1. Introdução
 
O controvertido pensamento de Ehrlich em sua obra Fundamentos da Sociologia do Direito trouxe àquela época uma doutrina inovadora e permeada de preconceitos de aplicabilidade do Direito. A pensamento do filósofo consistia que o desenvolvimento do Direito não estava no ato de legislar nem na jurisprudência ou na aplicação do Direito, mas na própria sociedade.
 
Ehrlich entendeu que as teorias jurídicas que reconheciam as leis com a soma de estatutos e julgamentos refletiam uma visão inadequada da realidade jurídica de uma comunidade. Com isso, definiu que normas sociais realmente governam a vida de uma sociedade, que sob certas condições podem legitimamente ser consideradas, pela consciência popular e por advogados, como leis, contrariando a estrutura jurídica de Kelsen.
 
Contudo, Kelsen diverge de Ehrlich, pois entende que o motivo pelo qual as normas jurídicas são observadas não é objeto de uma dogmática ou Teoria do Direito nem sequer decorre de fatos sociais. Ao contrário, toda e qualquer norma jurídica só é válida se imposta e aplicada pela autoridade estatal.
 
A visão de Ehrlich é uma descrição empírica-antropocêntrica do Direito, na qual sustenta uma descrição causal dos fatos. A ideia central nos seus escritos está relacionada à constatação de que o Direito depende de um reconhecimento social, pois toda e qualquer associação humana necessita de normas de conduta. Nesse sentido, o Direito é uma norma social de conduta não restrita aos textos e às prescrições legais.
 
Vale destacar que o neoconstitucionalismo se aproxima em alguns aspectos da Teoria do Direito Vivo de Ehrlich, já que absorção de valores morais e políticos como premissas de julgados e regulação da administração pública, em especial do extrajudicial, traz a possibilidade de criação de normas com perspectivas ideológicas.
 
2. O debate entre Ehrlich e Kelsen
 
De acordo com o pensamento de Ehrlich, a principal função da lei está no fato de criar ordem entre e nas associações com a sociedade. Com isso, entende que as normas podem ser criadas pelas pessoas para regular e coordenar suas próprias ações, quase sempre sem interferência do Estado. O filósofo denomina “fatos da lei”.
 
Kelsen crítica Ehrlich por tentar combinar o que ele considera perspectivas incompatíveis, ou seja parece vacilar entre uma empírica concepção de lei, na qual lei é um fato, que está sujeita às regras de causalidade, e por outro lado a concepção normativa da lei que evade de uma observação empírica e causal.
 
Ehrlich também atento de que práticas sociais podem ser opressivas, com, por exemplo, dominação, relações matrimoniais e escravidão, não são sempre resolvidas internamente. Nesses casos a lei normativa é indispensável, porém de forma complementar[1].
 
Vale destacar que o trabalho de Ehrlich não traz respostas a questões importantes do Direito e a vida prática atual, como quando uma norma deve predominar, ou como proceder quando for balizar o caso concreto. Kelsen elucida que essa perspectiva faz perder a guia das condutas como um todo. Com isso, a sociologia de Ehrlich perde conceituação em diferenciar lei e poder e entre diferentes tipos de normas, legais ou não legais, oficiais ou não oficiais.
 
Na perspectiva positivista, as normas têm sua origem na sociedade e pode muito bem como Ehrlich sustenta constituir uma pré-condição empírica da existência da lei no senso de que a norma legal possivelmente deve o seu conteúdo e sua aceitabilidade a outras normas não legais[2]. A crítica está que a sociologia como uma ciência empírica não possui uma tipologia de normas.
 
Por fim, a obra Fundamentos da Sociologia do Direito de Ehrlich deve ser interpretada como uma soma valiosa à lei criada pelo Estado, seja para permitir a liberdade dos indivíduos em se relacionarem, como, por exemplo, um contrato, o acordo coletivo, testamento, dentre outros, porém não como fonte normativa de direito. Ademais, pode ainda servir como fonte de inspiração do Estado para criar a lei.
 
4. Direito vivo e o neoconstitucionalismo e seus reflexos na regulamentação no extrajudicial
 
É cediço que o momento atual do Direito brasileiro entrará para a história. O Supremo Tribunal Federal tem cada vez mais interpretado e positivado o sistema jurídico nacional. Não é diferente na regulação da atividade do extrajudicial, especialmente quando se trata da autonomia administrativa do notário e registrador, que na prática sua autonomia existe apenas no texto escrito.
 
Não se desconhece o julgado emblemático do Superior Tribunal de Justiça no RMS 7.730/RS[1], na qual reconhece que a independência funcional dos notários e registradores não é ampla, ou seja, permite uma ingerência administrativa e financeira nos serviços notariais e registrais, possibilitando inclusive a alteração contábil. De certo modo tal inferência impacta no planejamento e inovação, uma vez que cria um ambiente de surpresas e incertezas.
 
A Corregedoria-Geral da Justiça do Estado de São Paulo passou a mudar o entendimento acerca da contabilidade das serventias extrajudiciais. Com isso, deixou de lado a preocupação com o serviço público, ou seja, elaboração de indicadores de satisfação dos usuários, instalações das serventias, sistemas informáticos, dentre outras, e passou a incorporar a função de auditores fiscais.
 
Nota-se que falta de comunicação entre os sistemas e suas respectivas simbioses traz um ambiente repleto de incertezas e inseguranças. Com isso, a parte híbrida em Direito Público e Privado, que é a essência do extrajudicial, fica cada vez mais desestimulada.
 
A Corregedoria-Geral da Justiça do Estado de São Paulo foi além de sua função reguladora, contrariando até mesmo o posicionamento da Secretaria da Receita Federal acerca de elisão fiscal, sob o argumento da moralidade administrativa, como se os notários e registradores fossem os profanadores do sistema.
 
É oportuno trazer à baila o Processo Administrativo 2019/8117, no qual foi introduzido novo parecer, que obsta a locação de bens móveis à pessoa jurídica a qual o titular seja sócio ou tenha parentes[2]
 
Ocorre que em caso análogo a Secretaria da Receita Federal autorizou a dedutibilidade nos termos da Consulta 328 – Cosit[3], quando a propriedade imobiliária for de pessoa jurídica em que o sócio seja o titular da própria serventia.
 
Da mesma forma são as isenções fiscais outorgadas por meio de ato ou decisão administrativa. Ressalta-se que diversos estados possuem incluídos nas custas cartoriais fundos de diversas naturezas, e as isenções criam um efeito em cascata, fazendo com que não ocorram os repasses aos entes públicos, prejudicando a coletividade de forma indireta.
 
Em outras palavras, o efeito nefasto da gratuidade repercute em toda sociedade, e a liberdade em prol de conteúdos ideológicos. Ressalta-se que as isenções fiscais devem ser interpretadas na forma do parágrafo 2º artigo 108 do Código Tributário Nacional, ou de decisão jurisdicional que a sustente, sob pena de irregularidade jurídica.
 
É oportuno destacar que a ambiguidade e a possível usurpação de funções sob o pálio da moralidade administrativa não coadunam com o sistema, seja jurídico, econômico ou político. Mais do que um sistema orientador ou regulamentador se assemelha a uma sanção inibidora da livre-iniciativa.
 
Dentre diversos outros casos de positivação do Direito, há um caso de 2014 que determinou a isenção fiscal na emissão de cartas de sentença pelo notariado paulista apenas por decisão administrativa[4], ou seja, o administrador público, com base no neoconstitucionalismo, incute um permissivo amplo e discricionário, o que pode não raras vezes causar arbitrariedades. Veja que a fundamentação foi de conteúdo ideológico, a saber: “Vale dizer, não concordo que se prestigie somente o incremento no lucro dos notários. Parece-me que, ao assumir os bônus decorrentes da delegação de atribuição, as serventias devem arcar, da mesma forma, com os ônus”.
 
Nota-se que a emissão das cartas de sentença judiciais se deu para desafogar o Poder Judiciário, e não o substituir de suas funções. Assim, trata-se de uma opção dada ao usuário, razão pela qual novamente toda a sociedade ricos e pobres pagam pela gratuidade, uma vez que se deixa de recolher os fundos devidos aos atos praticados sob o manto da gratuidade.
 
Constatada essa realidade, questões externas parecem estar influindo no sistema do Direito, o qual se encontra extremamente permissivo às influências políticas e econômicas. Com isso, não se deve trabalhar um sistema aberto, mas, sim, fechado, para que se opere dentro dele próprio, já que a análise se inicia no ambiente e depois se analisa o justo e injusto.
 
Acerca do justo e injusto, é importante anotar as lições de Aristóteles, que há cerca de 2.500 anos já ensinava como lidar com o justo e o injusto. De acordo com o filósofo, a Justiça é o estado que torna os indivíduos predispostos a realizar atos justos e que os faz agir justamente e desejar aqueles atos[3].
 
Por fim, o ativismo regulatório pode tomar proporções de arbitrariedades, já que nas condições postas não é possível exercer a mediania ou a prudência ao bem, incutindo um sistema à sanção presumida como regra da atividade.
 
4. Conclusão
 
A liberdade é o princípio orientador e fundamentador de toda a estrutura jurídica, econômica e social de um Estado Democrático de Direito. Contudo, os notários e registradores são submetidos a um excessivo conjunto de regramentos que os torna desiguais a outros pretensos legitimados da atividade notarial e registral. Na essência do artigo 236 da Constituição Federal e do artigo 21 da Lei 8.935/94, a autonomia administrativa e financeira é reduzida a um escrito sem efetividade, ou só quando conveniente.
 
No entanto, havendo condutas dolosas ou culposas em reiterados descumprimentos da lei, deve haver intervenção estatal para inibir tais práticas.
 
Veja, por exemplo, o Imposto Sobre Serviços (ISS). A tributação é feita como pessoa jurídica, diferentemente de outros profissionais do Direito que possuem faturamento maiores e são tributados como pessoa física, ou seja, um valor fixo e não baseado no faturamento. Outro tributo é o Imposto de Renda de Pessoa Física (IRPF), tratado com a maior alíquota sem possibilidade de opção a regimes tributários que propiciam uma maior eficiência do capital.
 
Como se não bastasse, a tributação sempre quedando para pagamento de maior alíquota ou base de cálculo, o notário e registrador agora não pode mais se servir da elisão fiscal, mesmo com amparo de decisões da Secretaria da Receita Federal. Portanto, as liberdades de notários e registradores são cada vez mais tolhidas, chegando ao ponto de desestimular e frustrar todas as narrativas de defesa das instituições democráticas até então feitas pelos delegatários.
 
Nunca é demais lembrar que a atividade extrajudicial passa por um momento de estresse, onde diversos entes da atividade econômica e política pretendem a desestabilização, especialmente para retirar suas competências até então construídas pela história.
 
É oportuno salientar que os pretensos legitimados tentam absorver as competências sob a alegação de serviços burocráticos. Nossa estrutura legal sempre manterá os registros de propriedade, lavratura de instrumentos com força de escritura pública, nascimentos, cadastro de bons pagadores (protesto invertido), dentre outras continuarão a serem feitos.
 
Vale lembrar que seria o maior de todos os equívocos entender que, se houver perda de competências aos pretensos novos legitimados, esses seriam submetidos a toda essa estrutura de regramentos administrativos aos quais os delegatários são atualmente submetidos, seja tributários, penais, civis e administrativos.
 
Portanto, em um momento de constantes ameaças de sobreposição de sistemas, seja o econômico sobre o Direito ou vice e versa, o extrajudicial precisa ser fortalecido, a fim de poder fazer frente a essas ameaças, sob pálio da liberdade e igualdade.
 
Por fim, a Teoria de Direito Vivo de Ehrlich de que a regra social faz a norma, portanto, sem a higidez estrutural de Kelsen, se faz presente de certa forma no extrajudicial, haja vista as incertezas regulatórias. No cenário atual, a delegação do artigo 236 da Constituição Federal é o contrato administrativo mais violado pelo Estado, e o que por sua vez mais lhe traz benefícios, seja econômico ou legal.