A transformação das dinâmicas familiares no Brasil, especialmente após a Constituição de 1988, trouxe o afeto para o centro das relações jurídicas no Direito de Família. Entre as mudanças, destaca-se o reconhecimento da socioafetividade, que permitiu a ampliação do conceito de filiação para além dos vínculos biológicos ou jurídicos formais. No entanto, quando aplicado ao campo do Direito Sucessório, o reconhecimento da socioafetividade levanta questões complexas, especialmente no que se refere ao direito dos netos de concorrer diretamente com seus genitores na sucessão dos avós.

Este artigo analisa essas implicações sob o prisma jurídico e prático, avaliando como o reconhecimento da filiação socioafetiva entre avós e netos pode impactar a ordem de vocação hereditária, a legítima e a liberdade testamentária. Também busca propor soluções que equilibrem a proteção dos direitos patrimoniais e existenciais com a autonomia privada e a segurança jurídica.

Fundamentação teórica

A socioafetividade tornou-se um pilar do direito das famílias no Brasil, promovendo a igualdade e a dignidade das relações familiares. A Constituição de 1988 foi um marco nesse processo, ao eliminar distinções entre filhos biológicos e adotivos e permitir que o afeto fosse reconhecido como fundamento jurídico para a constituição de laços parentais. O artigo 1.593 do Código Civil de 2002 consolidou essa evolução ao prever que o parentesco pode ser natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou de “outra origem”.

No contexto da socioafetividade, essa “outra origem” refere-se a vínculos baseados no afeto, na convivência e no reconhecimento público. Tais vínculos são comprovados pela posse de estado de filho.

Requisitos para reconhecimento de neto como filho socioafetivo

O reconhecimento de vínculos socioafetivos intergeracionais, como entre avós e netos, exige grande rigor probatório, pois deve ser demonstrado que o vínculo vai além da afetividade típica da relação avoenga, alcançando um nível equiparável ao de uma filiação.

Entretanto, os requisitos não são objetivos. Não existe, por exemplo, a exigência de coabitação, muito embora essa possa ser um forte indício de que o afeto em relação aos netos seja ainda maior quando esses moram efetivamente com os seus avós.

Outrossim, a forma como esses netos se referem e chamam os avós pode ser uma forte prova, pois em muitos casos há inclusive o hábito de chamá-los como pai ou mãe. Ainda, os registros médicos podem indicar que sempre foi a avó, ou o avô, que acompanhou o neto em atendimentos ambulatoriais, cirurgias e exames. Os registros escolares, assim como as assinaturas apostas em boletins e em avaliações podem provar que eram os avós que acompanhavam a rotina de estudos do neto. Não obstante, fotografias e vídeos podem demonstrar que as comemorações de dia das mães e/ou dos pais eram celebradas junto aos avós, assim como as datas mais importantes como Natal, Páscoa etc. Depoimentos de vizinhos, professores, colegas de turma, eventuais psicólogos, médicos, funcionários domésticos também são essenciais para corroborar que a relação afetiva com o neto se qualifica como relação filial.

Por todas essas razões, a posse do estado de filho deve ser analisada quanto a três elementos:

  • Tractatus (tratamento): a forma como neto é tratado no ambiente familiar.
  • Nominatio (nome): o uso do sobrenome da família.
  • Reputatio (fama): o reconhecimento público da relação filial.

A respeito dessa pauta, o Supremo Tribunal Federal, em sede de julgamento de recursos repetitivos, definiu como tese do Tema 662 que “a paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios”.

Isso quer dizer que, ao contrário do instituto da adoção, o reconhecimento da filiação baseado em socioafetividade não extingue o poder familiar dos pais biológicos e tampouco afasta a filiação biológica do indivíduo. Há, portanto, a coexistência no registro do indivíduo dos pais naturais com os pais socioafetivos que, no caso deste estudo, são os avós.

A adoção, muito embora seja pautada também na afetividade, implica a quebra total de vínculos familiares, nominais e sucessórios em relação aos parentes biológicos. Já o reconhecimento socioafetivo, não — são mantidos os laços naturais e os laços de afeto.

É importante ter em mente que, no Brasil, não é possível a adoção de netos pelos avós devido às restrições legais impostas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (artigo 42, §1º do ECA).

Contudo, como dito, o vínculo biológico dos avós pode perfeitamente coexistir com a filiação socioafetiva, conferindo direitos e deveres equivalentes aos de um filho biológico.

Impacto na ordem sucessória

O direito sucessório brasileiro organiza-se em torno de herdeiros necessários, definidos pelo artigo 1.845 do Código Civil, e da reserva legítima, que protege metade do patrimônio do autor da herança (artigos 549 e 1.846 do Código Civil). O reconhecimento de netos como filhos socioafetivos de seus avós tem o potencial de alterá-lo significativamente.

Se reconhecidos como descendentes de 1º grau, netos que são filhos socioafetivos passam a disputar a legítima com seus pais biológicos e tios (se houver), e sucedem por representação na ausência dos pais. Isso pode gerar duas situações principais:

  1. Concorrência com os pais (vivos) e tios: os netos (que originariamente são descendentes de 2º grau dos avós) dividem a legítima em igualdade de condições com seus próprios pais e também seus tios (se houver) (descendentes de 1º grau dos avós), reduzindo o quinhão desses descendentes diretos (artigo 1.835 do Código Civil).
  2. Sucessão direta na ausência dos pais: além do quinhão a que terão direito em razão do reconhecimento dos netos como filhos socioafetivos, os netos ainda preservam a posição de descendentes de primeiro grau dos pais, o que pode reduzir a parcela da herança destinada para outros herdeiros, como tios e primos, na sucessão.

A ausência de documentação robusta ou testemunhos confiáveis pode dificultar o reconhecimento jurídico da filiação socioafetiva após a morte, vez que a alegação da socioafetividade pode ser contestada por outros herdeiros que se sintam prejudicados. Tios, primos, e até os próprios pais do neto (esse que seria o filho socioafetivo) podem se considerar preteridos na sucessão.

Análise crítica

Como exposto, a declaração de netos como filhos socioafetivos desafia a distribuição da legítima, especialmente quando há concorrência com os pais biológicos.

A aplicação prática do reconhecimento de netos como filhos socioafetivos em sucessões exige análise cuidadosa para evitar conflitos patrimoniais e garantir equidade.

Dois cenários principais ilustram os desafios:

Concorrência com os pais (vivos) e tios: Vamos supor que o avô A faleça deixando uma herança de R$ 400 mil e três filhos biológicos, B, C e D (todos vivos), e que o neto 1 logre êxito em comprovar judicialmente a posse do estado de filho diante da afetividade qualificada com o avô A. Neste caso, a herança será dividida em quatro partes, sendo R$ 100 mil para cada herdeiro: B, C, D e B1.

Concorrência com os tios e irmãos na ausência dos pais: Válido esclarecer que no direito sucessório brasileiro, a sucessão por estirpe ou por representação está prevista no artigo 1.851 do Código Civil, permitindo que descendentes de um herdeiro pré-morto ocupem o lugar deste na partilha da herança. Assim, o neto herda o quinhão que caberia a seu genitor na qualidade de representante, ou reparte esse quinhão com os seus irmãos, se tiver.

Nessa hipótese, suponha que o avô A, com o mesmo patrimônio de R$ 400 mil, possua três filhos biológicos, B, C e D, mas que B seja pré-morto e tenha deixado dois filhos, os netos B1 e B2. Nesse caso, se apenas B1 for reconhecido como filho socioafetivo ele vai receber 100 mil, mais 50% da herança que caberia a B se vivo fosse. Portanto, C e D receberão R$100 mil a título de herança, B1 vai receber R$ 150 mil (considerado o quinhão direto e mais a metade do quinhão que herdou por estirpe ou representação) e B2 receberá R$ 50 mil.

Nota-se, então, que com o reconhecimento da socioafetividade, o neto também pode ser considerado um descendente direto do avô ou avó, habilitando-se a receber um quinhão da herança como se filho fosse, além de cumular com aquele a que tem direito por estirpe. Esse cenário, embora seja possível juridicamente, traz consequências patrimoniais relevantes e pode gerar questionamentos por parte de outros herdeiros.

A possibilidade de recebimento de dois quinhões hereditários por um mesmo herdeiro pode provocar desequilíbrios significativos na partilha. Isso porque verificar-se-á:

  • a redução dos quinhões de outros herdeiros: outros filhos ou netos do autor da herança podem receber parcelas menores da parte legítima do patrimônio do autor da herança devido ao recebimento duplo de quinhões do neto socioafetivo;
  • a frustração da liberdade testamentária: o reconhecimento de netos como filhos socioafetivos restringe a liberdade testamentária, uma vez que amplia o número de herdeiros protegidos pela legítima. Diante da possibilidade desse reconhecimento acontecer post mortem, caso o autor da herança tenha planejado sua sucessão excluindo netos (que tenham seus genitores vivos) ou considerando apenas a representação caso tenha filhos já falecidos, a declaração de um neto como filho socioafetivo pode frustrar esse planejamento.

Por isso, é necessário que a jurisprudência estabeleça critérios claros para evitar abusos, como reconhecimentos tardios que visem exclusivamente interesses patrimoniais.

A prescrição também é igualmente importante para a hipótese em estudo, porque, ao passo que a pretensão do reconhecimento de filiação é imprescritível (como nos casos de investigação de paternidade), o prazo para a ação de petição de herança vence em 10 anos. Isso garante um mínimo de segurança jurídica aos herdeiros biológicos e/ou àqueles já declarados filhos em vida pelo autor da herança (por exemplo no caso de adoção).

Harmonização entre direito e realidade familiar

O direito precisa refletir as transformações sociais sem comprometer a segurança jurídica. Regulamentações mais claras e critérios objetivos são essenciais para garantir justiça na aplicação do reconhecimento socioafetivo, promovendo um sistema sucessório mais alinhado às dinâmicas familiares contemporâneas.

Conclusão

O reconhecimento da filiação socioafetiva entre avós e netos representa um avanço na proteção das relações familiares e na valorização do afeto como fundamento jurídico. Contudo, no campo sucessório, esse avanço traz desafios significativos, como a redefinição da ordem de vocação hereditária, os potenciais conflitos patrimoniais e as limitações à liberdade testamentária.

Para enfrentar esses desafios, é fundamental que o legislador intervenha para regulamentar a inclusão de netos-filhos socioafetivos como herdeiros necessários, estabelecendo critérios objetivos que promovam segurança jurídica e protejam tanto os direitos patrimoniais quanto a autonomia privada. A evolução jurisprudencial também deve continuar consolidando precedentes que harmonizem esses novos arranjos familiares com a justiça e a positivação de normas expressas no sistema sucessório.

Por fim, o reconhecimento da socioafetividade reafirma o compromisso do ordenamento jurídico com os princípios da dignidade humana, igualdade e proteção integral da família, marcando um passo importante para a humanização do direito sucessório no Brasil.

Fonte: Conjur

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