Analisa os casos de dispensa das anuências dos confrontantes no procedimento de retificação de área realizado no registro de imóveis, conforme art. 440-AX, § 3º, do CNN/CN/CNJ-Extra (incluído pelo Prov. CNJ nº 195/2025 – Provimento do IERI-e).1

O § 3º do art. 440-AX do CNN/CN/CNJ-Extra, incluído pelo provimento CNJ 195/25, prevê o seguinte:

Art. 440-AX. […]

§ 3º. É dispensada a anuência do confinante:

I – no caso de imóveis rurais, se o imóvel confrontante e a nova descrição do imóvel objeto da retificação tiver sido certificada pelo Incra na forma do § 5.º do art. 176 da Lei n. 6.015/1973; e

II – se o imóvel confrontante for bem público e consistir em:

a) águas públicas, tais como rios navegáveis, correntes ou depósitos hídricos, com respeito aos pertinentes terrenos reservados, nos termos do art. 14 do Código de Águas (Decreto n. 24.643/1934); e

b) bem público de uso comum, tais como estradas, rodovias, ferrovias e outras vias de circulação, respeitada a faixa de domínio público e eventual área non aedificandi.

Os casos acima descrevem as hipóteses de dispensa normativa de apresentação da anuência dos confrontantes que passaram a ser regulamentadas pelo provimento do IERI-e.

1. Certificação no SIGEF e confirmação no Registro de Imóveis

No caso de o imóvel vizinho ao imóvel retificando possuir prévia certificação da poligonal no SIGEF/INCRA e tiver sua retificação de área no registro de imóveis já concluída, não será necessário colher a anuência do confinante. Isso porque a norma presume que já houve a concordância formal quanto aos limites e que não existe discussão acerca de sobreposição com a área confrontante.

Trata-se de uma interpretação sistemática e teleológica dos arts. 176, §§ 3º a 5º e § 13 em conjunto com o art. 213, todos da LRP.

É importante deixar claro que não basta a mera certificação da poligonal no SIGEF para a dispensa da anuência do confrontante. Isso porque a certificação no SIGEF, por si só, não serve para comprovar propriedade nem tem força legal para definir os limites de um imóvel, sobretudo por se tratar de um cadastro autodeclaratório e unilateral. Além do mais, a análise jurídica da conformidade dos limites do imóvel e o controle da malha imobiliária é atribuição do registrador de imóveis, notadamente ao realizar a qualificação registral no procedimento de retificação de área. Assim, para a dispensa da anuência do confrontante deve ocorrer o cumprimento de ambos os requisitos em relação ao imóvel confrontante: certificação da poligonal + deferimento da retificação de área no registro de imóveis.2

Deve-se reconhecer, no entanto, que o texto do provimento poderia ter sido mais claro, motivo pelo qual sugerimos, de lege ferenda, que o texto seja melhorado, para que deixe expresso que a dispensa da anuência do confinante ocorra “no caso de imóveis rurais, se o imóvel confrontante e a nova descrição do imóvel objeto da retificação tiver sido certificada pelo Incra na forma do § 5.º do art. 176 da Lei n. 6.015/1973, e, em relação ao imóvel confrontante, tenha sido concluída a retificação de área de acordo com o polígono certificado”.

De qualquer modo, mesmo sem a alteração do texto da norma do CNJ a interpretação que deve ser dada, desde logo, para a dispensa da anuência de confinante, é a exigência conjunta de certificação no Incra cumulado com a confirmação da retificação de área do imóvel confrontante, mediante interpretação teleológica e sistemática da lei de registros públicos.

2. Águas públicas

Outra hipótese de dispensa da anuência ocorre no caso de confrontação com bens públicos. No caso de águas públicas, tais como rios navegáveis e outros afluentes, é dispensada a anuência desde que respeitada a faixa de terreno reservado de 15 metros estabelecida no Código de Águas.3 De seu turno, no caso de rodovias ou ferrovias aplica-se regra semelhante, sendo dispensada a anuência do ente público se respeitada a faixa de domínio e a área non aedificandi.

Nesses casos, o registrador de imóveis poderá verificar o cumprimento deste requisito ao analisar os trabalhos técnicos e a imagem de satélite da poligonal, notadamente pelo SIG-RI – Sistema de Informações Geográficas do Registro de Imóveis.4 Também é recomendável que o profissional técnico faça constar expressamente a informação de respeito aos limites e das faixas com os bens públicos na planta ou no memorial descrito ou até mesmo em laudo técnico separado, a fim de ser deferida a dispensa da anuência dos entes públicos.

Rios públicos são aqueles navegáveis e que são considerados bens públicos. Portanto, os rios públicos geram a divisão do imóvel por ele seccionado. Interessante notar que os rios públicos serão estaduais quando localizados apenas em um Estado; e serão Federais quando cortarem mais de uma unidade federativa ou fizerem fronteira com outros países, caso em que serão considerados patrimônio da União (art. 20, inc. III; e art. 26, inc. I, CF).5

Não existe uma lista oficial de rios navegáveis, motivo pelo qual deve ser analisado caso a caso pelo registrador, o qual deve ter o conhecimento da circunscrição territorial sob sua jurisdição.

Navegáveis são os cursos d’água que permitem a navegação de embarcações, ou seja, possibilitam o trânsito seguro de barcos ao longo de toda ou da maior parte de seu percurso. Para ser considerado navegável, o afluente deve suportar uma embarcação de pequena proa com capacidade para pelo menos uma pessoa, independentemente do tipo de propulsão (remo, vela, motor etc.).6

De sua vez, os rios não navegáveis são privados, podendo fazer parte do imóvel ou eventualmente constituírem marco divisório dele, caso em que o confrontante anuente será o vizinho do outro lado da margem do curso d’água.

Muitos registradores, por questões de extrema cautela, exigiam notificação da Fazenda Pública (PGE – Procuradoria Geral do Estado para rios estaduais; ou da SPU – Superintendência de Patrimônio da União, para Federais) em retificações de imóveis confrontantes com rios navegáveis, mas essa exigência, de acordo com o regulamento do CNJ, pode ser considerada exagerada. O princípio da razoabilidade indica que basta comprovar, por meio de planta precisa e imagem de satélite (ex.: Google Earth), que a margem do rio navegável e a faixa pública de 15 metros (terreno reservado) foram respeitadas, sem necessidade de movimentar a máquina pública, exigindo a anuência ou a notificação do Estado ou União.

Conforme explica Eduardo Augusto, mesmo que haja erros técnicos na descrição, a inclusão de área pública não altera a titularidade estatal, que é inalienável e imprescritível (não usucapível). Assim, a notificação da Fazenda Pública é desnecessária, salvo se o particular contestar a existência da faixa pública, caso em que a participação estatal é essencial para garantir a segurança jurídica do registro. A retificação deve, portanto, focar apenas no necessário para assegurar a correção da nova descrição, evitando formalismos excessivos que não trazem benefício prático nem segurança jurídica.7

A dispensa da anuência, no entanto, não dispensa o registrador de fazer a qualificação registral dos trabalhos técnicos. Desse modo, se o registrador evidenciar que os trabalhos técnicos contêm incorreções ou que não estão de acordo com a linha de terreno reservado do curso d’água, deve, fundamentadamente, exigir a notificação dos entes públicos, a fim de evitar litígios futuros.

Figura 1 – Rio navegável e terreno reservado

Fonte: https://eduardoaugusto-irib.blogspot.com/2010/05/confrontacao-com-rio-publico-e-privado.html

3. Estradas públicas: Rodovias e ferrovias

Em relação às rodovias e ferrovias deve ser respeitada a faixa de domínio e a área não edificável (área non aedificandi).

A faixa de domínio é a área pública onde se assentam todos os elementos que compõem a estrada, incluindo pista de rolamento, canteiros, acostamentos, sinalizações e faixas laterais de segurança, entre outros, até o limite que separa a estrada pública dos imóveis marginais. Constitui, portanto, bem público de uso comum do povo.

A área não edificável (non aedificandi), de outro lado, é uma faixa de terra onde é proibida a construção de edificações, situada geralmente após a faixa de domínio de rodovias e ferrovias. Não se trata de bem público, não pertencendo ao Estado, tendo natureza de bem particular, mas em que está gravada limitação administrativa, uma restrição da propriedade, vedando que o proprietário construa sobre a área. Desse modo, a área não edificável faz parte do imóvel do requerente e deve ser descrita na matrícula do imóvel retificando, pois se trata de bem particular.

A área non aedificandi ao longo das estradas rodoviárias tem, em regra, largura mínima de 15 metros de cada lado da linha que define a faixa de domínio da rodovia. Contudo, pela atual redação da lei 6.766/1979 (lei de parcelamento do solo urbano), alterada pela lei 13.913/19, os municípios podem reduzir essa faixa para até 5 metros de cada lado, desde que haja lei municipal que autorize essa redução (art. 4º, inc. III).8

A lei 14.273/21 (lei das ferrovias) não especifica uma área non aeficandi para este tipo de estrada pública, sendo possível inferir de seu regramento que as instalações adjacentes, inclusive, os “imóveis localizados de forma contígua” às estradas de ferro deverão respeitar a “indicação georreferenciada do percurso total […] da faixa de domínio da infraestrutura ferroviária” (art. 3º, inc. VII e art. 25, § 1º, inc. II, alínea a). Desse modo, não havendo previsão de metragem específica na legislação especial para definir a área non aedificandi, entendemos que se aplica as diretrizes estabelecidas para as rodovias também às vias férreas: 15 metros como regra, podendo ser reduzida para 5 metros na área urbana, se houver legislação municipal autorizativa.9

Com efeito, para que haja a dispensa da colheita de anuência do ente público confrontante, a faixa de domínio deve ser respeitada, de modo que o imóvel retificando não se sobreponha a ela; bem assim deve constar do trabalho técnico o respeito à limitação administrativa da área não edificável.

Figura 2 – Faixa de domínio de rodovia e área non aedificandi

Fonte: https://www.ribrusque.com.br/faixa-de-dominio-e-area-non-aedificandi/

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1 Este é o quarto artigo de uma série dividida em 7 partes relacionados ao art. 440-AX do Prov. CNJ 195/2025, que dispõe sobre o procedimento de retificação de área, com os seguintes temas: (i) abertura de nova matrícula após a retificação; (ii) forma de anuência dos confrontantes; (iii) assinaturas eletrônicas no procedimento de retificação de área; (iv) hipóteses de dispensa da anuência dos confrontantes; (v) retificação de área cumulada com desmembramento ou unificação; (vi) critérios para deferimento e indeferimento da retificação de área; e (v) grilagem de terras e controle da malha imobiliária pelo oficial de registro de imóveis.

2 Por esse motivo, é importante que ao final do procedimento de retificação de área, o registrador de imóveis faça o login na plataforma do SIGEF, realize o upload da nova matrícula e inclua a informação de “Confirmação de Registro”.

3 Art. 14, Código de Águas. Os terrenos reservados são os que, banhados pelas correntes navegáveis, fora do alcance das marés, vão até a distância de 15 metros para a parte de terra, contados desde o ponto médio das enchentes ordinárias.

4 O SIG-RI passou a ser regulamentado nos arts. 343-D a 343-J do CNN/CN/CNJ-Extra, de acordo com a redação incluída pelo Provimento do IERI-e.

5 Art. 20. São bens da União: […] III – os lagos, rios e quaisquer correntes de água em terrenos de seu domínio, ou que banhem mais de um Estado, sirvam de limites com outros países, ou se estendam a território estrangeiro ou dele provenham, bem como os terrenos marginais e as praias fluviais; […] Art. 26. Incluem-se entre os bens dos Estados: I – as águas superficiais ou subterrâneas, fluentes, emergentes e em depósito, ressalvadas, neste caso, na forma da lei, as decorrentes de obras da União;

6 GIOVANINI, Adenilson. Topografia cadastral e georreferenciamento de imóveis rurais na prática. E-book. 2023.

7 AUGUSTO, Eduardo Agostinho Arruda. Registro de imóveis, retificação de registro e georreferenciamento: fundamento e prática. Série Direito Registral e Notarial. Coord. PAIVA, João Pedro Lamana. Saraiva: São Paulo, 2013.

8 Art. 4º, Lei n. 6.766/1979. Os loteamentos deverão atender, pelo menos, aos seguintes requisitos: […] III – ao longo das faixas de domínio público das rodovias, a reserva de faixa não edificável de, no mínimo, 15 (quinze) metros de cada lado poderá ser reduzida por lei municipal ou distrital que aprovar o instrumento do planejamento territorial, até o limite mínimo de 5 (cinco) metros de cada lado. (Redação dada pela Lei nº 13.913, de 2019)

9 Vale frisar que a operadora ferroviária poderá constituir direito real de laje ou direito real de superfície, sobre ou sob a faixa de domínio de sua via férrea, observado o plano diretor e o respectivo contrato de outorga com o poder concedente (art. 57-A, Lei n. 10.257/2001). Ademais, havendo necessidade de implantação de infraestrutura nas áreas adjacentes à faixa de domínio da estrada de ferro, é possível ainda que as empresas autorizatárias ou concessionárias de exploração de ferrovias promovam a desapropriação dos imóveis contíguos, desde que haja autorização expressa constante de lei ou do contrato (art. 3º, I, Decreto-Lei n. 3.365/1941).

Fonte: Migalhas

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