A jurisdição “é uma função do Estado, pela qual este atua o direito objetivo na composição dos conflitos de interesses, com o fim de resguardar a paz social e o império do direito” [1] ou, simplesmente, um “dever estatal que objetiva a composição de conflitos de interesse” [2].
Sérgio Martins aponta três poderes relacionados ao exercício da jurisdição. São eles:
o poder de coerção, que possibilita ao julgador impulsionar o processo (v.g., com citações, intimações, atos ordinatórios, etc) e fazer cumprir suas decisões (v.g., procedimentos de cumprimento de sentença, determinação de atos constritivos, etc), podendo contar, inclusive, com o auxílio de força policial;
o poder de documentação, consubstanciado na necessidade de formalizar, documentalmente, todos os andamentos processuais; e
o poder de decisão, em que o julgador se pronuncia sobre qual é o direito aplicável sobre o caso concreto, cumprindo com a vontade do Estado-legislador, com efeitos de coisa julgada. [3]
Concebendo a jurisdição com base nessas premissas e considerando a proeminência do princípio da inafastabilidade da jurisdição sob a égide da Constituição (“a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito” — artigo 5º, inc. XXXV, CRFB), pode-se afirmar que o monopólio da jurisdição foi constitucionalmente outorgado ao Poder Judiciário. [4]
Sem embargo, é certo que, embora o poder de decisão componha uma das facetas da jurisdição, isso não implica que somente os juízes possam proferir julgamentos. Pelo contrário, diversas instâncias administrativas — como o Carf (Conselho de Administração de Recursos Fiscais) — têm competência para julgar questões dentro de sua esfera de atuação.
Mas estes julgamentos não podem se confundir com o exercício da jurisdição propriamente dita, visto que não são juízos definitivos (i.e., “com efeito de coisa julgada”). Portanto, não basta que a lei atribua a um órgão o poder de proferir decisões para que ele exerça a jurisdição. É preciso de mais: essa decisão deve ter caráter definitivo para solução da controvérsia, ensejando a possibilidade de coação jurídica. [5]
Por exemplo, um contribuinte que contesta uma cobrança tributária da Receita Federal pode recorrer ao Carf. Se este órgão decidir a favor da Receita, o crédito tributário se tornará exigível. No entanto, essa decisão administrativa não encerra completamente a controvérsia, pois não faz coisa julgada. Isso porque o contribuinte poderá, ainda, recorrer ao Poder Judiciário, que dará a palavra final sobre o caso. É a decisão judicial que, uma vez transitada em julgado, será definitiva e indiscutível, representando a coisa julgada material (artigo 502, CPC).
Finalidade de processos tributários
Contrariando a lógica subjacente às ações judiciais, a finalidade dos processos administrativos tributários não é por termo em uma controvérsia juridicamente relevante, mas sim verificar a legalidade na constituição do crédito tributário (artigo 142, caput, CTN), conforme magistério de Paulo de Barros Carvalho [6]:
Procedimento administrativo se compõe de uma sucessão de atos tendentes a exercitar o controle de validade do lançamento, do ato de Imposição de multa, da notificação de qualquer deles ou de ambos, a fim de que a atividade exercida pela Administração Pública atinja seu objetivo último: a precisa, exata e fiel aplicação da lei tributária.
No mesmo sentido, é o contributo de Andréa Medrado Darzé [7]:
[…] diferentemente do que se verifica no processo judicial, a principal finalidade do processo administrativo tributário não é solucionar conflitos de interesses entre particular e o Poder Público, ainda que o faça mediatamente. Sua razão de ser é controlar a legalidade dos atos de constituição do crédito tributário.
Por assim ser, quando do julgamento às impugnações e recursos administrativos, a Fazenda Pública está, na verdade, exercendo seu poder de autotutela, de modo a revisar seus próprios atos, anulando-os quando ilegais ou revogando-os por conveniência administrativa (vide Súmula n. 473, STF [8]), sem necessidade de intervenção judicial.
Com isso, as instâncias administrativas evitam a deflagração de ações judiciais — que tendem a acarretar custos maiores aos cofres públicos (como honorários e custas processuais) —, bem como fortalecem a eficiência e eficácia dos serviços prestados pela administração pública, evitando sua anulação por vícios materiais ou formais.
Eurico Marcos Diniz de Santi e Daniel Leib Zugman [9], discorrendo especificamente a respeito do Carf, corroboram essa conclusão:
É absolutamente equívoca a percepção de que quando o Carf decide desfavoravelmente aos precários autos de infração está agindo contra a Receita Federal. Quando isso acontece é sinal de que está assumindo e cumprindo sua derradeira missão institucional: colaborar com a Receita Federal, estancando problemas com critérios técnicos, reduzindo a indústria do contencioso e tornando o Fisco mais célere e eficiente. Se a função do Carf fosse tão-somente homologar e legitimar as autuações pretendidas pela Receita Federal, seria órgão com função estatal redundante e desnecessária: seria decretar sua autodestruição, abdicando da tarefa de correção dos atos que formalizam o crédito tributário.
Os referidos autores defendem uma tese peculiar: entendem que, em nome da segurança jurídica, havendo decisão do órgão administrativo que reduza ou extingua o crédito tributário, não poderia a Fazenda Pública se socorrer da via jurisdicional para alterar as conclusões adotadas na esfera administrativa, sob pena de incorrer em uma “situação institucional bipolar que revela confusão entre aplicar a legalidade do sistema ou apegar-se à precária presunção de legalidade do auto de infração”. [10]
Nessa hipótese, haveria certa “definitividade” na decisão administrativa, mas não em razão de um exercício da jurisdição pelo órgão julgador e, sim, porque, se a própria administração pública já reviu seus próprios atos por estarem eivados de ilegalidade, não caberia ao Poder Judiciário incursionar no mérito da decisão administrativa, cabendo-lhe exercer somente o controle de legalidade do processo administrativo.
Violação à segurança jurídica
De fato, a violação à segurança jurídica neste caso é patente, pois frustra uma de suas principais facetas: a confiança legitima do contribuinte. Por certo, o contribuinte há de supor (com razão) que a mesma administração que reconheceu a ilegalidade dos seus atos, ao revê-los administrativamente, se manteria coerente e não tentaria, posteriormente, reverter a decisão pela via judicial, num movimento esquizofrênico de autoafirmação fiscal.
Em cenários tais, o contribuinte se depara com o esvaziamento do sobreprincípio da segurança jurídica. Há o que Humberto Ávila [11] denomina de “falta de calculabilidade do ordenamento jurídico (Unberechenbarkeit der Rechtsordnung)”, segundo a qual:
[…] o cidadão não sabe bem qual norma irá valer. As posibilidades de apreensão de informações sobre futuras decisões são muito pequenas. Nesse cenário, o cidadão não sabe se o Direito, que já não é sério nem é levado a sério no presente, será também levado a sério no futuro.
Acresce-se que a tese se encaixa com precisão na própria finalidade do processo administrativo: se a administração fazendária já exerceu a autotutela, anulando ato administrativo viciado, não há motivo para que o mesmo ente busque reverter essa conclusão, salvo se a intenção for demonstrar a sua completa inaptidão para gerir os próprios atos. Legitimar tal prática equivaleria a institucionalizar um sistema de litigância irresponsável, em que a pretensão arrecadatória do ente público se sobrepõe à segurança jurídica e à eficiência, esvaziando a própria finalidade do processo administrativo.
Bem por isso, trata-se de uma manifestação autêntica de um cenário que exige a aplicação da máxima milenar “non venire contra factum proprium”, princípio que impõe a coerência e veda comportamentos contraditórios com os próprios atos previamente praticados.
Decisão do STJ
Filiando-se a esse entendimento, recentemente, decidiu o Superior Tribunal de Justiça que a invalidação, pelo Poder Judiciário, de atos do Carf apenas é possível quando eivados de manifesta ilegalidade, contrário a sedimentados precedentes jurisdicionais ou tendo o órgão incorrido em desvio ou abuso de poder:
[…] VI – Nos moldes dos arts. 25, II, 42, II e III, 43 e 45 do Decreto n. 70.235/1972, o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais — Carf, constitui órgão paritário de controle extrajudicial e democrático da ação estatal de instituir e cobrar tributos, razão pela qual suas decisões, ressalvadas circunstâncias de manifesta ilegalidade, de desvio ou abuso de poder, ou, ainda, quando contrárias a sedimentados precedentes jurisdicionais, não se sujeitam a invalidação judicial por mera divergência de juízo hermenêutico quanto ao alcance da legislação tributária, mormente nos casos de escrutínio de entendimento favorável aos contribuintes em contexto de disposições legislativas de conteúdo polissêmico e objeto de interpretações díspares.
VII – Hipótese na qual o Autor Popular, qualificado como Auditor-Fiscal da Receita Federal do Brasil, postula, de maneira reiterada e sem apontamento de quaisquer vícios, pela invalidação de acórdãos do Carf tão somente por discordar da tese levada em conta para a formação do convencimento do colegiado, traduzindo, por conseguinte, mero inconformismo relativamente à exegese sufragada pelas instâncias administrativas superiores ao qual juridicamente vinculado, circunstância, in casu, insuficiente à invalidação do ato impugnado. [12]
Portanto, apesar de soberana frente às decisões administrativas, a jurisdição encontra limitações axiológicas: o juízo hermenêutico da legislação tributária exercido pelas instâncias administrativas técnicas que importem em extinção ou redução da carga tributária jamais poderá ser revisto pelo Poder Judiciário (portanto, é definitivo), ressalvando-se hipóteses de manifesta ilegalidade, desvio ou abuso de poder e desrespeito aos precedentes (portanto, não faz coisa julgada).
A este respeito, o Código Tributário Nacional deixa transparecer que as duas situações merecem tratamento jurídico distinto: por um lado, tem-se a decisão administrativa irreformável, contra a qual não caiba mais ação anulatória (cujo cabimento se restringe a vícios materiais ou formais no processo administrativo); e, por outro, a decisão judicial transitada em julgado:
Art. 156. Extinguem o crédito tributário:
[…]
IX – a decisão administrativa irreformável, assim entendida a definitiva na órbita administrativa, que não mais possa ser objeto de ação anulatória;
X – a decisão judicial passada em julgado.
À luz dessas considerações, tem-se que os tribunais administrativos (como o Carf) não exercem jurisdição no sentido estrito, pois suas decisões não têm caráter definitivo e não fazem coisa julgada, diferentemente das decisões judiciais. Esses órgãos, ao julgarem, exercem o poder de autotutela da Administração Pública, revisando seus próprios atos com base na legalidade, sem que isso implique em uma resposta definitiva à controvérsia, por força do postulado constitucional da reserva da jurisdição.
[1] Alvim, José Eduardo. Teoria geral do processo. 25. ed., rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2024. p. 71.
[2] CONRADO, Paulo Cesar. Processo Tributário. 3. ed. São Paulo: Quartier Latin do Brasil, 2012. p. 103.
[3] Martins, Sergio Pinto. Teoria geral do processo. 9. ed. São Paulo: SaraivaJur, 2024. p. 72.
[4] Não se está a olvidar de posições diversas, como, por exemplo, Paulo Cesar Conrado, que reconhece a existência de uma “jurisdição administrativa” (CONRADO, Paulo Cesar. Processo Tributário. 3. ed. São Paulo: Quartier Latin do Brasil, 2012. p. 109-110). A conclusão deste autor, contudo, decorre da adoção de um conceito de “jurisdição” que – diferente ao aqui propugnado – desconsidera que a atividade jurisdicional necessita: (i) ter o caráter de coisa julgada; e (ii) possibilitar, por meio da força, o seu cumprimento (poder de coerção).
[5] Machado Segundo, Hugo de Brito. Processo tributário. 15. ed. São Paulo: Atlas, 2023. p. 45.
[6] CARVALHO, Paulo de Barros. Derivação e Positivação no Direito Tributário. 2ª ed., São Paulo: Noeses, 2014.
[7] DARZÉ, Andréa Medrado. Preclusão da prova no processo administrativo tributário: um falso problema. In: Contencioso administrativo tributário: questões polêmicas. 1ª ed. São Paulo: Noeses.
[8] “A administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornam ilegais, porque deles não se originam direitos; ou revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos, e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial”. STF. Súmula 473. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/jurisprudencia/sumariosumulas.asp?base=30&sumula=1602. Acesso em: 16 ago. 2024.
[9] SANTI, Eurico Marcos Diniz de. ZUGMAN, Daniel Leib. Decisões administrativas definitivas não devem ser rediscutidas no Poder Judiciário. In: Congresso Nacional de Estudos Tributários: Sistema Tributário Brasileiro e as Relações Internacionais. São Paulo: Noeses, 2013. p. 296.
[10] SANTI, Eurico Marcos Diniz de. ZUGMAN, Daniel Leib. Decisões administrativas definitivas não devem ser rediscutidas no Poder Judiciário. In: Congresso Nacional de Estudos Tributários: Sistema Tributário Brasileiro e as Relações Internacionais. São Paulo: Noeses, 2013. p. 324.
[11] ÁVILA, Humberto. Teoria da segurança jurídica. 6. ed., rev., atual., e ampl., São Paulo: Malheiros: 2021. ISBN 978-65-5860-023-7. p. 77.
[12] REsp n. 1.608.161/RS, relatora Ministra Regina Helena Costa, Primeira Turma, julgado em 6/8/2024, DJe de 9/8/2024.
Fonte: Conjur
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