Apesar da cultura testamentária não ser popular no Brasil, durante a pandemia da Covid-19 o interesse das pessoas pelo tema aumentou de forma significativa, e é por essa razão que o debate sobre as formas testamentárias e sobre o testamento biológico é tão atual e tão necessário.
 
Segundo os ensinamentos de Zeno Veloso, “o testamento é um negócio jurídico pelo qual uma pessoa dispõe de seus bens, no todo ou em parte, ou faz determinações não patrimoniais, para depois de sua morte”. Ou seja, trata-se de um documento capaz de expressar a autonomia da vontade do testador para regular os efeitos do seu patrimônio, ou até mesmo extrapatrimoniais, para depois de sua morte.
 
Já o testamento biológico, também conhecido como testamento vital, é um documento em que a “pessoa determina, de forma escrita, que tipo de tratamento ou não tratamento deseja para a ocasião em que se encontrar doente, em estado incurável ou terminal, e incapaz de manifestar a sua vontade”.
 
Nota-se, portanto, uma diferença muito grande entre os dois institutos, igualmente chamados de testamento. No testamento biológico, os efeitos das disposições testamentárias não estão condicionados ao evento morte, como ocorre no testamento simples. O objetivo do testamento biológico é exatamente regular a vida do testador em um momento de vulnerabilidade, que ocorre quando este se encontra doente e incapaz de manifestar a sua vontade.
 
Por essa razão é que se questiona: seria o testamento biológico uma forma de testamento? Valendo-se dos conceitos aqui expostos, não é possível concluir que estariam os dois documentos abarcados pelo conceito de testamento. Isso porque, ao aceitar que o testamento é um documento que estabelece efeitos patrimoniais e extrapatrimoniais para o pós-morte, estaríamos excluindo do conceito um documento que regulamenta as condições do manifestante ainda em vida, que é o caso do testamento vital.
 
Para o professor Flávio Tartuce, a classificação jurídica devida ao testamento vital é a de “ato jurídico stricto sensu unilateral que pode produzir efeitos, uma vez que seu conteúdo é perfeitamente lícito”. Dessa forma, apesar de o testamento biológico não ser tecnicamente um testamento, a sua validade e a sua eficácia estão condicionadas aos requisitos do artigo 104 do Código Civil de 2002, bem como o binômio da beneficência e não maleficência presente no artigo 15 do referido dispositivo.
 
Para que isso seja possível, em primeira análise, é preciso que o objeto da manifestação de vontade seja lícito. As cláusulas do testamento vital, para serem consideradas válidas, precisam estabelecer regras de proteção à dignidade do paciente terminal, sem que isso encerre antecipadamente sua vida (eutanásia), ou prolongue demasiadamente o seu sofrimento (distanásia).
 
Assim, conclui-se que a autonomia privada para a elaboração de cláusulas testamentárias, nos casos de testamento vital, esbarra nos conceitos da eutanásia e da distanásia, que são condutas vedadas pelo ordenamento jurídico brasileiro. Significa dizer então que a validade e eficácia de um testamento vital só pode ser discutida em casos de ortotanásia, nos quais não se empregam técnicas terapêuticas inúteis ao prolongamento da vida, garantindo a dignidade do paciente em estado terminal e de sua família.
 
A concretização da ortotanásia por intermédio das regras do testamento encontra respaldo jurídico na Resolução 2.217/2018 do Conselho Federal de Medicina. No entanto, na legislação vigente ainda não existe nenhuma lei federal para tratar sobre o tema. Como reforço argumentativo, utiliza-se o enunciado nº 528 da V Jornada de Direito Civil, que determina ser “válida a declaração de vontade, expressa em documento autêntico, também chamado de testamento vital, em que a pessoa estabelece disposições sobre o tipo de tratamento, ou não tratamento, que deseja, no caso se de encontrar sem condições de manifestar a sua vontade”.