pelo anteprojeto de reforma do CC1, uma merece especial destaque: o tratamento jurídico do assim chamado “Direito Civil Digital”, inserido no livro VI da proposta apresentada.

 

O texto é bastante abrangente e foi estruturado em dez capítulos. O Capítulo I estabelece as bases do Direito Civil Digital, incluindo princípios e fundamentos, com foco na proteção da dignidade, privacidade e propriedade no ambiente digital, bem como na promoção da inovação e acessibilidade. Capítulo II aborda os direitos das pessoas naturais e jurídicas no ambiente digital, enfatizando a proteção de dados, direitos de personalidade, liberdade de expressão e critérios para determinar a licitude dos atos digitais. O Capítulo III define e regulamenta as situações jurídicas digitais, estabelecendo direitos e deveres emergentes das interações digitais. O Capítulo IV assegura o direito a um ambiente digital seguro e transparente, destacando a importância de práticas de moderação de conteúdo que respeitem as liberdades individuais. O Capítulo V detalha o conceito de patrimônio digital, estabelecendo diretrizes para sua gestão e transmissão hereditária, além de abordar o tratamento de dados pessoais no contexto digital. O Capítulo VI foca na proteção integral de crianças e adolescentes no ambiente digital, exigindo medidas como verificação de idade e garantia de acesso a conteúdos apropriados. O Capítulo VII estipula diretrizes para o desenvolvimento e implementação de sistemas de inteligência artificial, enfatizando não-discriminação, transparência e responsabilidade civil. O Capítulo VIII aborda a validade e os princípios dos contratos celebrados digitalmente, assegurando que cumpram os mesmos requisitos legais dos contratos tradicionais. O Capítulo IX: Define as modalidades de assinaturas eletrônicas e estabelece os requisitos para sua validade e uso em documentos jurídicos. O Capítulo X estrutura normas para a realização de atos notariais eletrônicos, garantindo sua autenticidade, integridade e confidencialidade, legitimando legislativamente um importante provimento do CNJ surgido durante a pandemia.

 

Na atualidade, a “digitalização da sociedade”, decorrente da penetrabilidade das tecnologias digitais, em especial da internet, em praticamente todos os setores da existência humana, ressignificou a expressão “navegar é preciso”. De fato, parcela considerável (e crescente) das atividades humanas depende do uso das tecnologias digitais, a ponto de tornar-se impossível pensar a forma de ser e viver atual sem sua utilização. De instrumento, como toda técnica, a internet se tornou o ambiente2, moldando, assim, as condições reais e concretas da existência humana.

 

Luciano Floridi, a partir dessa constatação, cunhou o neologismo “onlife” para designar a forma de vida atual, em que a nova condição humana ocasionou a superação da barreira entre o virtual e o real. Na sua visão, a aceitação das tecnologias da informação e da comunicação pelas pessoas afeta radicalmente a condição humana, via transformação das interações das pessoas consigo mesmas, com os demais e com a natureza (tradução nossa)3.

 

Este novo paradigma altera consideravelmente as relações sociais e econômicas, criando uma dependência em relação ao tecnicismo digital que permeia praticamente todas as atividades humanas.

 

Nesse contexto, as rápidas transformações econômicas e sociais possibilitadas pela internet permitiram um exercício mais efetivo de uma série de direitos fundamentais, especialmente aqueles ligados à liberdade. Contudo, como toda inovação tecnológica, a transformação digital é ambivalente, trazendo consigo inúmeros riscos a diversos direitos, riscos estes amplificados, primeiro, pelo desequilíbrio de poder entre os detentores das tecnologias digitais, os “Senhores da Informação”4,  e os usuários; segundo, pela penetrabilidade da internet, que, como ressaltado, atrai para o campo digital a maioria dos ambientes sociais5.

 

O direito, como “saber prático”6,  nessa conjuntura, necessita adaptar-se com o fito de criar instrumentos aptos a analisar e a compreender as transformações tecnológicas e, com isso, regular adequadamente as relações jurídicas decorrentes7. Em outras palavras, a ciência do direito, para servir à sociedade, deve ser sempre atualizada e altamente ligada ao desenvolvimento social, o que inclui – mas não se restringe – os avanços tecnológicos8 digitais.

 

E, sendo o Direito Civil o ramo do Direito que regulamenta as relações cotidianas entre as pessoas, garantindo seus direitos e deveres nas relações privadas, tem urgência em voltar sua atenção, de forma bastante detida, para esse novo “ambiente” da experiência humana. Como dissemos em recente passagem, falando especificamente do tratamento dos dados pessoais mas que pode ser aplicado a totalidade da matéria, “trata-se de um encontro desafiador entre o novo e o velho, entre a era digital e os conceitos tradicionais do Direito Civil9.”  Isso em razão de que se está diante de uma realidade complexa que o sistema jurídico enfrenta na atualidade. O encontro entre os conceitos tradicionais do Direito Civil e as inovações trazidas pela era digital representa um dos maiores desafios jurídicos da atualidade. Este embate entre o “velho” e o “novo” se manifesta em diversas áreas fundamentais do Direito Civil, exigindo uma profunda reflexão e adaptação dos princípios jurídicos estabelecidos.

 

No âmbito da personalidade e capacidade jurídica, o ambiente digital introduz complexidades antes inimagináveis. A existência de identidades digitais e avatares questiona os limites tradicionais da personalidade, enquanto a persistência de perfis em redes sociais após a morte do usuário desafia as noções estabelecidas de capacidade jurídica. O caso emblemático da herança digital, onde familiares buscam acesso às contas online de entes falecidos, ilustra vividamente como o mundo virtual está redefinindo conceitos fundamentais do Direito Civil.

 

A concepção tradicional de propriedade e bens também se vê desafiada pela realidade digital. A emergência de bens intangíveis, como criptomoedas e NFTs, questiona a aplicabilidade dos conceitos clássicos de propriedade. Além disso, a proteção da propriedade intelectual em ambientes virtuais, especialmente em relação a conteúdos gerados por usuários em plataformas digitais, apresenta desafios inéditos. A comercialização de terrenos virtuais em metaversos, por exemplo, exemplifica como o valor econômico e a noção de propriedade estão sendo redefinidos no contexto digital.

 

No campo dos contratos, a revolução digital impõe uma revisão profunda dos princípios estabelecidos. A proliferação de contratos eletrônicos e a emergência de smart contracts baseados em blockchain desafiam as noções tradicionais de manifestação de vontade e formalização de acordos. A simples ação de clicar para aceitar os termos de uso de um aplicativo levanta questões complexas sobre a natureza do consentimento e a formação de vínculos contratuais no ambiente digital.

 

A responsabilidade civil, por sua vez, enfrenta desafios sem precedentes na era digital. A atribuição de responsabilidade por danos causados por sistemas de inteligência artificial autônomos ou por conteúdos gerados por usuários em plataformas online desafia os fundamentos tradicionais da teoria da responsabilidade. O caso hipotético de um acidente causado por um veículo autônomo ilustra a complexidade de determinar a responsabilidade em um cenário onde a intervenção humana direta é minimizada.

 

Por fim, a privacidade e a proteção de dados emergem como questões centrais no encontro entre o Direito Civil e o mundo digital. A coleta massiva de dados pessoais, o perfilamento algorítmico e o surgimento do direito ao esquecimento desafiam a concepção tradicional de privacidade como o simples “direito de ser deixado só”. O uso generalizado de cookies e rastreadores online para criar perfis detalhados de consumidores exemplifica como as práticas digitais estão redefinindo os limites da privacidade e do consentimento10.

 

Este panorama de desafios evidencia que o encontro entre o Direito Civil tradicional e a era digital não é apenas um obstáculo a ser superado, mas uma oportunidade única de evolução jurídica. A tarefa que se impõe aos juristas, legisladores e à sociedade como um todo é a de reinterpretar criativamente os princípios fundamentais do Direito Civil. O objetivo é preservar os valores essenciais que têm guiado as relações privadas por séculos, adaptando-os simultaneamente às novas realidades tecnológicas. Este processo demanda um equilíbrio delicado entre a manutenção da segurança jurídica e a flexibilidade necessária para acomodar as rápidas e contínuas mudanças tecnológicas.

 

Em última análise, o sucesso nessa empreitada garantirá que o Direito Civil continue a cumprir seu papel fundamental na regulação das relações privadas, mesmo em um mundo cada vez mais digitalizado. A adaptação do Direito Civil à era digital não é apenas uma necessidade prática, mas um imperativo para assegurar que a proteção dos direitos individuais permaneça relevante e eficaz no século XXI.

 

Após mais de 30 anos de quase absoluta ausência de regulação do ambiente digital, período em que muitas foram as tensões e desafios, verifica-se no presente uma crescente regulação mundial, a exemplo da União Europeia e dos Estados Unidos. Neste cenário, a proposta de reforma do CC brasileiro mostra-se não apenas necessária, mas também oportuna.

 

A inclusão do Direito Civil Digital no anteprojeto de reforma do CC representa um marco significativo na evolução do ordenamento jurídico brasileiro. Esta iniciativa reconhece a realidade “onlife” em que vivemos e busca estabelecer um equilíbrio entre a proteção dos direitos fundamentais e o fomento à inovação tecnológica. Ao abordar questões cruciais dessa nova realidade, o “novo” CC se propõe a ser um instrumento jurídico atual e eficaz, capaz de enfrentar os desafios da era digital. Desta forma, o Brasil se alinha às tendências internacionais de regulação do ambiente digital, fornecendo maior segurança jurídica para cidadãos e empresas, e promovendo um desenvolvimento tecnológico responsável e ético.

 

Concluída esta breve análise propedêutica, os próximos artigos se dedicarão ao exame minucioso de algumas das principais inovações propostas pelo anteprojeto de reforma do CC no âmbito do Direito Civil Digital. Exploraremos em detalhes como essas mudanças buscam adaptar nosso ordenamento jurídico às complexidades da era digital.

 

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1 Disponível aqui.

 

2 Umberto Galimberti considera que a técnica, como um todo, se tornou o ambiente que cerca e constitui todos os indivíduos. Tal generalização não é indene de discussões. Contudo, parece não haver dúvida de que a internet exerce efetivamente esse papel. (GALIMBERTI, Umberto. Psiche e techne: o homem na idade da técnica. Tradução de José Maria de Almeida. São Paulo: Paulus, 2006. passim.). Em sentido próximo, Manuel Castells inicia seu livro A galáxia da internet afirmando que “[a] Internet é o tecido das nossas vidas” (CASTELLS, Manuel. A galáxia da internet: reflexões sobre a internet, os negócios e a sociedade. Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. p. 7).

 

3 FLORIDI, Luciano. The onlife manifesto: being human in a hyperconnected era. London: Springer, 2015. p. 2.

 

4 RODOTÀ, Stefano. A vida na sociedade da vigilância: a privacidade hoje. Tradução de Danilo Doneda e Luciana Cabral Doneda. Organização, seleção e apresentação de Maria Celina Bodin de Moraes. São Paulo: Renovar, 2008.  p. 68.

 

5 Acerca da ambivalência da internet, esclarece Manuel Castells que “[a] elasticidade da internet a torna particularmente suscetível a intensificar as tendências contraditórias presentes em nosso mundo. Nem utopia nem distopia, a internet é a expressão de nós mesmos através de um código de comunicação específico, que devemos compreender se quisermos mudar nossa realidade”. CASTELLS, Manuel. A galáxia da internet: reflexões sobre a internet, os negócios e a sociedade. Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. p. 11.

 

6 STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 185-188.

 

7 Acerca da dificuldade de o direito acompanhar, na atualidade, a evolução tecnológica, colhe-se a seguinte passagem: “Os direitos humanos foram forjados no seio de sociedades em que as mudanças ocorreram de forma lenta e gradual, de modo que a ciência jurídica estivesse em condições de as acolher e as acomodar nos conceitos jurídicos correspondentes. Hoje, o grande desafio que se coloca aos operadores do direito e aos próprios cidadãos é o de dispor de categorias de análise e de compreensão desses novos fenómenos”. PÉREZ LUÑO, Antonio Enrique. Los derechos humanos en la sociedad tecnológica. Madrid: Universitas, 2012a. p. 9. Tradução nossa. Texto original: “Los derechos humanos se forjaron en el seno de sociedades en las que los câmbios se producian de manera lenta y paulatina, por lo que la ciencia jurídica se hallaba em condiciones de poder assumirlos e alojarlos en los correspondientes conceptos jurídicos. Hoy, el gran reto que se plantea a los operadores del Derecho y a los propios ciudadanos reside em contar com unas categorias de análisis y de comprensión de esos nuevos fenómenos”. (Ibid., p. 9).

 

8 SAARENPÄÄ, Ahti. Derechos digitales.  In: BAUZÁ REILLY, Marcelo (Directordir.). El derecho de las TIC en Iberoamérica. Montevideo, Uruguay: Ed. LLa Ley Uruguay, 2019. cap. 10, p. 291-326. p. 292.

 

9 BUSATTA, Eduardo Luiz. Dados pessoais e reparação civil. Organização: Flávio Tartuce. Rio de Janeiro: Forense, 2024.

 

10 Ver a respeito: BUSATTA, Eduardo Luiz. Dados pessoais e reparação civil. Organização: Flávio Tartuce. Rio de Janeiro: Forense, 2024.

 

Fonte: Migalhas

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