(O registro de imóveis e os títulos materiais inscritíveis – Oitava parte)
 
719. Consiste a outorga notarial na expressa manifestação –rectius: instrumentação– do consentimento dos clientes quanto aos atos ou negócios objeto da documentação tabelioa. É dizer que a outorga é a exteriorização do consentimento com que se criam, modificam-se, transformam-se, conservam-se ou extinguem-se direitos.
 
A outorga não é, todavia, o próprio consentimento –pois este é um ato volitivo interno–, se não que é, isto sim, a externação do consensus no instrumento público, ou seja, a expressão (hoje) verbal do voluntário; nem sempre se entendeu, contudo, necessária a literalização do consentimento, porque, ao lado de uma outorga que se indicava subscrita pelas mãos –per manus scripta–, outra havia consistente em tocar meramente o documento, manufirmatio, e outra ainda, em que os documentos apenas se selavam.
 
A outorga notarial, portanto, externa a vontade dos clientes para interná-la num documento, e, não fora essa internalização, o consentimento estaria a fadado a supor-se ou declarar-se fora da escritura pública, o que, tal o fez ver Rodríguez Adrados, suprimiria muito do valor e da eficácia do testemunho qualificado do notário.
 
720. O consentimento é um movimento interno voluntário, sucessivo do conhecimento intelectual, uma sucessividade necessária porque a vontade não pode dirigir-se a um fim (ou bem) sem antes conhecê-lo sob o modo de uma verdade.
 
O bem e o verdadeiro são transcendentais e convertíveis entre si: a verdade é um bem, porque, se não o fosse, não seria apetecível (bem é o que todos apetecem); e o bem é de alguma sorte a verdade, sob pena de não ser inteligível –obiectum intellectus practici est bonum ordinabile ad opus, sub ratione veri (S.Tomás de Aquino, Suma teológica, I, q. 79, art. 11, ad 2um).
 
Ora, o consentimento é a adesão da vontade ao precedente conhecimento intelectual de um dado fim (aprehensio finis), ao qual se dá o concurso dos meios de sua realização. Desta maneira, não é o consentimento que concede valor à verdade, senão que, muito diversamente, é a verdade que confere valor ao consensus.E porque ao fim que lhe é proposto pela inteligência a vontade adere sob certo modo de aprovação afetiva (approbation affective -Odon Lottin), pode compreender-se o motivo pelo qual essa adesão se designa con-sentimento (consensus), indicando a amorabilidade do bem a que se destina a vontade.
 
O notário deve, pois, captar esse consentimento à maneira de algo sucessivo à formação da intentio ou finalidade, cuja existência e conteúdo ele trata não só de aferir, mas também de esclarecer ou iluminar por meio de sua diligência investigativa e de sua autoridade magisterial. É que não se cuida aí de verificar um consensus qualquer, mas de avaliar uma afeição ou consentimento dirigido a uma determinada e singular intenção, uma adesão voluntária isenta de erros, imunizada de enganos, alheia de violências. Ora, à falta de adequado conhecimento intelectivo do fim, não segue consentimento possível quanto ao bem correspondente; à míngua de liberdade, tampouco; o voluntário perfeito é aquele em que se juntam a plena advertência do fim e o pleno consentimento da vontade.
 
721.  Antes mesmo de incursionar pelo tema da unidade do ato notarial –ou, se se quiser, da unidade do consentimento notarial–, cabe aqui distinguir entre a atualidade e a virtualidade do consensus.
 
Atual é a decisão da vontade no momento em que se aprova uma determinada ação; calha que uma dada vontade negocial pode atualizar-se, no entanto –e isto é frequente–, num tempo relativamente distante da externação notarial desse consentimento. Ou seja, consente-se num negócio (p.ex., numa compra e venda), e este consentimento é então atual; mas só se exprime instrumentalmente esta adesão da vontade em período posterior (ainda que o seja num período estreito). Ao tempo desta expressão no documento notarial, já não poderá dizer-se que o consentimento relativo ao negócio persista em ser atual, mas ele, sim, pode perseverar virtualmente, porque, cessado embora o consensus em ato, não deixa, todavia, de influir em sua instrumentação consequente, em sua própria externação. Vale dizer, numa perspectiva prático-prática, que, mais ou menos frequentemente, o notário capta o consentimento dos clientes e, adiante, textualiza a escrita que corresponda, colhendo a outorga algum tempo depois da captação do consensus; já aqui, é do comum das coisas, há mera outorga e não mais uma repetição atualizada do consentimento; ou seja, há o ato externo correspondente ao consensus, sem que se ponha a necessidade de reiterar, para atualizá-la, a adesão interna que, salvo manifestação em contrário, deve supor-se não só perseverante (voluntário habitual), mas influente na externação produzida (voluntário virtual).
 
722. Em palavras de Núñez Lagos, o consensus é a medula da escritura pública, é a decisão pela qual se firma o desejado pelos clientes, e a outorga é, de par com a autorização, a culminância da praxis notarial.
 
Mas não sendo um fato simples (Giénez Arnau), senão que complexo, nem sempre é possível na escritura pública uma unidade absoluta de ação: p.ex., a unidade do consentimento (adesão subjetiva a um fim) com a outorga (manifestação objetiva dessa adesão). Essa unidade absoluta é antes própria dos atos unilaterais e, por motivos de prudência, é muitas vezes imposta por lei quanto à lavratura de testamentos.
 
Disse Núñez Lagos que a  unidade da ação notarial é um suposto da fé pública, de maneira que o que esteja fora dessa unidade está fora do espectro da fé notarial. Mas cabe perguntar em que consiste essa unidade de ação. Poderia pensar-se que ela empolgaria a continuidade temporal e espacial da leitura, do consentimento, da outorga e da autorização notariais (haveria, pois, uma compresença pessoal ininterrupta e concomitante no tempo e no lugar). Já se adiantou, entretanto, que não raro persiste o consensus validamente de maneira virtual, de tal sorte que à outorga se procederia em tempo diverso do consentimento. Em vez, pois, de aqui exigir uma unidade solene e sacramental, poderia admitir-se o que Núñez Lagos denominou unidade de contexto, e, ao lado da unidade de ato substantivo ou unidade de coexistência negocial (em que o negócio se realize e produza efeitos quanto a todos seus sujeitos), reconhecer-se uma distinta unidade de ato formal, scl. uma unidade de documentação ou de imediação entre notário e comparecentes, discriminando-se, pois, o actum e o dictum, de maneira que se dispense devam todos os intervenientes numa escritura estar, temporal e espacialmente, compresentes, podendo prestar-se consentimento e prestar-se outorga de maneira separada, sucessiva. Assim, diversamente da exigência da unidade leitura-consentimento-outorga-autorização, deverá impor-se apenas a unidade temporal e espacial (num tempo único, é dizer, contínuo e não per saltum, e num só lugar) do binômio outorga-autorização, de modo que sejam unitários no tempo e no espaço (i) o aperfeiçoamento negocial do texto instrumentado (mediante a outorga) e (ii) sua completeza com a autorização notarial.
 
Assinale-se que esta unidade de ato formal é suficiente para garantir a integridade do instrumento, porque, bem o observa Rodríguez Adrados, ela impede toda modificação entre a outorga (enquanto exprime o consensus num ato ou negócio singulares) e a autorização pelo notário, autorização que é a fórmula de perfeição (completio) do instrumento notarial, aquilo que torna o documento completum et absolutum.
 
723.  Esta atenuação da rigidez da unidade sacramental do ato molda-se à realidade das coisas, certo e notório que muitas vezes é difícil reunir, num só tempo e lugar, os vários intervenientes num negócio (cf. Carlos Pelosi), de sorte que o temperamento desta exigência de unicidade viabiliza as outorgas sucessivas (p.ex., o negócio entre ausentes, a estipulação em favor de terceiros), até mesmo possíveis não só em tempos e locais diversos, mas também por meio de escrituras diferentes (escrituras de adesão, de retificação, de ratificação –já se disse que a unidade do ato não se rompe com a pluralidade de seus papéis). O pilar dessa elasticidade é a confiança na função notarial.
 
Se por unidade cronológica da escritura deve entender-se um tempo razoável, é dizer, o tempo que as circunstâncias recomendem para que se efetivem as outorgas, segundo as circunstâncias –sempre variáveis–e a prudente direção do notário (cf. Carlos Emérito González), não é sensato, contudo, protelar a conclusão do ato ao ponto de não se ter uma garantia de preservação do consensus virtual, nem –este parece o critério clave– fazer da ruptura da unidade (local e temporal) uma prática rotineira, favorecendo o laxismo da pluralidade da ação notarial.
 
Prudentes lições, a propósito, deixou ditas Giménez Arnau, ao observar que “la unidad del acto es una forma de bien hacer”, ainda que não seja um requisito essencial da escritura. Por isto, prossegue o autor, “la interpretación laxa de la unidad del acto deba reservarse para los casos en que los propios hechos ofrezcan una justificación: sin descender al terreno de lo anecdótico citaremos los casos que más frecuentemente se presentan lo mismo en los grandes despachos que en las notarías de poco trabajo: herederos enemigos entre sí, que no quieren designar apoderados; otorgamiento urgente, con hora convenida para la firma, si uno de los citados la hora convenida por accidente o enfermedad que no le impide firmar en su casa o en sanatorio; parientes que tienen a su cargo un negocio que no pueden abandonar simultáneamente…”.