A temática da cessão de direitos hereditários sobre um bem específico, antes que a partilha da herança seja efetivada, é um dos pontos mais debatidos e complexos no âmbito do direito sucessório brasileiro. A dúvida sobre a validade, nulidade ou mera ineficácia de tal ato jurídico é recorrente e de suma importância, pois suas implicações podem afetar profundamente os direitos e expectativas de herdeiros e terceiros envolvidos. Compreender a natureza jurídica dessa transação é fundamental para garantir a segurança e a conformidade legal.
Desde o momento da abertura da sucessão, ou seja, com o falecimento do “de cujus”, a herança é tratada pelo ordenamento jurídico como uma universalidade de direito. Isso significa que ela constitui um conjunto indivisível de bens, direitos e obrigações, conforme estabelece o artigo 1.791 do Código Civil. Enquanto o processo de inventário e partilha não for concluído, nenhum dos herdeiros possui a propriedade exclusiva sobre um bem individualizado que compõe esse acervo. O que cada herdeiro detém é uma quota-parte ideal sobre a totalidade da herança, uma fração abstrata do patrimônio deixado.
A cessão de direitos hereditários é um instrumento legítimo, previsto no artigo 1.793 do Código Civil, que permite ao herdeiro transferir sua participação na herança a outra pessoa, seja ela um co-herdeiro ou um terceiro. Para que seja válida, a lei exige que essa cessão seja formalizada por meio de ESCRITURA PÚBLICA. Contudo, a grande questão surge quando o objeto da cessão não é a quota-parte ideal do herdeiro sobre a universalidade, mas sim um bem específico e determinado da herança, como um imóvel, um veículo ou uma joia, antes da partilha.
Nesse cenário, a legislação é clara ao dispor que a cessão, pelo co-herdeiro, de seu direito hereditário sobre qualquer bem da herança considerado singularmente, é ineficaz. É crucial diferenciar “ineficácia” de “nulidade” ou “invalidade”. O negócio jurídico em si não é nulo, ou seja, não padece de vício que o torne inexistente ou inválido desde sua origem. Ele é válido entre as partes que o celebraram (cedente e cessionário), mas sua capacidade de produzir efeitos jurídicos plenos e opor-se aos demais herdeiros e ao espólio fica condicionada a um evento futuro e incerto: a efetiva atribuição daquele bem específico ao herdeiro cedente por ocasião da partilha.
Nesse sentido:
“Art. 1.793. (…)
§2º. É ineficaz a cessão, pelo co-herdeiro, de seu direito hereditário sobre qualquer bem da herança considerado singularmente.
§3º. Ineficaz é a disposição, sem prévia autorização do juiz da sucessão, por qualquer herdeiro, de bem componente do acervo hereditário, pendente a indivisibilidade”.
A razão de ser dessa ineficácia reside na proteção dos interesses dos demais co-herdeiros e na própria natureza indivisível da herança. Enquanto não há partilha, não se sabe qual bem caberá a qual herdeiro, e a cessão de um bem singular poderia prejudicar a justa divisão do patrimônio entre todos os sucessores. Assim, a lei visa evitar que um herdeiro disponha de algo que ainda não lhe pertence de forma exclusiva. A eficácia da cessão de um bem singular, portanto, está suspensa, aguardando a confirmação de que o bem será de fato incorporado ao quinhão do herdeiro cedente.
Ainda que a eficácia da cessão sobre bem singular seja condicionada, o ato pode gerar efeitos relevantes no plano da posse. A jurisprudência pátria tem consolidado o entendimento de que, mesmo com a eficácia suspensa em relação à propriedade, a cessão de direitos hereditários sobre um bem determinado, quando formalizada por escritura pública e sem envolver direitos de incapazes, pode viabilizar a transmissão da posse. Essa posse, inclusive, é passível de tutela jurídica, podendo ser defendida por meio de instrumentos processuais como os embargos de terceiro, aplicando-se, por analogia, o entendimento da Súmula nº 84 do Superior Tribunal de Justiça.
A jurisprudência do STJ já examinou diversas vezes sobre casos de Cessão de Direitos sobre bem determinado, sendo possível extrair diversas lições, como por exemplo:
“RECURSO ESPECIAL. CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. EMBARGOS DE TERCEIRO. CESSÃO DE DIREITOS HEREDITÁRIOS . BEM DETERMINADO. NULIDADE. AUSÊNCIA. NEGÓCIO JURÍDICO VÁLIDO . EFICÁCIA CONDICIONADA QUE NÃO IMPEDE A TRANSMISSÃO DA POSSE. (…) 5 . A cessão de direitos hereditários sobre bem singular, desde que celebrada por Escritura Pública e não envolva o direito de incapazes, não é negócio jurídico nulo, tampouco inválido, ficando apenas a sua eficácia condicionada a evento futuro e incerto, consubstanciado na efetiva atribuição do bem ao herdeiro cedente por ocasião da partilha. 6. Se o negócio não é nulo, mas tem apenas a sua eficácia suspensa, a cessão de direitos hereditários sobre bem singular viabiliza a transmissão da posse, que pode ser objeto de tutela específica na via dos embargos de terceiro. (…)”.
(STJ – REsp: 1809548 SP. Relator: Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA. J. em: 19/05/2020)”
Os riscos para o cessionário que adquire direitos sobre um bem singular são, portanto, consideráveis. Ele assume uma expectativa de direito, mas não a propriedade imediata. Caso o bem não seja atribuído ao herdeiro cedente na partilha, o cessionário poderá ter que buscar compensação financeira ou outro bem, o que pode gerar longos e custosos litígios. Para o herdeiro cedente, a realização de tal cessão sem as devidas cautelas pode acarretar responsabilidades e conflitos com os demais co-herdeiros, comprometendo a celeridade e a harmonia do processo sucessório.
Contudo, a ineficácia pode ser superada em algumas situações. Se todos os herdeiros, de forma unânime e expressa, concordarem com a cessão do bem singular e a ratificarem, ou se houver prévia autorização judicial para o ato, a cessão poderá produzir seus plenos efeitos. Da mesma forma, se o herdeiro cedente for o único herdeiro (herdeiro universal) ou se, futuramente, o bem for efetivamente atribuído ao seu quinhão na partilha, a eficácia se convalida retroativamente (ex tunc). Em todos esses cenários, a formalização adequada e a observância dos ritos legais são cruciais para conferir segurança jurídica ao ato.
Diante da intrincada natureza do direito sucessório e das potenciais armadilhas jurídicas que envolvem a cessão de direitos hereditários sobre bens singulares, a atuação de um advogado especialista em direito sucessório e imobiliário é não apenas recomendável, mas indispensável. Este profissional poderá analisar o caso concreto, orientar sobre os riscos, oportunidades, a melhor estratégia, elaborar os instrumentos jurídicos adequados e representar os interesses das partes, garantindo que a cessão seja realizada com a máxima segurança jurídica e eficácia, protegendo os direitos de todos os envolvidos e evitando litígios futuros.
Fonte: Julio Martins


Deixe um comentário