Damos continuidade ao assunto tratado na coluna anterior
Havíamos cuidado da adaptação de direito real estrangeiro no âmbito do Direito das Sucessões na União Europeia. E havíamos indicado que o tema é disciplinado pelo art. 31º do Regulamento Europeu das Sucessões (Regulamento EU 650/12), in verbis:
Artigo 31.º
Adaptacão dos direitos reais
No caso de uma pessoa invocar um direito real sobre um bem a que tenha direito ao abrigo da lei aplicável à sucessão e a legislação do Estado-Membro em que o direito é invocado não reconhecer o direito real em causa, esse direito deve, se necesário e na medida do possível, ser adaptado ao direito real equivalente mais próximo que esteja previsto na legislação desse Estado, tendo em conta os objetivos e os interesses do direito real em questão e os efeitos que lhe estão associados.
Passamos a detalhar questões mais práticas.
Os problemas em pauta são uma realidade. Apesar de não haver grandes divergências entre os países quanto ao reconhecimento do direito real de propriedade, não se dá o mesmo em relação aos direitos reais menores1. Essa heterogeneidade normativa é um potencial para causar conflitos que possam exigir a adaptação de direitos reais estrangeiros. Há vários exemplos2.
Lex successionis francesa atribui ao viúvo o usufruto sobre metade da herança composta de bens situados na Alemanha. Todavia, a Alemanha não admite usufruto sobre um patrimônio, mas só sobre coisa determinada. O que fazer?
Lex successionis espanhola atribui derecho de usufruto a favor del conyuge supérstite sobre um imóvel situado na Inglaterra3. Acontece que o direito inglês desconhece esse direito real. O que fazer?
Falecido era português, mas era domiciliado em Estocolmo (Suécia) e deixou imóvel nessa cidade sueca. Vivia em união de fato ao tempo da morte. Suponha que o falecido tenha eleito a lei portuguesa para reger a sucessão mortis causa. A lei lusitana assegura direito real de habitação para a viúva sobre o imóvel situado na Suécia. Indaga-se: se a lei sueca não conhecer o direito real de habitação, o que se fará?
Finlandês, residente em Portugal, faz testamento deixando um direito real de usufruto sobre um apartamento situado em Helsinque. Acontece que a lei portuguesa é a lei sucessória por se aplicar a lei do país de residência habitual do falecido. Que ocorrerá se o direito finlandês não conhecer o direito real de usufruto (que é admitido em Portugal)?
No mesmo caso acima, suponha que o finlandês falecido tenha, no testamento, estabelecido uma substituição fideicomissária sobre o imóvel situado em Londres. O direito português admite a substituição fideicomissária, com a criação de um direito de propriedade resolúvel do fiduciário. Indaga-se: que ocorrerá se o direito inglês não conhecer o direito de propriedade resolúvel criado com a substituição fideicomissária?
Testador, em caso em que a lei inglesa regule a sucessão mortis causa, atribui trust sobre imóvel situado em Portugal. Indaga-se: que se fará, tendo em vista que o trust não é conhecido pela legislação portuguesa?
“Quando o direito brasileiro não conhecia o divórcio e o direito japonês só conhecia essa forma de dissolução da sociedade conjugal, concedia-se aos nipo-brasileiros o desquite, raciocinando-se no sentido de que se o direito japonês autoriza o divórcio, plus, com maior razão deveria admitir o desquite, minus.”4
Cogitamos ainda outro exemplo, fora do sistema europeu: testamento celebrado no Brasil determinando a instituição de um condomínio em multiproprietário sobre um imóvel, com posterior outorga das unidades autônomas periódicas a diferentes herdeiros. Que se fará se, no país da situação do bem, o condomínio multiproprietário não for conhecido da legislação?
Diante de casos como esses decorrentes do conflito entre o estatuto real e o estatuto sucessório, há três alternativas:
simples recusa ao reconhecimento do direito real estrangeiro, frustrando totalmente a efetiva transmissão mortis causa;
introdução de uma figura autônoma de direito real, elastecendo o rol taxativo de direitos reais da lex rei sitae (opção essa aplicável apenas se a lex situs adotar uma tipologia de numerus clausus ou de semi-clausus de direitos reais);
adaptação do direito real estrangeiro para uma outra figura real próxima reconhecida pela lex rei sitae;
A primeira opção seria uma negação total à realidade internacional privada. Esvaziaria completamente a atribuição patrimonial feita pela lex successionis. Inibiria cabalmente que os indivíduos desenvolvem relações privadas internacionais. Ignora que, na prática, os direitos reais entre os países nunca serão idênticos, ainda que possuam a mesma etiqueta (nomen iuris): o direito real de propriedade, ainda que admitido com essa rotulagem em grande parte dos países, possui regime jurídico diverso e, portanto, raramente será idêntico entre os países. Por exemplo, na Holanda, é vedada a propriedade fiduciária que não tenha objetivo de efetivamente transferir a propriedade: a figura da alienação fiduciária em garantia, portanto, é vedada na Holanda, ao contrário do que se dá no Brasil. A primeira opção, a rigor, haveria de impedir qualquer tipo de atribuição patrimonial pela lex successionis: o direito real de propriedade da lex successionis não poderia ser “adaptado” no direito real de propriedade da lex situs.
A segunda opção é uma agressão à sistemática de numerus clausus ou de numerus semi-clausus do país da lex situs. Viola o interesse público de um Estado soberano em definir o modo de organização dos direitos reais. Contraria também a tradição pacífica e consolidada do direito internacional privado em eleger a lex situs para disciplinar o estatuto real, tradição essa que, inclusive, é ponto comum entre as famílias do civil law e do common law5.
A terceira alternativa (a adaptação) é a mais adequada em um ambiente de globalização e de prestígio ao direito fundamental dos indivíduos em exercer situações privadas transnacionais.
Enfim, a solução mais adequada para todos os casos acima é a adaptação de direitos reais estrangeiros na forma do art. 31º do Regulamento Europeu das Sucessões. Trata-se da via mais propícia à integração do bloco europeu.
A necessidade de valer-se da técnica adaptação envolvendo os direitos reais não ocorrem apenas em questões sucessórias.
Antonio Marques dos Santos (1989, pp. 542 e 571-572) dá exemplo envolvendo a aplicação da técnica da adaptação diante de resultados inadmissíveis provocados pelo “jogo de normas conflituais” envolvendo o estatuto contratual e o estatuto real.
Suponha um contrato de compra e venda celebrado em Portugal envolvendo um imóvel situado na Alemanha.
Pelas normas tradicionais de conflito de normas, a lex contractus será a lei portuguesa (lei do lugar da celebração do contrato). Por esse contrato, o imóvel já é transferido ao comprador6, enquanto o comprador tem de pagar o preço. O registro público é apenas declarativo. A propriedade transfere-se com o contrato.
Acontece que o modo de transferência do direito real de propriedade é tratado de modo diverso pela lei alemã (lex rei sitae). Na Alemanha, a transferência da propriedade não se dá com o mero contrato, e sim por um ato real (Übereignung).
Há, pois, aí uma contradição lógica: a lei portuguesa admite a transmissão da propriedade com o mero contrato de compra e venda, ao passo que a lei alemã exige um ato adicional (o ato real – Übereignung).
Essa contradição lógica precisa ser resolvida pelo instituto da adaptação stricto sensu. E, pela adaptação stricto sensu, deve-se alterar o conteúdo da lei portuguesa para estabelecer que, nesse caso, o contrato de compra e venda não haverá de transferir a propriedade de imóvel, mas dependerá de um ato real a ser praticado na forma da lei alemã. Assim, a lei portuguesa, nesse caso, é adaptada para estabelecer que o vendedor passa a ter uma obrigação de transferir a coisa (e não mais que o próprio contrato já implica a transferência da propriedade).
Por fim, destacamos que, no Brasil, apesar de inexistir dispositivo expresso, temos que a adaptação de direito estrangeiro tem de ser admitida exatamente nos mesmos termos da União Europeia. Isso, por conta do princípio da harmonização internacional dos direitos reais, que, a nosso sentir, integra o Direito Brasileiro, conforme já tivemos a oportunidade de defender.7
[1] PATRÃO, Afonso. A “adaptação” dos direitos reais no Regulamento Europeu das Sucessões. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n. 92, 2016, p. 128.
[2] Afonso Patrão cita alguns exemplos próprios e de outros autores (Paul Lagarde, Dierter Martiny e Isabel Rodríguez-Uría Suárez) (PATRÃO, Afonso. A “adaptação” dos direitos reais no Regulamento Europeu das Sucessões. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n. 92, 2016, pp. 128-129). Valerio de Oliveira Mazzuoli (MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Curso de Direito Internacional Privado. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 101) também indica exemplos.
[3] Usamos esse exemplo por motivos didáticos, apesar de sabermos que a Inglaterra já não mais integra a União Europeia e, portanto, não se sujeita mais ao supracitado Regulamento Europeu
[4] MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Curso de Direito Internacional Privado. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 101.
[5] PATRÃO, Afonso. A “adaptação” dos direitos reais no Regulamento Europeu das Sucessões. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n. 92, 2016, p. 132.
[6] Veja o art. 879º, “a”, do Código Civil português:
SECCÃO II
Efeitos da compra e venda
Artigo 879.º (Efeitos essenciais)
A compra e venda tem como efeitos essenciais:
- a) A transmissão da propriedade da coisa ou da titularidade do direito; b) A obrigação de entregar a coisa;
- c) A obrigacão de pagar o preço.
[7] OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de. O Princípio da Harmonização Internacional dos direitos reais: fundamento, adaptação de direitos reais estrangeiros, lex rei sitae, numerus clausus e outros desdobramentos. Disponível em: http://icts.unb.br/jspui/bitstream/10482/44703/1/2022_carloseduardoeliasdeoliveira.pdf.
Fonte: Migalhas
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