Decisão do CNJ sobre precatórios sem trânsito em julgado expõe tensão entre segurança jurídica, efetividade processual e litígios protelatórios da União

A recente decisão do CNJ, no âmbito do pedido de providências 0003764-47.2025.2.00.0000, trouxe à tona um tema complexo do processo civil contemporâneo: a expedição de precatórios antes do trânsito em julgado da fase executiva. O caso, que envolveu a expedição de precatórios por varas Federais da seção judiciária do Distrito Federal, foi levado ao plenário do CNJ pela União e resultou na suspensão cautelar dos chamados precatórios bloqueados, além da devolução dos já expedidos aos juízos de origem.

A tese fixada foi a seguinte: “A expedição de precatórios antes do trânsito em julgado da fase de execução viola a resolução CNJ 303/19, a lei de diretrizes orçamentárias e os princípios constitucionais da ordem cronológica e da unicidade da lista de precatórios, ensejando a atuação correicional e cautelar do CNJ”.

As divergências no plenário do CNJ

Apesar da unanimidade formal no resultado, a fundamentação revelou importantes distinções de enfoque.

O voto do corregedor nacional, ministro Mauro Campbell Marques, reforçou a necessidade de vinculação ao art. 6º, VIII, da resolução 303, que exige a data do trânsito em julgado como requisito para a requisição. A decisão também evocou a LDO 2025, que expressamente condiciona a inclusão orçamentária à certidão de trânsito.

Já votos convergentes, como o do Conselheiro Ulisses Rabaneda, advertiram contra uma leitura maximalista da decisão. Segundo ele, precatórios expedidos após a preclusão lógica (reconhecimento de parcela incontroversa) ou temporal (perda do prazo para impugnação) não podem ser confundidos com expedições irregulares. Cancelá-los indiscriminadamente geraria pânico sistêmico e insegurança.

Outro voto já revelou opinião diversa, embora formalmente convergente. O conselheiro Marcelo Terto, embora tenha acompanhado a decisão do corregedor, buscou esclarecer que a decisão não poderia ser interpretada como uma autorização para revisar indiscriminadamente atos jurisdicionais válidos, nem para tolher a independência judicial. Para o conselheiro, os requisitos da resolução 303 não são cumulativos, mas sucessivos – bastando o trânsito em julgado, a decisão que resolve a impugnação, ou o decurso do prazo para sua apresentação. Além disso, enfatizou que a preclusão lógica (quando o devedor reconhece parcela incontroversa) e a preclusão temporal (quando perde o prazo de impugnar) também autorizam a expedição.

O voto trouxe ainda uma advertência contra a litigância abusiva da Fazenda Pública. Conforme confirmou Marcelo Terto, é frequente a prática da União de apresentar impugnações meramente protelatórias, reproduzindo teses já superadas ou levantando preliminares sem relevância prática muitas vezes já afastadas na fase de conhecimento. Nessas hipóteses, defendeu, cabe ao magistrado expedir o precatório – ainda que bloqueado – como forma de preservar a autoridade da coisa julgada e garantir a efetividade da jurisdição.

A leitura do conselheiro reforça a ideia de que a atuação correicional do CNJ não pode ser confundida com tutela excessiva sobre a atividade jurisdicional. Ao contrário, deve servir para fortalecer a confiança na jurisdição e para proteger os jurisdicionados contra expedientes protelatórios da Fazenda.

Essa tensão demonstra que, mesmo no âmbito do CNJ, ainda há dúvidas interpretativas sobre o alcance da proibição e sobre os limites do controle correicional diante da autonomia jurisdicional.

O paradoxo dos precatórios bloqueados

O debate revelou um paradoxo curioso: a União sustenta que a expedição antecipada fragiliza a ordem cronológica e gera risco ao erário; os credores, por sua vez, argumentam que o bloqueio gera vantagem econômica para o próprio ente devedor. Isso porque, enquanto o débito permanece corrigido pela Selic até a expedição, após convertido em precatório passa a ser atualizado pelo IPCA-E (até o depósito) e, em seguida, pela poupança, que apresenta índices notoriamente inferiores.

Ou seja: ao final, o precatório expedido e bloqueado pode representar um custo menor para a Fazenda Pública, e não um prejuízo. Nesse sentido, memoriais apresentados no processo destacaram que a medida funciona como instrumento de racionalidade orçamentária e de contenção da litigância protelatória da União.

A necessidade de atualizar a resolução 303

Diante da controvérsia instalada, parece razoável que o CNJ revise a resolução 303/19, prevendo hipóteses em que a expedição poderia ocorrer antes do trânsito em julgado, desde que com bloqueio e em situações específicas:

  • Reconhecimento de parcela incontroversa pelo devedor;
  • Impugnações meramente genéricas ou protelatórias;
  • Execuções que dependam apenas de cálculo aritmético, sem complexidade jurídica;
  • Expedição facultativa, a pedido do credor, condicionada à confirmação colegiada pelo tribunal.

Essa atualização não significaria enfraquecer a ordem cronológica, mas sim clarificar quando a preclusão (temporal ou lógica) é suficiente para autorizar a requisição. Ao mesmo tempo, garantir-se-ia prioridade na tramitação dos recursos que ainda discutem a fase executiva, preservando o princípio da duração razoável do processo, e, também, atenderia à economicidade, porque o precatório expedido com bloqueio é corrigido por taxas bem menores do que seria corrigido sem a expedição.

Conclusão: Entre a ortodoxia e a efetividade

O acórdão do CNJ cumpre papel relevante de freio diante de expedições prematuras sem base normativa. Mas, ao mesmo tempo, evidencia a insuficiência da atual redação da resolução 303 para lidar com a litigiosidade artificial da Fazenda Pública e com a necessidade de segurança orçamentária.

Se prevalecer apenas a ortodoxia formal do “trânsito em julgado” como preclusão máxima, corre-se o risco de perpetuar expedientes protelatórios que esvaziam a autoridade da coisa julgada e minam a confiança do jurisdicionado. Se, ao contrário, o CNJ conseguir modular a regra, reconhecendo a possibilidade de expedições com bloqueio em hipóteses bem delimitadas, terá dado um passo importante para conciliar efetividade processual, segurança orçamentária e lealdade institucional.

O debate, em última análise, transcende a técnica de gestão de precatórios: trata-se de definir qual Justiça o Estado brasileiro deseja entregar aos cidadãos – uma Justiça refém da procrastinação, ou uma Justiça capaz de tornar efetiva a promessa constitucional do art. 5º, LXXVIII, da razoável duração do processo.

Fonte: Migalhas

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