(Princípio da unitariedade da matrícula -Sétima parte)
 
662.  A unitariedade registral ou tabular, como estamos a ver, apenas de modo tendencial pode estimar-se especulativa da unicidade física de um imóvel (gleba ou lote, não importa), até porque essa unidade imobiliária física, para logo,  é resultante de perspectivas diferenciadas: uma gleba, por exemplo, é, sob dando ponto de vista, somente um lote de uma gleba maior; a unidade de um lote, por sua vez, pode tanto ser o consequente de uma segregação, quanto de uma agregação, cēt.
 
Neste passo, cabe observar que o fim natural de um imóvel −por mais a essência desse imóvel importe em limitações naturais− é um fim não natural, ou melhor dito: os fins de um imóvel são-lhe não os imanentes a esse imóvel, mas transcendentes deles e submetidos ao ditado ou almejado por outros entes, na medida em que, por sua constituição mineral, o imóvel há de servir a todos os entes biológicos; por sua potencialidade biológica, a todos os animais; e, por derradeiro, em seu todo, põe-se a serviço do homem, que o pode usar para assentamento, culto (templos, cermitérios), cultivo, lazer, garantia de sua liberdade, de desenvolvimento político (o território é não só fator importante na definição das boas praxes do urbanismo, mas decisivo para definir a soberania política) e até para a forma de sua mais efetiva defesa (pense-se, brevitatis causa, nas ideias de “muralhas” ou de “fronteiras”).
 
663.  A unitariedade registral, por mais responda, à partida, a uma tendência de extensão contínua do imóvel a que se refira, constitui-se, em rigor, pela contingência das vicissitudes dos fins intencionais ou mesmo de uso efetivo desse imóvel.
 
Essa unitariedade tabular é tanto descritiva (ou seja, a que corresponde a uma descrição da continuidade física −que pode, porém e exceptivamente, até faltar!− da extensão do imóvel objeto), quanto de atração jurídica, sob o modo convocatório dos fatos, atos e negócios jurídicos referentes ao imóvel descrito.
 
664.  Ao lado, porém, destas considerações teóricas, tem-se que o direito posto brasileiro não se imunizou de problemas de compreensão ao tratar da “unificação” no art. 235 da Lei de Registros Públicos e ao distingui-la da ideia de “fusão” (art. 234).
 
Designa-se fusão (registral) −segundo a normativa brasileira de regência− a instituição de nova matrícula que albergue “dois ou mais imóveis contíguos pertencentes ao mesmo proprietário” (art. 234), contanto que esses imóveis constem de “matrículas autônomas”, que, então, devem encerrar-se.
 
Trata-se, pois, com a fusão registral de abrir-se nova matrícula, cujo objeto sejam imóveis contíguos de domínio tabular de um mesmo proprietário (ou de mesmos comproprietários, supõe-se), desde que esses imóveis já estejam matriculados.
 
A mesma lei sob exame −a de n. 6.015− dispõe, em seu art. 235, acerca da unificação (registral), que divide em três espécies:
 
(i)    a de “dois ou mais imóveis constantes de transcrições anteriores a esta Lei, à margem das quais será averbada a abertura da matrícula que os unificar” (inc. I);
 
(ii)   a de “dois ou mais imóveis, registrados por ambos os sistemas, caso em que, nas transcrições, será feita a averbação prevista no item anterior, as matrículas serão encerradas na forma do artigo anterior” (inc. II);
 
(iii) a de “dois ou mais imóveis contíguos objeto de imissão provisória na posse registrada em nome da União, Estado, Município ou Distrito Federal” (inc. III).
 
Comecemos por sublinhar uma distinção meramente formal: a fusão, no texto da lei, diz respeito a imóveis todos já matriculados; a unificação, a imóveis objeto de transcrições, ou a imóveis que tenham sido objeto de registros tanto de ainda vigentes transcrições, quanto de matrículas.
 
Mas essa distinção não é a que parece ostentar maior relevo. A letra dos incisos I e II do art. 235 da Lei n. 6.015 chama, sobretudo, atenção por omitir a ideia de contiguidade dos imóveis a que se refira a unificação. Vale por dizer, que a unificação tabular, segundo o texto legal, já não responderia, nestas hipóteses dos dois primeiros incisos do art. 235, à continuidade física dos imóveis. (Realce-se que, diversamente, o inc. III do mesmo art. 235, acrescentado pelo art. 4º da Lei n. 12.424, de 16-6-2011, exige a contiguidade dos imóveis objeto da unificação relativa a prédios imitidos, provisoriamente, na posse da União, dos estados, do Distrito federal ou dos municípios).
 
Cabe indagar: omitiu-se, por implícita, nos dois primeiros incisos do art. 235, a exigência de contiguidade dos imóveis objeto da unificação? Ou, ao revés, como o faria até robustecer o texto do inciso III do mesmo art. 235 (ao mencionar o requisito da contiguidade), a diferença entre fusão e unificação registrais não é meramente formal −interna ao registro−, senão que se caracteriza pelo modo de ser de sua mesma fonte exterior (os imóveis, que, para a unificação, não necessitariam ser contíguos)?
 
Todavia, se a diferença entre a fusão e a unificação (nas hipóteses dos incs. I e II do art. 235 da Lei n. 6.015) estiver, para que se proceda à unificação, na dispensa da contiguidade dos imóveis objeto, restaria, então, discutir por qual obscuro motivo essa dispensa não abrangeria imóveis já matriculados.
 
665.  A chave diferencial entre ambos os conceitos −fusão e unificação− foi objeto de interessantes debates ao largo de mais de uma década após a vigência da Lei n. 6.015, de 1973 (normativa que passou a vigorar em janeiro de 1976).
 
Embora, de logo, àquela altura, uma corrente doutrinária. com forte prevalência, se haja inclinado em favor, no substancial, da identidade desses conceitos de fusão e unificação nos registros, apenas admitindo sua distinção no plano da técnica das inscrições (a fusão referindo-se só a matrículas; a unificação, a transcrições e a registros sob a regência mista matrícula-transcrição), o debate agudizou-se com a invocação da mens legislatoris, por indicar-se uma possível conveniência de solucionar um problema próprio da realidade predial de Brasília.
 
O tema empolgou-se, sobretudo, no XIII Encontro de Oficiais de Registro de Imóveis do Brasil, realizado na cidade do Rio de Janeiro, em setembro de 1986, e terminou por abonar a posição amplamente majoritária: o suposto essencial da fusão e da unificação no registro é o da adjunção de imóveis, e imóveis não se agregam sem o atributo da continuidade extensiva, sem, pois, a contiguidade do que se junta.
 
Concluiu-se em que −assim se fez ver na ocasião (cf. “Da unicidade matricial”, in Revista de Direito Imobiliário ns. 17-18, janeiro-dezembro de 1986)−
 
“A unitariedade exige que a matriz abranja a integralidade do imóvel, e que a cada imóvel corresponda única matrícula. A agregação de prédios contíguos (fusão e unificação, arts. 234 e 235 da LRP) supõe a unidade social ou econômica do todo, formado com a anexação dos imóveis antes autônomos, de sorte que não se vislumbra exceção à rígida concepção de unitariedade perfilhada pelo direito brasileiro.”
 
Essencialmente o vetor da fusão e da unificação está na extensão contínua do objeto imobiliário, de maneira que, nos incisos I e II do art. 235 da Lei n. 6.015/1973, a falta de expressa referência à contiguidade dos prédios a agregar seria sugestiva de uma falsa lacuna.
 
A despeito desta propensão doutrinária, é força admitir que a só distinção mere formalis entre fusão e unificação, na Lei n. 6.015, não deixa de ser pouco justificável ou nada.
 
Com admitir, entretanto, a diferença entre fusão e unificação pela exigência ou dispensa da contiguidade dos imóveis a agregar estar-se-ia a reconhecer, no direito brasileiro, a concorrência do fólio pessoal. Este é o consequente de abrigar-se a tese de imóveis sem contiguidade −ou seja, de um prédio sem extensão contínua− poderem exprimir-se em uma só matrícula.
 
Não parece ser esta, em caso algum, a intenção quer do legislador de 1973, quer da mens legis da Lei n. 6.015, de sorte que se fortificou a tese que beneficia a necessária exigência de contiguidade para todas as unificações tabulares.