O sistema tributário brasileiro é alvo de críticas justas e frequentes por sua regressividade, na medida em que sua estrutura impõe carga desproporcionalmente maior sobre os contribuintes de menor renda e patrimônio.
Essa situação decorre de vários fatores, alguns deles bastante conhecidos, tais como: a elevada tributação sobre bens de consumo, a insuficiente progressividade do Imposto de Renda e sua isenção sobre dividendos, as alíquotas reduzidas do imposto sobre heranças, a não incidência do IPVA sobre aeronaves e embarcações, e a inexistência de tributação sobre grandes fortunas. O resultado é um sistema que perpetua iniquidades.
Contudo, não são poucas as tentativas de corrigir essas distorções, a exemplo do Projeto de Lei (PL) nº 1.087, de 2025, proposto pelo governo federal, que busca isentar do Imposto de Renda quem ganha até R$ 5 mil mensais, estipulando tributação adicional compensatória para quem recebe altas rendas. Ainda em trâmite no Congresso Nacional, a proposição reacendeu o debate sobre justiça fiscal e permite a problematização de outras questões menos discutidas, como a ausência de uma taxa de fiscalização no âmbito do sistema financeiro nacional.
Nesse sentido, este artigo se propõe a debater o problema da inexistência da taxa de fiscalização do Banco Central, um privilégio pouco conhecido do setor financeiro da economia, que simbolicamente revela a regressividade do sistema tributário brasileiro.
Previstas no inciso II do artigo 145 da Constituição, e no artigo 77 do Código Tributário Nacional, as taxas podem ser instituídas pela União, pelos estados, pelo Distrito Federal e pelos municípios, em razão do exercício do poder de polícia (taxa de polícia) ou pela utilização, efetiva ou potencial, de serviços públicos específicos e divisíveis prestados ao contribuinte ou postos à sua disposição (taxa de serviço). Por isso são considerados tributos vinculados, ao contrário dos impostos, cuja obrigação tem por fato gerador uma situação desvinculada de qualquer atuação estatal específica. As taxas não visam o incremento da arrecadação, ostentando função retributiva e ressarcitória, pois relacionadas ao custo da atividade estatal relacionada ao contribuinte.
São exemplos de taxas: as custas judiciais pagas por quem ajuíza demandas perante o Judiciário; a taxa de coleta de lixo, frequentemente instituída pelos municípios; a taxa de licenciamento, exigida de proprietários de veículos em razão da atividade dos órgãos de trânsito estaduais; e a taxa de incêndio, referente aos serviços de prevenção e combate a incêndios prestados pelos corpos de bombeiros estaduais. Em todos os casos, sem onerar a generalidade da população, busca-se retribuir, ainda que parcialmente, o custo da atividade administrativa.
O município de São Paulo, por exemplo, em razão de atividades de organização e fiscalização sobre atividades empresariais, cobra taxas de fiscalização e estabelecimentos (TFE) e taxa de resíduos sólidos e de serviços de saúde (TRSS), que podem ser exigidas desse o início do funcionamento e ao longo da vida empresarial do contribuinte.
Já o estado de Minas Gerais conta com onze taxas em vigor, incluindo: taxa de controle e fiscalização ambiental (TFAMG), taxa de licenciamento para uso ou ocupação de faixa de domínio das rodovias (TFDR), taxa de minério (TFRM) etc.
No âmbito do sistema tributário federal, não é incomum a cobrança de taxas de fiscalização. Pelo contrário, por meio do pagamento de taxas, grandes agentes econômicos contribuem para fazer frente aos custos das atividades estatais de fiscalização e regulação despenhadas por autarquias como a Comissão de Valores Mobiliários (Lei nº 7.940/1989), a Superintendência de Seguros Privados (Lei nº 12.249/2010), a Agência Nacional de Telecomunicações (Lei nº 9.472/1997) e a Agência Nacional de Mineração (Lei nº 13.575/2017).
Em boa medida, as taxas atendem ao princípio da justiça fiscal, pois oneram mais diretamente aqueles que se beneficiam da atividade estatal. Seu valor pode ainda ser fixado com base em critérios equitativos, que considerem a capacidade contributiva presumida de quem demanda o serviço ou se submete, pela atividade exercida, ao poder de polícia. Assim, taxas cobradas para a obtenção de autorização administrativa para desempenho de atividade econômica podem (e, a rigor, devem) variar conforme o tipo e o porte da empresa autorizada. A abrangência e o volume financeiro das atividades fiscalizadas são também fatores que devem influenciar a fixação dos valores das taxas.
No âmbito do sistema financeiro nacional, o poder de polícia administrativa do Banco Central é fundamentado no artigo 174 da Constituição, que estabelece a competência do Estado para exercer o poder de polícia sobre atividades econômicas de relevante interesse público. Além disso, os incisos IX e X do artigo 10 da Lei nº 4.595/1964 conferem ao Banco Central atribuições específicas de fiscalização e controle das instituições financeiras e demais entidades submetidas à sua autorização para funcionamento.
O exercício do poder de polícia pelo Banco Central protege interesses dos depositantes, dos investidores e do público em geral, redundando em ganhos inclusive para o conjunto dos entes supervisionados, que passam a contar com um ambiente seguro e favorável à lucratividade de suas atividades. Trata-se de típico caso de benefício direto prestado pelo Estado a agentes econômicos específicos.
Ausência da taxa impacta contribuintes com renda mais baixa
Ao lado das externalidades criadas pelas atividades das instituições financeiras e demais entidades autorizadas pelos bancos centrais — configuradas em incertezas e riscos que não são eficientemente traduzidas nos mecanismos de preços livres do mercado — há outro tipo de externalidade: os custos públicos da atividade de regulação e supervisão. Por isso, é prática internacional consolidada a cobrança de taxas de instituições financeiras pelo exercício das atividades de supervisão e regulação por bancos centrais, a exemplo do que observamos nos Estados Unidos, no Reino Unido, no México e no sistema europeu de bancos centrais.
No entanto, diferentemente do que ocorre em outros países e em outros setores da economia brasileira, não há qualquer cobrança destinada a ressarcir o erário pelos custos da atividade do Banco Central. As instituições financeiras não contribuem para os custos associados à regulação, apesar de, em regra, apresentarem elevada capacidade contributiva. Assim, por exemplo, ao pedir autorização para atuar ao Banco Central, os interessados não pagam nada por isso. Como resultado, esses custos deixam de ser internalizados entre os atores financeiros; são repassados para além do universo financeiro, na forma de externalidades, à sociedade como um todo, por meio da receita obtida via impostos, afetando desproporcionalmente os contribuintes com renda mais baixa.
A ausência de uma taxa de fiscalização para os agentes econômicos autorizados a funcionar pelo Banco Central revela, portanto, um desses privilégios tributários silenciosos pouco debatidos. Enquanto cidadãos comuns pagam taxas para acessar serviços como coleta de lixo ou licenciamento de veículos, enquanto trabalhadores assalariados veem sua renda tributada na fonte e empreendedores em geral pagam taxas para licenças e autorizações, grandes conglomerados financeiros operam sob o guarda-chuva estatal brasileiro sem a prestação de contrapartida financeira direta.
Nesse sentido, a introdução de uma taxa de fiscalização específica para as instituições financeiras autorizadas pelo Banco Central promoveria maior equidade no sistema tributário, internalizando os custos da fiscalização, em linha com a prática regulatória de outras autarquias federais e com padrões internacionais consolidados.
Como costuma acontecer, propostas de criação de novos tributos são alvo de resistência na arena política, repetindo-se o discurso de que o Brasil já tem alta carga tributária e que melhor seria reduzir os gastos públicos para alcançar maior equilíbrio fiscal. Ainda que tais preocupações não devam ser ignoradas, há medidas que podem ser debatidas e adotadas paralelamente, pois a ideia de justiça fiscal não é incompatível com a racionalização dos gastos públicos. Não se trata de um dilema. Não se trata de escolher entre gastar menos ou tributar melhor: é possível — e desejável — fazer as duas coisas simultaneamente.
Evidentemente, a criação da taxa de fiscalização do Banco Central poderá resultar em um aumento da carga tributária global. Mas isso não impede que medidas compensatórias sejam adotadas para aliviar a carga tributária experimentada por pessoas de baixa capacidade contributiva. Pelo contrário: tributar inteligentemente o andar de cima é medida que permite desonerar o andar de baixo da pirâmide social.
Em rigor, a taxa de fiscalização do Banco Central já foi prevista no nosso ordenamento jurídico. Com efeito, a taxa de fiscalização foi estabelecida na redação do artigo 16, III, §§ 1º, 2º e 3º, da Lei nº 4.595, de 31 de dezembro de 1964. Contudo, esse tributo teve vida curta, pois foi extinto por meio do artigo 11 da Lei nº 5.143, de 20 de dezembro de 1966.
Muitos anos depois, houve uma tentativa de restabelecimento da taxa de fiscalização do Banco Central. Era a época do governo Itamar Franco, que encaminhou ao Congresso Nacional a Medida Provisória (MP) nº 404, de 29 de dezembro de 1993, que (re)instituía a taxa de fiscalização do sistema financeiro nacional, acompanhada de exposição de motivos subscrita por seu ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso, que defendia a proposta em termos de maior justiça tributária:
“8. Nesse sentido, a atuação do Banco Central revela-se de vital importância para o regular funcionamento do Sistema Financeiro Nacional, precipuamente no tocante à vigilância exercida sobre as instituições nele interatuantes e que diretamente operam nas atividades de coleta e intermediações financeiras. Parece-me natural, portanto, que os custos com a fiscalização sejam rateados entre os participantes do precitado Sistema, haja vista serem eles notadamente beneficiados com os serviços que lhes são prestados.
9. Como visto, a ampla atuação do Banco Central visa não somente a solidez do sistema financeiro e o resguardo dos investidores e credores, mas também o aperfeiçoamento dos instrumentos financeiros e das próprias instituições subordinadas à sua esfera de atuação.
10.Com vistas a cumprir sua missão fiscalizadora, o Banco Central arca com custos (salários, encargos sociais, diárias e passagens, dentre outros) que, atualmente, são suportados com recursos próprios, significando obviamente que, sendo aquela Instituição uma Autarquia Federal, toda a sociedade brasileira é chamada a contribuir, integralmente, por uma ação que traz benefícios não somente para ela, sociedade, mas para as próprias instituições fiscalizadas e para o sistema financeiro como um todo.”
Não obstante seus méritos, a MP nº 404, de 1993, perdeu a eficácia em 3 de fevereiro de 1994, porque o Congresso não deliberou sobre ela em tempo hábil. Consequentemente, perdeu-se boa oportunidade de tornar o sistema tributário brasileiro menos regressivo, mais coerente ao nível federal e mais afinado com práticas internacionais consolidadas.
Restabelecer essa taxa é mais do que uma medida técnica: é uma escolha política, que diz muito sobre quem deve contribuir com o financiamento do Estado. Em tempos de restrição fiscal, exigir responsabilidade dos agentes mais poderosos do sistema econômico não é radicalismo: é coerência e simbolismo. O Congresso precisa corrigir essa distorção histórica, sinalizando à sociedade que o combate à desigualdade passa por decisões concretas, que façam os setores mais privilegiados assumirem o custo das benesses de que desfrutam.
Fonte: Conjur
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