Mafalda Duarte afirma que é preciso voltar a analisar os resultados e a implementação do que foi decidido, em vez de enfatizar novos anúncios e promessas
A portuguesa Mafalda Duarte acredita que a COP30, em Belém, em novembro, tem que conseguir restaurar a confiança no processo dos países em desenvolvimento e a esperança das pessoas. “É preciso voltar a analisar os resultados e a implementação do que foi decidido. Em vez de continuar a enfatizar novos anúncios e novas promessas, temos que ver onde estamos”.
Graduada em Relações Internacionais e com mestrados em Desenvolvimento Internacional e em Economia e Ciência do Clima, Duarte dirige há dois anos o Green Climate Fund, ou Fundo Verde do Clima. O GCF é o maior fundo climático multilateral do mundo, e que agora trata de implementar o Acordo de Paris.
O GCF tem US$ 21 bilhões em carteira, sendo US$ 18 bilhões investidos em mais de 300 projetos, a metade de mitigação e a outra em adaptação, principalmente nos países mais vulneráveis. Está em 133 países na África, América Latina, Ásia Central e Europa do Leste. Os maiores doadores são a União Europeia, Reino Unido, Suécia, Noruega, Japão e Canadá.
Entre as metas de sua diretora-executiva está garantir que o GCF chegue a investimentos de US$ 50 bilhões em 2030, maximizando a eficiência e o impacto do Fundo. No Brasil, o GCF tem um portfólio de mais de US$ 500 milhões. Uma das ideias é como alavancar mais investimentos em clima no Brasil, apoiando o Plano de Transição Ecológica do Ministério da Fazenda, o de bioeconomia e a Plataforma de Investimentos Climáticos.
Este foi um dos motivos de sua visita ao Brasil, na semana passada. Duarte esteve em Brasília, no Rio de Janeiro e em São Paulo. Conversou com a presidência da COP30 e alguns de seus enviados climáticos e com os ministros da Fazenda, Fernando Haddad, do Meio Ambiente, Marina Silva, e do Desenvolvimento e Combate à Fome, Wellington Dias -com quem anunciou o engajamento do Fundo à Aliança Global contra a Fome e Pobreza. Também se encontrou com secretários de governo, ambientalistas, setor privado, academia e equipe do BNDES.
A COP30 e o financiamento climático estiveram no centro dos encontros. “Estamos todos cansados de estudos. Sabemos o que tem que ser feito”, diz ela. Na sua opinião, a reforma dos bancos multilaterais de desenvolvimento deve incluir também os bancos nacionais de desenvolvimento. “O BNDES têm mais recursos que o Banco Mundial. Todos devem fazer mais pelo clima”, diz.
Ela defende um balanço dos compromissos das COPs anteriores para torná-los mais concretos, diz que para chegar ao US$ 1,3 trilhão de recursos mobilizados, por todas as fontes, em 2035, o capital privado é crucial, e que é preciso agir para eliminar os subsídios nocivos ao clima e conduzi-los a investimentos benéficos. A seguir, trechos da entrevista que concedeu ao Valor:
Valor: Como você enxerga o eterno nó do financiamento nas negociações climáticas? Na reunião de Bonn, em junho, muitos países manifestaram seu descontentamento com o que se decidiu em Baku, na COP 29, sobre financiamento climático. Isso tende a assombrar a COP30.
Mafalda Duarte: Finanças é o problema. É o calcanhar da Aquiles das negociações. O Acordo de Paris diz que a cada cinco anos os países devem vir com compromissos de mais ambição. Mas os países em desenvolvimento sempre disseram que para virem com mais ambição precisam de apoio. E o problema é que não estão vendo apoio na escala necessária. E é por isso que muitos dos países em desenvolvimento formulam seus compromissos climáticos, as NDCs [National Determined Contributions] com uma versão que é condicional e outra, não. Ou seja, há uma parte que eles voluntariamente farão e outra que dizem que podem fazer se tiverem apoio. Acontece que esse apoio não se materializa na escala necessária.
Valor: E então?
Duarte: Isso contribui para que haja menor ambição nos compromissos climáticos dos países em desenvolvimento, com suas NDCs, que em si já não levam o mundo a limitar o aquecimento em 1,5°C. Isso já contabilizando até os esforços até das partes que são condicionais. Não se chega lá. E um dos pontos principais é a erosão de confiança dos países em desenvolvimento em relação aos países desenvolvidos.
Valor: Piora a desconfiança?
Duarte: Sim, torna-se uma desilusão. Porque os países em desenvolvimento dizem “nós temos combustíveis fósseis, nós temos petróleo, nós temos gás, nós temos enormes reservas e por qual motivo não devemos explorar como vocês, países desenvolvidos, exploraram? Vocês proporcionaram o desenvolvimento com base na economia fóssil. Se vocês querem que nós não façamos o mesmo, precisamos ser compensados”. Como o financiamento está muito abaixo do nível necessário, a parte financeira é o calcanhar de Aquiles das negociações climáticas.
Valor: Sempre foi, não é?
Duarte: Sim. Mas está ficando pior. Quando, na COP de Copenhague, os países desenvolvidos anunciaram US$ 100 bilhões ao ano [aos países em desenvolvimento], havia certa esperança de que alguma coisa seria feita. Mas o que é que aconteceu depois de Copenhague com os US$ 100 bilhões? Levou-se um tempo imenso para se chegar aos US$ 100 bilhões ao ano e os países em desenvolvimento questionam as metodologias que levaram os outros a dizerem que chegaram lá. Aí já existe uma erosão na confiança.
Belém deveria ser uma COP de accountability. É voltar aos compromissos que se fizeram e fazer um balanço”
Valor: Que se agrava na COP29, em Baku?
Duarte: Sim. Em 2024 negociou-se o New Collective Quantified Goal [pelo qual países desenvolvidos devem mobilizar no mínimo US$ 300 bilhões ao ano para os países em desenvolvimento até 2035; e aumentar o volume para US$ 1,3 trilhão ao ano, em 2035, mas envolvendo todos os atores] em que os US$ 300 bilhões devem alavancar o US$ 1,3 trilhão. Muitos países em desenvolvimento indicaram que os US$ 300 bilhões são insuficientes e ficaram descontentes também com a formulação, que inclui recurso público e privado. Ou seja, o que isso quer dizer, efetivamente? E não demorou muito para surgirem análises que dizem que, aplicadas as taxas de inflação até 2035 não se tem muito mais que os antigos US$ 100 bilhões.
Valor: O que a senhora pensa?
Duarte: Penso que o ponto principal do atrito foi ter se formulado que os US$ 300 bilhões virão de fontes públicas e privadas [ou seja, países endividados pela crise climática podem ficar mais endividados]. E que estamos cansados de estudos.
Valor: Como assim?
Duarte: Estamos cheios de estudos científicos que dizem que temos que atuar de forma mais ambiciosa e mais rapidamente. Não é por não sabermos. Temos muitos estudos financeiros. Nick Stern [economista britânico que em 2006 publicou estudo sobre os impactos econômicos da crise do clima dizendo que para atenuar os efeitos seriam necessários investimentos de 1% do PIB mundial ao ano, mas se nada fosse feito, o estrago poderia custar 20% do PIB mundial] já vem há muito dizendo quanto se deve investir do PIB global para prevenir custos muito mais elevados no futuro. E quais os mecanismos para gerar esse montante de investimentos. Há dois anos, o High-Level Panel on Climate Finance [grupo de especialistas indicados pelo secretário-geral da ONU] elencou quatro grandes vertentes na questão do financiamento. Um deles é o capital doméstico.
Valor: Pode explicar?
Duarte: É a necessidade de os governos atuarem nas regulamentações que atraem o investimento, eliminarem os subsídios que são contra os objetivos climáticos e usarem esses subsídios danosos em investimentos benéficos para o clima. Tem também a parte de mobilização de recursos do setor privado. Depois se menciona o dinheiro público multilateral – os bancos multilaterais de desenvolvimento, mas eu incluo os bancos nacionais de desenvolvimento, que também têm que fazer mais. E a quarta vertente é a dos fundos, como o GCF. Temos o capital mais flexível, vamos dizer assim.
Valor: Vocês oferecem juros mais baixos?
Duarte: Temos juros mais baixos, podemos fazer doações, usar diferentes instrumentos, garantias, equity, dívida. Temos uma grande flexibilidade. E com isso permitir a outros, que não podem correr esses riscos ou que têm custos de capital mais elevados, que eles invistam.
Valor: Então, voltando à reforma dos bancos multilaterais de desenvolvimento, a senhora incluiria..?
Duarte: Incluiria nessa reforma, ou nesses ajustes, os bancos nacionais de desenvolvimento, que têm muito mais capital do que os bancos multilaterais. O BNDES, por exemplo, é bem maior que o Banco Mundial. Se os bancos multilaterais e os bancos nacionais de desenvolvimento se alinharem mais pelos objetivos do clima podemos gerar mais investimento.
Valor: Como opera o Fundo Verde do Clima?
Duarte: Permitimos os investimentos deles todos. O Fundo Verde do Clima trabalha com mais de 150 instituições, e neste grupo há bancos multilaterais, bancos nacionais de desenvolvimento, governos, setor privado, organizações não-governamentais. Se estamos no Brasil e falamos com o BNDES, queremos saber como podemos apoiar para que o banco possa fazer mais. O nosso tipo de capital é necessário para alavancar todos esses outros.
Os fundos têm um papel especial em todo este ecossistema, porque permitem alavancar os bancos multilaterais e os bancos nacionais de desenvolvimento, conseguem apoiar os governos a mobilizar o setor público doméstico. São uma alavanca do setor privado também. É como se estivessem no centro para alavancar o resto do quebra-cabeças.
Valor: Como vê a COP30? O que pode sair de Belém?
Duarte: É um grande desafio, também pelo contexto geopolítico internacional. Penso que um dos objetivos principais tem que ser trazer esperança de novo ao processo da COP. De que é possível ter ambição e apoiar essa ambição. É importante que a COP30 tente, de diferentes formas, ganhar de novo a confiança das pessoas. Nesse sentido, é necessário voltar à questão dos resultados e da implementação em vez de continuar a enfatizar novos anúncios e novas promessas. É ver onde estamos. Deveria ser uma COP de accountability. É voltar aos compromissos que se fizeram e fazer uma espécie de balanço. Dizer nos comprometemos com isto, não entregamos. Aqui está um plano para cumprir com aquela meta.
É necessário assegurar que os anúncios sejam implementados, e não são só ter mais anúncios vazios. Precisamos ganhar confiança novamente da população em relação ao processo. E há questões importantes. No ponto de mobilizar US$ 300 milhões é preciso eliminar os subsídios nefastos.
Valor: Vê avanços nisso?
Duarte: O progresso é bastante limitado. Outro grande debate são os novos instrumentos fiscais. Um grupo de 11 países acaba de se comprometer a taxar jatinhos privados, a primeira classe e a classe executiva das viagens aéreas. E é assim, não podemos pensar que vamos conseguir ter todos os países do mundo concordando com uma taxa ou com um novo instrumento fiscal. Não acontece. Acredito em grupos de países atuando.
Fonte: Valor Econômico


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