As medidas de ajuste fiscal debatidas na tramitação do Projeto de Lei Complementar (PLP) nº 210/2024, encaminhado para sanção no último dia 20/12, reascendem a importância do princípio da sustentabilidade da dívida pública para a garantia de direitos fundamentais no Estado Democrático de Direito.

O PLP 210/2024 propõe alteração da LC nº 200/2023, que instituiu regime fiscal sustentável para garantir a estabilidade macroeconômica do país e criar as condições adequadas ao crescimento socioeconômico. Em linhas gerais, o projeto apresenta um limite de gastos mais duro em caso de déficit. Conforme a proposta, se houver um déficit primário, será vetada a concessão, ampliação ou prorrogação de incentivos ou benefícios fiscais. A medida também estabelece limites para o aumento das despesas com pessoal. Ademais, o governo terá a capacidade de suspender ou restringir uma parte das emendas parlamentares ao Orçamento em situações de resultados negativos na economia.

O fundamento filosófico da sustentabilidade da dívida é a equidade ou justiça intergeracional. A partir de uma análise eminentemente jurídica, sem adentrar em especificidades atinentes aos campos da Economia e da Administração, pretende-se aqui jogar luzes sobre a filosofia por trás da sustentabilidade da dívida pública.

Há várias correntes filosóficas que se prestam a justificar a equidade intergeracional. A literatura menciona diversas teorias, como as da herança, do usufruto, da responsabilidade, da reciprocidade indireta, a utilitarista e a igualitarista [1].

Nos teóricos da herança, está presente a ideia de que as gerações presentes herdam de seus antepassados os recursos por eles criados. Assim, apresenta-se um encargo de restituição de um benefício a outra geração, como em uma transmissão de propriedade de geração para geração ao longo do tempo [2].

A teoria do usufruto, por sua vez, está em sentido oposto, que determina um modelo de empréstimo, visto que se afasta da ideia de propriedade e se aproxima da concepção de posse de algo que realmente pertenceria a uma geração de proprietários que nunca chegaria a existir, pois sempre se referiria ao tempo futuro [3].

Na teoria da responsabilidade [4], o elemento ético é central para chegar à importância da justiça entre gerações sob pena de risco de não sobrevivência da própria humanidade.

Já a teoria da reciprocidade indireta [5], ao adotar um paradigma de comutatividade, leva à ideia de que cada geração deveria algo às gerações seguintes porque recebeu algo das gerações passadas, em uma lógica de deveres em cadeia.

A justiça intergeracional, sob a ótica do utilitarismo, seria mais um caminho para alcançar bem-estar e felicidade. Assim, na medida em que o justo seria determinado a partir de um princípio de maximização do tamanho do bolo dos recursos disponíveis, dada uma mesma comunidade, considerar-se-ia que esse princípio ocorra indefinidamente e, portanto, perpassando várias gerações não simultâneas [6]. Por outro lado, na visão de Fabricio Dantas, uma visão apenas utilitarista naturalmente tenderia a fomentar o bem-estar presente, em detrimento do futuro [7].

No igualitarismo, existem algumas subcorrentes: comunitarista, libertarista e contratualista [8]. A primeira dá ênfase nas comunidades e no fato de que elas precederiam o indivíduo, em um contexto que a tal justiça não seria entre gerações, mas entre o indivíduo e sua comunidade, em uma coesão cultural da comunidade. Segundo essa subcorrente, haveria igualdade na medida em que inexistiria primazia de qualquer geração no tempo histórico da comunidade.

A corrente libertarista traz destaque para o indivíduo diante da comunidade. A liberdade é assumida como valor absoluto, de modo totalmente inverso ao comunitarista. Nesse contexto, é a autonomia do indivíduo que precederia a própria comunidade. A partir dessa lógica, proibições de despoupança em prol de gerações futuras apenas seria justificável quando direitos da liberdade de alguém estivessem sendo violados. Percebe-se, portanto, que seriam limitadíssimas as hipóteses em que se justificaria o sacrifício no presente em favor de algo ainda potencial, inexistente.

Por último, na perspectiva contratualista, mesmo em vista da assincronia entre os contratantes, seria possível chegar a um fundamento sólido para a poupança intergeracional.

Teoria da Justiça e a Poupança Justa

John Rawls já tecia considerações sobre a igualdade e a sua preservação ao longo do tempo em sua grande obra, Uma Teoria da Justiça [9], inserida no contexto da justiça distributiva.

O raciocínio é o de que, sob um véu de ignorância, as partes envolvidas escolheriam deixar para o futuro recursos que viabilizem a manutenção da situação presente, até porque, nesse modelo hipotético, as partes sequer saberiam a que geração elas pertenceriam, se a presente ou a futura [10].

Na teoria de Rawls, a justiça entre as gerações está atrelada a um princípio de eficiência econômica – o princípio do benefício –, em que a afetação de recursos decidida por cada geração seria eficiente se os seus membros suportassem o custo dos bens públicos que consomem. Assim, as despesas correntes devem ser custeadas no decurso do período de vida útil do capital que constituem, com o dever da distribuição de seu valor entre as várias gerações que dele se beneficiam [11].

Rawls argumenta que uma teoria da justiça deve enfrentar a questão de saber se o sistema social — a economia competitiva envolvida pelas instituições básicas — [12] atende aos princípios de justiça [13]. Para ele, a resposta depende de alguns fatores relacionados ao nível fixado para o mínimo social e sua perspectiva ao longo do tempo.

Segundo Rawls, o mínimo social deve ser “fixado no ponto que, tendo em conta o nível salarial, maximize as expectativas do grupo menos favorecido” [14], o que, contudo, não significa que a riqueza dos cidadãos mais abastados deva ser diminuída até que todos tenham aproximadamente a mesma renda. A ideia é a de que:

“(…) as perspectivas a longo prazo dos menos favorecidos se estenda às gerações futuras. Cada geração deve não apenas preservar os ganhos de cultura e civilização, e manter intactas aquelas instituições justas que foram estabelecidas, mas também poupar a cada período de tempo o valor adequado para a acumulação efetiva de capital real.”

A expectativa é de que a sociedade seja organizada de modo que as perspectivas a longo prazo dos menos desfavorecidos se estendam às gerações futuras. Disso, decorre a ideia de poupança justa entre gerações, que seria exigida como condição para a realização plena de instituições justas e das iguais liberdades para todos, em um sacrifício do padrão de vida atual que seria maximamente possível para garantir não só que as próximas gerações possam ter seus direitos assegurados, como também seja possível melhorar o seu padrão de vida [15].

A ideia foi tratada como a de um Princípio de Poupança Justa, cujos limites Rawls afirmou não ter condições de desenvolver em sua Teoria da Justiça de 1971 [16] inicialmente, mas, mais à frente, elaborou, no estudo Justiça como equidade uma reformulação, de 2003 [17]. A noção é a de que “o princípio de poupança justa vigora entre gerações, ao passo que o princípio de diferença vigora dentro de uma geração” [18]. Segundo Rawls [19]:

“A poupança real é exigida exclusivamente por razões de justiça: isto é, para tornar possíveis as condições necessárias para estabelecer e preservar uma estrutura básica justa ao longo do tempo. Uma vez alcançadas essas condições e consolidadas as instituições justas, a poupança real líquida pode cair para zero. Se a sociedade quiser poupar por razões outras afora a justiça, poderá evidentemente fazê-lo; mas isso é outro assunto.”

A ideia de poupança se justificaria pelos seguintes motivos [20]:

“O princípio correto é portanto aquele que os membros de qualquer geração (e portanto de todas) adotariam como o princípio que eles gostariam que as gerações anteriores tivessem seguido, qualquer que seja o distanciamento no passado. Como nenhuma geração conhece seu lugar entre as gerações, isso implica que todas as gerações posteriores, inclusive a presente, têm de segui-lo. Dessa maneira chegamos ao princípio de poupança que fundamenta nossos deveres para com as outras gerações: justifica queixas legítimas contra nossos predecessores e expectativas legítimas em relação a nossos sucessores.”

Assim, muito resumidamente, para Rawls, a ideia de Poupança Justa é a de um nível de poupança que deve vigorar entre gerações e objetiva a preservação de uma estrutura básica justa, de modo cooperativo e equitativo ao longo do tempo, de geração em geração [21].

Teoria e filosofia no PLP 210

Esse tema da justiça entre gerações engloba ponderações importantes que vão desde definir o que seria uma geração até questionar se seria correto tratar de direitos das pessoas futuras em contraposição a deveres da geração presente [22]. De todo modo, as reflexões sobre esses valores revelam a necessidade de olhar para o presente de modo a planejar os impactos futuros. Seja qual for a corrente teórica que conceba a equidade intergeracional, é certo que, há que se partir de uma espécie de tutoria dos que ainda virão para se afirmar que se está atendendo ao melhor interesse da geração futura [23].

No contexto da tramitação do PLP nº 210/2024, parte desses debates teóricos e filosóficos pode ser identificada na base das discussões parlamentares, mesmo que de forma não intencional. Ponderações sobre direitos relacionados à remuneração e regime jurídico dos servidores públicos, por um lado, e a saúde das contas públicas, do outro, também revelam uma análise de razoabilidade e proporcionalidade entre direitos em conflito.

O embate entre gerações torna-se ainda mais interessante a partir da disposição do artigo 2º, inciso I, do texto encaminhado à sanção, que excepciona a Lei de Responsabilidade Fiscal para permitir que seja destinado à amortização da dívida pública o superávit financeiro relativo a, entre outros, o Fundo de Defesa de Direitos Difusos (FDD), que tem por finalidade a reparação dos danos causados ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico, paisagístico, por infração à ordem econômica e a outros interesses difusos e coletivos. Para garantir contas públicas saudáveis no futuro, portanto, optou-se por utilizar recursos que seriam destinados a ações coletivas para a geração atual, com reflexos futuros.

Diante de todo esse cenário, vislumbra-se que, juridicamente, a responsabilidade fiscal é fundamental para que seja plenamente cumprido e respeitado o princípio da sustentabilidade da dívida pública, estampado no artigo 163, inciso VIII, da CF/88 e realizado em grande medida pela LC nº 200/2023, que direciona esforços públicos para garantir a estabilidade macroeconômica do país e criar as condições adequadas ao crescimento socioeconômico.

 

[1] MARTINS, Andrea Siqueira. O endividamento dos estados-membros em face da União – uma distorção grave e suas consequências para o federalismo fiscal brasileiro. Belo Horizonte: Fórum, 2021. p. 133 -134.

[2] MARTINS, Andrea Siqueira. Op. cit., 2021, p. 134.

[3] MARTINS, Andrea Siqueira. Op. cit., 2021, p. 134.

[4] MARTINS, Andrea Siqueira. Op. cit., 2021, p. 134.

[5] MARTINS, Andrea Siqueira. Op. cit., 2021, p. 134.

[6] MARTINS, Andrea Siqueira. Op. cit., 2021, p. 134.

[7] DANTAS, Fabricio. Direito Financeiro Estratégico. Belo Horizonte, São Paulo: D’Plácido, 2022. p. 303.

[8] MARTINS, Andrea Siqueira. Op. cit., 2021, p. 135.

[9] RAWLS, John. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes: 1997, p. 314 e seguintes.

[10] RAWLS, John. Op. cit., 1997, p. 320.

[11] MARTINS, Andrea Siqueira. Op. cit., 2021, p. 137.

[12] “Para nós, o objeto primário da justiça é a estrutura básica da sociedade, ou, mais exatamente, a maneira pela qual as instituições sociais mais importantes distribuem direitos e deveres fundamentais e determinam a divisão de vantagens provenientes da cooperação social.” (RAWLS, John. Op. cit., 1997, p. 07).

[13] RAWLS, John. Op. cit., 1997, p. 314.

[14] RAWLS, John. Op. cit., 1997, p. 315.

[15] SILVA, Ricardo Perlingeiro Mendes da. Teoria da Justiça de John Rawls. Revista de informação legislativa: Senado federal. v. 35, nº 138 abr./jun. Brasília 1998, p. 201.

[16] RAWLS, John. Op. cit., 1997, p. 316.

[17] RAWLS, John. Justiça como equidade: uma reformulação. (Organizado por Erin Kelly ; tradução Claudia Berliner; revisão técnica e da tradução Álvaro De Vita). São Paulo: Martins Fontes, 2003.

[18] RAWLS, John. Op. cit., 2003, p. 225.

[19] RAWLS, John. Op. cit., 2003, p. 225-227.

[20] RAWLS, John. Op. cit., 2003, p. 225

[21] BAGETTI ZEIFERT, A. P.; CENCI, D. R. A justiça entre gerações: pensar sociedades justas, igualitárias e sustentáveis ao longo do tempo. Revista da Faculdade de Direito da UFG, Goiânia, v. 44, n. 2, 2020. DOI: 10.5216/rfd.v44i2.58144. Disponível em: https://revistas.ufg.br/revfd/article/view/58144. Acesso em: 5.01.2023.

[22] MARTINS, Andrea Siqueira. O endividamento dos estados-membros em face da União – uma distorção grave e suas consequências para o federalismo fiscal brasileiro. Belo Horizonte: Fórum, 2021.p. 133-134. BENÍCIO, Márcio José Lima. “Justiça Intergeracional sob a Perspectiva do Liberalismo Político”. Revista Jurídica Luso-Brasileira. Ano 2 (2016), nº 3. Lisboa: Centro de Investigação de Direito Privado da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (CIDP), 2016, p. 985-1001.

[23] “Eduardo Manuel H. da P. Ferreira suscita um ‘aspecto tutório’ por parte dos responsáveis pela decisão financeira da geração presente, a qual terá que realizar um juízo valorativo no que tange à interpretação dos interesses das gerações futuras, tendo em vista ser impossível a revelação das preferências dessas gerações” (MARTINS, Andrea Siqueira. Op. cit., 2021, p. 139).

Fonte: Conjur

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