Resumo
Começamos por resumir, em tópicos, as principais ideias deste artigo:
- Em regra, a causa virtual não tem relevância para responsabilizar o seu autor (relevância positiva) nem para isentar de responsabilidade o autor da causa real (relevância negativa da causa virtual). Logo, em regra, a teoria da causalidade virtual não é admitida no Direito brasileiro;
- Há, porém, exceções: Casos de disposição legal expressa (exs.: arts. 399, 862 e 1.218, CC);
- Seja como for, entendemos que a existência de causa virtual eventualmente pode influir no arbitramento da indenização a ser paga pelo autor da causa real, seja porque este só deve responder pelo dano efetivamente provocado, seja porque, excepcionalmente, pode vir a ser aplicável a redução equitativa do art. 944, parágrafo único, do CC;
- A perda de uma chance só é indenizável quando decorrer de uma causa real (o que abrange a chance séria, real e razoável), e não de uma causa virtual (que abrange o dano meramente hipotético).
1. Introdução
Quem atira em uma pessoa que, minutos depois, é atropelada mortalmente responde ou não civilmente pela morte? Ou só responde pela lesão corporal, já que a morte decorreu do atropelamento.
A resposta a essa questão e a outras similares passa por entender a teoria da causalidade virtual, também chamada de teoria da causalidade hipotética, a qual discute a relevância da causa virtual (ou causa hipotética).
2. Definição
Causa virtual (ou causa hipotética) é a circunstância que potencialmente produziria o resultado que, de fato, decorreu de uma causa real posterior. Ex.: Enveneno uma pessoa que, perto de morrer de envenenamento, recebe um tiro fatal. A causa real da morte foi o tiro. Mas, sem ele, a morte certamente ocorreria pelo envenenamento. A causa real (= causa operante) interrompeu os efeitos da causa virtual: Há uma situação de causalidade interrompida.
Outro exemplo: “Vamos supor que um homem esfaqueado em órgão vital seja morto por estrangulamento”1.
3. Relevância (ou não) da causa virtual para fins de responsabilidade civil
3.1. Regra geral: Irrelevância
No Direito Penal, a regra é a irrelevância da causa virtual para fins de imputação penal, conforme art. 13, § 1º, do CP (“§ 1º A superveniência de causa relativamente independente exclui a imputação quando, por si só, produziu o resultado; os fatos anteriores, entretanto, imputam-se a quem os praticou.”). Nos exemplos acima, quem envenenou ou esfaqueou não responde pelo crime de homicídio, mas só pelo de lesão corporal. O crime de homicídio é de quem atirou ou estrangulou.
No Direito Civil, a tendência doutrinária é similar, especialmente para fins de responsabilidade civil.
Salvo disposição legal em contrário, o autor da causa virtual só responde até a ocorrência da causa real. O autor da causa real responde pelo resultado, dada a irrelevância da causa hipotética para tal efeito.
Nos exemplos acima, quem praticou o primeiro ato (envenenar ou esfaquear) só responde pela lesão corporal, ao passo que quem praticou o ato final (atirar ou estrangular) responde pela morte. A lógica é a de que a responsabilidade civil só recai, em regra, sobre quem efetivamente causou o dano. Afinal de contas, ninguém pode responder pelo que efetivamente não causou. Essa é a regra geral.
Entendemos que, na quantificação da indenização, o juiz deverá levar em conta o dano efetivamente causado.
Assim, nos exemplos citados – que envolve o assassinato de uma pessoa moribunda -, o valor da indenização pela morte por dano moral e o valor indenizatório pela lesão corporal antecedente poderão ser arbitrados em importe inferior ao que seria devido no caso de alguém que mata uma pessoa que não estava perto da morte.
Além disso, excepcionalmente, pode vir a ser aplicável a redução equitativa do art. 944, parágrafo único, do CC2. Esse dispositivo estabelece que o juiz pode reduzir a indenização quando a extensão do dano for manifestamente desproporcional em relação ao grau de culpa. E lembramos que referido dispositivo também se aplica a dano, moral, conforme destacado por Flávio Tartuce (TARTUCE, Flávio. Responsabilidade Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2022, p. 196).
A solução jurídica é similar se a causa virtual for concomitante ou posterior à causa real: O autor da causa real responde pelo resultado, ao passo que o autor da causa virtual não responde por nada (por nada ter realizado). Há casos em que a causa virtual é posterior à causa real. Ex.1: Mato um cavalo a tiros (causa real), mas, minutos depois, surge um incêndio que ceifa a vida e todos os cavalos do local. O cavalo, se não fosse o tiro, muito provavelmente haveria de morrer de qualquer jeito por conta do incêndio (causa virtual). Ex.2: Há casos em que a causa virtual é concomitante à causa real. Ex.: No exemplo acima, o tiro (causal real) e o incêndio (causa virtual) ocorrem no mesmo momento, mas se consegue comprovar que a vítima já havia falecido com o incêndio quando o tiro a atingiu. Nesses casos, o incêndio (causa virtual) não afastará a responsabilidade do autor do tiro (causa real). Mas o valor indenizatório pode vir a ser inferior ao que seria devido se inexistisse a causa virtual, tudo conforme já expusemos.
Assim, em regra, a causa virtual não tem relevância para responsabilizar o seu autor (relevância positiva) nem para isentar de responsabilidade o autor da causa real (relevância negativa da causa virtual), embora possa influir no valor da indenização.
Não se confunda com casos de causalidade concorrente (duas ou mais causas que concomitantemente geram o resultado). Aí não há causa virtual, mas só causas reais. A hipótese aí será de responsabilidade solidária dos agentes por se tratar de uma coautoria (art. 942, parágrafo único, CC). Ex.: Vítima de tiro vem a falecer não apenas por causa do tiro, mas também pela conduta dolosa ou culposa do motorista da ambulância, que retardou a chegada da vítima ao hospital por ter preferido fazer uma parada para fazer um lanche no Mc Donald’s.
3.2. Exceções
Embora a regra seja a irrelevância da causa virtual para fins de responsabilização civil, há exceções.
A primeira exceção é no caso de lei expressa nesse sentido. É o que se dá nos casos dos arts. 399, 862 e 1.218 do CC, conforme lembram Cristiano Chaves, Nelson Rosenvald e Felipe Braga Netto (FARIAS, Cristino Chaves de; ROSENVALD, Nelson; BRAGA NETTO, Felipe Peixoto. Curso de Direito Civil, vol. 3: Responsabilidade Civil. Salvador: JusPodivm, 2022, p. 508).
Exemplo: Art. 1.218 do CC. O possuidor de má-fé responde pelo perecimento fortuito da coisa, salvo se provar sua inevitabilidade mesmo se inexistisse a má-fé da posse. Pense em um carro que foi roubado (perecimento fortuito da coisa) e que estava sob a posse de um locatário que se recusara a devolver o bem no prazo contratual. O locatário estava de posse de má-fé. O carro provavelmente não teria sido roubado se tivesse sido devolvido no prazo contratual (a causa virtual). A causa virtual aí é levada em conta na responsabilização. A ideia é a de que, apesar de o resultado (perecimento) ter ocorrido por caso fortuito (causa real), ele poderia ter sido evitado se a coisa estivesse com o legítimo titular (causa virtual).
As hipóteses dos arts. 399 e 862 do CC são similares: O devedor em mora ou o gestor de negócios que age contra a vontade manifesta ou presumível do interessado respondem por danos fortuitos, salvo se provar a sua inevitabilidade mesmo se não tivesse havido a irregularidade.
3.3. Situação da perda de uma chance
A perda de uma chance é dano indenizável apenas se a chance for séria, real e razoável. Chances meramente hipotéticas não são indenizáveis. Nas palavras de Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho, na perda de uma chance, “como se trata da frustração de uma probabilidade concreta de ganho – mas sem que haja a certeza no acerto -, o valor indenizatório deve ser mitigado, ou seja, fixado por proporcionalidade”. (GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil: Responsabilidade Civil. São Paulo: SaraivaJur, 2023, pp. 46-47).
Por isso, não há falar em causa virtual ou hipotética no caso de perda de uma chance indenizável, mas sim de causa real. Ex.: Advogado perde prazo do recurso, o que impede que a parte tenha a chance de vencer o feito diante da existência de jurisprudência pacífica a seu favor. O dano sofrido pela parte é a chance de vitória no feito, e a sua causa é real: A não interposição de recurso consentâneo com a jurisprudência pacífica do tribunal.
Se a jurisprudência do tribunal fosse contrária à tese do possível recurso, não haveria aí chance séria, real e razoável de êxito. Logo, o dano sofrido pela parte (a perda da chance de vitória no feito) decorrerá de uma causa hipotética ou virtual, razão por que não é indenizável. Afinal, a teoria da causalidade virtual não é admitida na responsabilidade civil, salvo lei expressa em contrário.
1 FARIAS, Cristino Chaves de; ROSENVALD, Nelson; BRAGA NETTO, Felipe Peixoto. Curso de Direito Civil, vol. 3: Responsabilidade Civil. Salvador: JusPodivm, 2022, p. 506
2 É importante lembrar que concausas preexistentes não afastam a responsabilidade civil, embora possam influir na indenização. É a teoria da responsabilidade pelo resultado mais grave. Quem corta levemente uma pessoa hemofílica responderá pela morte desta. São irrelevantes a concausa preexistente (a hemofilia) e o fato de um leve corte não ser apto a matar uma pessoa não hemofílica. Poderá, porém, o juiz arbitrar um valor menor de indenização. O próprio art. 944, parágrafo único, do CC poderia ser invocado nesse sentido, por permitir reduzir a indenização quando houver manifesta desproporção entre a culpa e o dano (FARIAS, Cristino Chaves de; ROSENVALD, Nelson; BRAGA NETTO, Felipe Peixoto. Curso de Direito Civil, vol. 3: Responsabilidade Civil. Salvador: JusPodivm, 2022, p. 509).
Fonte: Migalhas
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