Professor de Direito Internacional e Comparado na Universidade da Califórnia – Hastingas College of the Law (EUA) e professor titular de Direito Civil na Universidade de Turim (Itália), Ugo Mattei é um dos principais nomes do Direito Comparado do mundo. Mattei se destaca por sua visão crítica sobre as instituições jurídicas, as relações entre Direito e sociedade e sua defesa dos bens comuns.
Em entrevista exclusiva ao Jornal do Notário, o acadêmico avalia como sua atuação contribuiu para uma visão crítica do Direito, tornando-o um jurista engajado; pontua como o Direito pode ser usado como instrumento de pilhagem e o risco do sistema jurídico perder sua função democrática; e destaca os limites éticos e jurídicos do uso de inteligência artificial em atividades jurídicas e documentais, como a lavratura de atos notariais. “Os fracos recorrem ao Direito para se defenderem contra as injustiças daqueles que detêm o poder, seja o seu senhorio, o seu empregador ou o seu cônjuge abusivo”, explicou. “O notariado deve ser muito corajoso e inovador e reivindicar o seu papel de intérprete ex ante do Direito (ao contrário do juiz, que interpreta ex post) para dar reconhecimento e confiabilidade às várias experiências de commoning” Leia abaixo a entrevista na íntegra
Jornal do Notário: Professor Mattei, sua formação e atuação passam por universidades como Turim, Berkeley, Yale e Cambridge. De que forma essa trajetória moldou sua visão crítica do Direito e sua atuação como jurista engajado?
Ugo Mattei: Em Turim, estudei com Rodolfo Sacco, Enrico Di Robilant, Norberto Bobbio e Antonio Gambaro: este último é meu mestre no sentido italiano do termo. Em Yale, com Guido Calabresi; em Hastings, com Rudolf Schlesinger; em Berkeley, com Robert Cooter, Paul Mishkin e James Gordley; em Cambridge, com Tony Weir e Peter Stein. Nenhum desses mestres extraordinários pode ser considerado um “companheiro” no sentido político do termo. Mas, claro, todos eles me ensinaram o senso crítico e a dúvida metódica e, acima de tudo, suas biografias extraordinárias me tornaram imediatamente cético em relação às oposições dominantes entre direita e esquerda. Meu compromisso como ativista vem, ao contrário, de Stefano Rodotà, que nunca foi meu professor, mas com quem travei batalhas políticas desde 1983. Devo muito ao ensino e ao exemplo de Laura Nader e de seu irmão Ralph, que foi o mais importante ativista na defesa dos consumidores e do meio ambiente nos Estados Unidos.
Jornal do Notário: No livro “Pilhagem: quando o Estado de Direito é ilegal”, o senhor argumenta que o Direito pode ser usado como instrumento de pilhagem. Em sua visão, qual o risco de o sistema jurídico perder sua função democrática, especialmente em tempos de financeirização?
Ugo Mattei: O Direito é uma faceta dupla. Por um lado, sempre foi um instrumento de opressão, uma espada nas mãos do poder que monopoliza a força. Por outro lado, sempre desempenhou também uma função limitada de escudo contra o poder e suas práticas opressivas. Os fracos recorrem ao Direito para se defenderem contra as injustiças daqueles que detêm o poder, seja o seu senhorio, o seu empregador ou o seu cônjuge abusivo. Nessa dialética entre espada e escudo está a noção de Estado de Direito. Como a narrativa dominante, tanto da direita quanto da esquerda, considera o Estado de Direito necessariamente bom, Laura Nader e eu escrevemos um livro para mostrar como, historicamente, a violência bruta revestida de Direito está sempre à espreita. Hoje, os riscos de uma deriva da função “espada” sem uma cultura jurídica que assuma a função do “escudo” (que você chama de função democrática) são muito fortes; infelizmente, nos Estados Unidos e na Itália, com governos de inspiração fascista explícita ou implícita, a funçao democrática do Direito parece já estar morta. (também pela covardia dos juristas, como escrevi em meu livro: Il diritto di essere contro, de 2022).
Jornal do Notário: O conceito de bens comuns tem ganhado força em debates sociais e jurídicos. Como essa ideia pode dialogar com o Direito Notarial, que tem na fé pública e no acesso à cidadania seus pilares?
Ugo Mattei: A noção de bens comuns é verdadeiramente revolucionária em relação aos dogmas positivistas e individualistas da modernidade (sobre isso escrevi com Fritjof Capra e Mark Mancall). Acredito que a essência de uma organização social baseada nos bens comuns é dar espaço a um direito popular, baseado na máxima autonomia das organizações “comunistas” tanto formais quanto informais. O notariado tem um papel imenso nesse ponto de vista, porque sua função histórica é justamente colocar “em cópia limpa”, para fins de confiança, certeza e proteção dos mais fracos, o que as partes privadas querem estipular entre si com efeito para terceiros. O notariado deve ser muito corajoso e inovador e reivindicar o seu papel de intérprete ex ante do Direito (ao contrário do juiz, que interpreta ex post) para dar reconhecimento e confiabilidade às várias experiências de commoning. Por exemplo, sem o saudoso notário Giancarlo Laurini, que na época era até mesmo presidente do Notariado Italiano, não teria sido possível, mesmo politicamente, criar a ABC Napoli, a primeira empresa italiana de água transformada de SPA em empresa pública participada. Durante longas horas, discuti com Laurini sobre a necessidade de uma interpretação constitucional de certas normas para poder passar do privado para o público. No final, ele se convenceu e o jogo estava feito. Se Laurini não fosse tão culto e aberto, em Nápoles a água não seria gerida como um bem comum! O mesmo pode ser dito de Gennaro Mariconda, outro notário italiano “histórico” que registrou a fundação “Teatro Valle Bene Comune” em um espaço tecnicamente ocupado! Sem notários, os bens comuns nunca poderão se tornar uma experiência dominante. Acredito que essa seja a contribuição que o notariado brasileiro pode oferecer a todo o mundo BRICS. Tentarei articular melhor esse pensamento em minha relação paulista.
Jornal do Notário: O senhor liderou o referendo contra a privatização da água na Itália e recentemente dois outros contra o envio de armas e a privatização da saúde. O que move sua atuação política? E qual o papel dos juristas na proteção dos direitos coletivos?
Ugo Mattei: Eu acredito na sociedade civil e na sua capacidade de contribuir para a res publica, precisamente através da participação e do empenho na defesa dos bens comuns. Neste sentido, a água, a paz e a saúde devem responder à mesma lógica de inclusão, participação e partilha. Sempre faço tudo o que posso para agir politicamente em todas as formas de democracia participativa ou direta ainda abertas, a fim de mostrar ao povo que ou a própria democracia é tratada como um bem comum, ou, uma vez privatizada, fica para sempre corrompida. Acredito que a presença de uma profissão jurídica culta e consciente, especialmente em matéria civil e comercial, é fundamental para criar as bases institucionais de uma democracia dos bens comuns. Como já disse, o notariado é a melhor expressão dessa cultura civilista de alto nível, mas próxima do povo, que acredito que o Brasil possa oferecer a todo o sistema BRICS para imaginar uma globalização diferente daquela financeira liderada pelos Estados Unidos, que só cria pobreza, fome e conflitos.
Jornal do Notário: Com a crescente digitalização dos serviços jurídicos – como blockchain, cartórios online e inteligência artificial – o senhor vê uma ameaça ou uma oportunidade para ampliar o acesso à justiça?
Ugo Mattei: Qualquer mudança drástica pode levar ao pior ou ao melhor e, nesse sentido, toda mudança é tanto uma ameaça quanto uma oportunidade. Acredito que as transformações tecnológicas desta fase estão nos dando uma medida de quão dramáticas podem ser as mudanças que nos aguardam. Acredito que, se as inovações tecnológicas forem colocadas sob controle político (em sentido amplo) e também governadas por aparatos de participação e inclusão, as vantagens superarão os riscos, como acredito ser evidente na China, onde as oportunidades de planejamento foram exploradas em benefício de quase um bilhão de pessoas que o socialismo emancipou da pobreza, enquanto no mundo capitalista, onde as corporações comandam a política, a pobreza aumenta cada vez mais.
Jornal do Notário: Na obra “A Ecologia do Direito”, escrita com Fritjof Capra, o senhor propõe um sistema jurídico mais conectado à natureza e à comunidade. Como isso se aplica às instituições jurídicas do presente?
Ugo Mattei: Desde sempre, o Direito no Ocidente é, antes de tudo, interpretatio, que é o instrumento principal da jurisdictio, ou seja, o poder de dizer qual é o Direito. Somente com a modernidade o Estado tentou monopolizar esse poder, entregando-o, mas apenas em parte, aos seus órgãos burocráticos. Mas a jurisdição deve ser confiada àqueles que estão em melhor posição para tomar decisões no interesse de todos, e acredito que notários, juristas acadêmicos e, às vezes, até mesmo juízes, se fossem mais corajosos, poderiam sair da visão burocrática dominante. Nota-se que confiar as grandes questões jurídicas aos melhores estudiosos “profissionais” do Direito não é uma escolha exclusiva do Direito Civil ou do common law ocidentais. O Direito Consuetudinário baseia-se no papel dos sábios, anciãos da aldeia, legitimados pela sua sabedoria. O Direito Islâmico confia ao Fiq a Fatwa, ou seja, a interpretação do Direito (em sentido amplo, incluindo o ritual religioso). Estes são legitimados por um longo estudo. Os mandarins chineses na visão confucionista, que se opunha aos legistas-burocratas, eram intérpretes do “li”, o equilíbrio e a ordem social, através do seu exemplo. Ainda hoje, a China lidera o mundo pela sua capacidade de selecionar a melhor classe dirigente, que todos respeitam. Conceber o Direito sob a ótica dos bens comuns significa trabalhar pelo renascimento de uma classe de juristas verdadeiramente cultos, nos quais as massas populares globais possam confiar, porque guiados por uma visão de mundo centrada principalmente no serviço da polis. Todos os textos jurídicos da modernidade, incluindo muitas fontes do Direito Internacional, falam de liberdade, igualdade, solidariedade, paz. Em Gaza, vemos hoje as consequências de não ter interpretado o Direito de acordo com esses princípios. A leitura fetichista e formalista das normas primárias, pela qual tantos princípios permanecem letra morta, é apenas falsa consciência.
Jornal do Notário: O senhor acompanha de perto o Brasil. Que avaliação faz do modelo notarial brasileiro e que mensagem gostaria de deixar aos notários, especialmente os mais jovens, diante dos desafios éticos e tecnológicos do nosso tempo?
Ugo Mattei: Ao longo desta entrevista, dirigi-me aos jovens notários! Sejam cultos, corajosos, criativos. Sejam incorruptíveis e, como a esposa de César, aparentem ser assim, evitando ostentações desnecessárias de riqueza e poder. Lembrem-se de que o dinheiro é o esterco do diabo e sempre o considerem como um meio para fazer algo bom e significativo, e não como um fim em si mesmo. Leiam muita literatura, acho extraordinariamente instrutiva especialmente a do século XIX russo. Nenhum jurista pode se considerar tal se sua cultura for apenas jurídica. O Brasil terá um grande papel na construção de baixo para cima de um novo sistema jurídico-político centrado nos BRICS, no qual tecnologia, Direito e cultura deverão se fundir no interesse superior de um mundo mais justo e mais livre. Muito depende de vocês. Comecem a se fazer uma pergunta simples: quanto e o que eu sei sobre a Rússia, China, Índia, África do Sul, Etiópia, Emirados Árabes Unidos, Indonésia, Irã e Egito? Esses serão seus primeiros companheiros de viagem na generosa tentativa de criar uma nova ordem jurídica global. Invistam seus recursos para conhecer melhor esses maravilhosos locais de civilização e seus colegas que trabalham lá; não existem apenas Harvard, Yale ou Cambridge, Paris ou Berlim para estudar!!! Em vez de ir tomar aulas com os americanos, aproximem-se do novo mundo que vocês estão ajudando a criar. Ao fazer isso, vocês poderão adquirir coragem e autoridade cosmopolita em suas interpretações.
Fonte: Jornal do Notário


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