É fato notório, pelos constantes relatos estatísticos, que o crime de feminicídio, apesar do arsenal legislativo existente, vem apresentando um aumento considerável, deixando a entender que o feminicida, sabedor que é do alto grau de periculosidade que reveste sua conduta, não se intimida diante da pena e sim que, conforme vem ocorrendo em escala progressiva e, em muitos casos com requintes de crueldade, faz opção pelos atos de violência, não se importando com as consequências penais referentes ao seu status libertatis.

 

Nova investida legislativa surge com a promulgação da lei 14.994/24, conhecida como “Pacote Antifeminicídio”. Pode-se dizer que ordenamento jurídico brasileiro deu um passo fundamental na luta contra a violência perpetrada por razões da condição do sexo feminino da vítima, aumentando a proteção ao bem jurídico tutelado e garantindo maior eficiência ao caráter preventivo positivo e negativo da pena.

 

Em primeiro lugar, é imprescindível compreender a extensão do termo “razões da condição do sexo feminino”: (a) no contexto da violência doméstica e familiar e (b) com o menosprezo ou discriminação à condição de mulher (art. 121-A, § 1º, incisos I e II, do Código Penal).

 

Já surge, aqui, o primeiro questionamento: a mulher trans receberá a nova proteção legal? Não podemos esquecer do fato de que o STJ reconheceu a possibilidade de aplicação da lei Maria da Penha à mulher trans, na medida em que o requisito básico desta proteção é o gênero feminino e não o sexo biológico da vítima.1

 

Então, caberá agora ao intérprete da lei fixar o alcance da expressão “sexo feminino”, contida expressamente no novo crime tipificado no art. 121-A do Código Penal. Ao que parece, levando-se em conta a dignidade da pessoa humana, a vulnerabilidade da vítima e os mandados constitucionais implícitos e explícitos de criminalização, bem como o princípio da proibição da proteção deficiente de bens jurídicos, a mulher trans receberá o alcance da nova lei, não havendo falar-se na vedação da analogia prejudicial ao réu.

 

Desta feita, importante destacar a criação deste novo tipo penal: O feminicídio passou a ser crime autônomo, tipificado no art. 121-A do Código Penal, com penas cominadas em abstrato de 20 a 40 anos de reclusão.

 

Desta forma, o feminicídio, que já era uma das qualificadoras do crime de homicídio, ganha, com essa nova formulação, maior autonomia jurídica, refletindo a gravidade do crime e a necessidade de uma resposta penal mais robusta. Afinal, a partir de agora, é formalmente mais um dos crimes dolosos contra a vida, nominalmente apto a ser objeto de julgamento pelo tribunal popular do júri.

 

Além disso, a nova lei agrava as penas para os crimes correlatos, como lesão corporal e ameaça, perpetrados no mesmo contexto do feminicídio. No caso de lesão corporal, a pena mínima foi majorada para 2 anos de reclusão, com a máxima de 5 anos; para os crimes de injúria, calúnia e difamação, as penalidades agora são dobradas.

 

Outro aspecto central da nova legislação é a alteração na lei Maria da Penha (lei 11.340/06), que passou a prever penas mais rígidas para o descumprimento de medidas protetivas: os patamares da nova sanção vão de 2 a 5 anos de reclusão, o que reflete a tentativa do legislador de buscar maior proteção para a mulher em evidente situação de vulnerabilidade.

 

Mas a nova lei não parou por aí em seus reflexos externos. A lei de execução penal (lei 7.210/84) também foi ajustada, com mudanças substanciais para o cumprimento de pena de agressores. Agora a progressão de regime no feminicídio só será possível após o cumprimento de 55% da pena. Além disso, o uso de tornozeleira eletrônica passa a ser obrigatório para qualquer benefício de saída.

 

E, caso o agressor, durante o cumprimento da pena, venha a ameaçar a vítima, poderá ser transferido para um estabelecimento prisional distante do local onde vive a mulher, como medida de proteção adicional.

 

Mais um ponto notável da reforma é que o crime de ameaça, quando cometido no contexto ora estudado, passar a ser de ação penal pública de iniciativa incondicionada, ou seja, o Estado não necessita mais da autorização (representação) da vítima – conhecida como condição de procedibilidade – para iniciar a persecução penal, o que permite ao Delegado de Polícia instaurar de ofício o competente inquérito policial (caso haja elementos para tanto), bem como ao Ministério Público inaugurar a ação penal, independentemente da manifestação da vítima.

 

Portanto, a corriqueira situação da vítima que, sentindo-se ameaçada pelo agressor, faz cessar a persecução penal (retratando-se da representação oferecida), será sanada, uma vez que a vontade da vítima não é mais considerada para o caminhar do inquérito e do processo penal.

 

As novas disposições também determinam a perda automática de cargos públicos, para condenados por crimes de violência doméstica ou feminicídio, além de vedar assunção às funções públicas durante o cumprimento da pena. O legislador reconhece a gravidade da prática de violência de gênero ao impedir que o agressor permaneça no exercício de qualquer função pública ou cargo eletivo, associando a integridade moral do servidor público à prática de um comportamento socialmente responsável, garantido plena aplicação aos efeitos secundários da condenação penal.

 

Portanto, a lei 14.994/2024 não apenas endurece as penas para crimes contra a mulher, mas também modifica profundamente a forma como o sistema de justiça trata a violência de gênero, inserindo mecanismos de proteção mais rigorosos e ajustados à realidade atual. A promulgação desse pacote legislativo consolida uma importante ferramenta na luta contra o feminicídio e outras formas de violência contra a mulher, fortalecendo o papel do Estado na garantia de segurança e dignidade para as vítimas.

 

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Fonte: Migalhas

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