(Princípio da legalidade -Vigésima-oitava parte)
Des. Ricardo Dip
478. Se percorrermos, no território da dúvida registral, a correspondente doutrina brasileira e os julgados dos tribunais, facilmente poderemos conferir o estendido uso da expressão “procedimento” conjugada com o termo “dúvida”: procedimento de dúvida.
Neste sentido, mencionemos, a título apenas ilustrativo, brevitatis studio, o fato do próprio título de recente e interessante livro de João Pedro Lamana Paiva: Procedimento de dúvida no registro de imóveis, bem como um anterior estudo de Eduardo Sócrates Sarmento e a comunicação que Benedito Silvério Ribeiro e eu apresentamos ao XV Encontro dos Oficiais de Registro de Imóveis do Brasil (Vitória,1988). Prevalece aí o uso do termo “procedimento”.
Diversamente, contudo, Serpa Lopes e Afrânio de Carvalho referiram-se ao processo de dúvida, e Ademar Fioranelli transitou entre os dois vocábulos: processo e procedimento de dúvida.
Qual deles deve preferir-se? Ou acaso o uso de um ou outro dos termos −processo, procedimento− não traia uma caracterização essencial, o quod quid sit da dúvida registrária.
479. Por um primeiro aspecto, a designação processo −empolgando o escopo de um juízo de jurisdição em sentido estrito (isto corresponde ao muito largamente admitido conceito de Chiovenda, para quem o processo diz respeito à atuação degli organi della giurisdizione ordinaria, órgãos que, por mais importantes sejam, não esgotam, porém, a potestade jurisdicional do Estado)−, acarretaria a conclusão de que a dúvida registral não poderia designar-se processo, uma vez que, apreciada e decidida, embora, por juízes, não se caracteriza como veículo de jurisdição ordinária (scl., contenciosa).
Disto resultaria a redução da dúvida registral ao plano do mero procedimento −a saber, um conjunto de formas sucessivas e regradas que, de algum modo, podem exteriorizar um processo (este, diferentemente, corresponde a um fim decisório próprio da jurisdição stricto sensu) ou um conjunto de atividades administrativas e legislativas, de tal sorte que somente se poderiam justificar as expressões “processo administrativo”, “processo legislativo”, “processo de dúvida”, à maneira de um tropo, de uma linguagem figurada, e nunca em sentido próprio.
480. Alguns motivos parecem, entretanto, legitimar o uso do termo processo para a referência à dúvida registral.
Para logo −nos limites do direito brasileiro atual−, não é de todo descartável a circunstância de a Constituição federal de 1988, no inciso LV de seu art. 5º, referir o termo processo tanto ao judicial, quanto ao administrativo. Não diversamente assim se lê na Lei n. 9.784/1999 (de 29-1) −normativa que regula o processo administrativo no âmbito federal.
Tem-se entendido que, no Brasil, com o Código político de 1988 −e esta é a razão pela qual mudei minha posição sobre o tema−, outorgou-se ao processo administrativo “a mesma índole e o mesmo alcance do processo judicial”, atendendo-se a antigo pleito dos administrativistas de que se conferisse àquele (processo administrativo) “as configurações, inspirações, principiologia e segurança do processo jurisdicional” (assim o dizem Sérgio Ferraz e Adilson Abreu Dallari, no muito interessante Processo administrativo −do qual livro também recrutei a citação anterior lançada neste parágrafo).
Em síntese, a existência ou não da garantia do exercício de contraditório e de ampla defesa é a nota com que, a meu ver, devem distinguir-se, de um lado, o processo, e, de outro, o mero procedimento.
481. Ora, a dúvida registral (enquanto a consideremos sob o aspecto processual) consiste numa relação jurídica em que se põe à mostra, logo à partida, uma contradição de interesses, fundamentos e fins singulares entre o registrador e o solicitante de uma dada inscrição.
O registrador oficia, em linha de princípio, na posição de defesa dos interesses de todos os terceiros, ao passo que o pretendente da inscrição singular atua em seu aparente primeiro e direto proveito. Neste quadro se evidencia um dos aspectos do relevo social da função do registrador, custódio da segurança jurídica.
O status de contraditoriedade não se dá apenas no campo inaugural da suscitação da dúvida, senão que se estende à sua fase judiciária, tanto no que concerne ao direito de impugnação, quanto no que corresponda ao de produção de alguma prova (cf. arts. 200 e 201 da Lei n. 6.015, de 1973) e ao âmbito recursal.
Neste último capítulo, a costumeira recusa de admitir-se a legitimidade recursória do registrador parece deva ser melhor e mais detidamente considerada, para avaliar-se até mesmo se isto não implicaria ofensa da garantia do contraditório. O processo da dúvida registral no Brasil observa um modelo híbrido, porque é, num dado aspecto, processo de parte (assim o designaria a terminologia italiana: processo di parti), porque se inaugura pela rogação do apresentante do título a registro, que além de deter a faculdade de desistir do processo, possui alguma disponibilidade sobre a matéria a dirimir-se; mas, por outro aspecto, o juiz não requalifica o título, senão que revê a atuação registral, de maneira que está, em parte, adstrito aos lindes da rogação do apresentante, e, noutra parte, obrigado a exercitar, ex officio, a fiscalização pro societate.
De todo o modo, parece agora preferível falar-se em processo de dúvida registral, e não mais em que seja ela mero procedimento.
482. Indicou-se acima uma reduplicação, ao referir-se à dúvida, enquanto sob o aspecto processual.
O termo “dúvida”, no território do direito registral, possui, além de sua significação de “processo”, duas acepções substantivas.
Diversamente do que se passa no uso comum e até mesmo na terminologia filosófica (é dizer, especificamente, no vocabulário próprio da Gnosiologia, que é uma parte da Metafísica), “dúvida” não é, para o campo registral, um estado de incerteza, um status intelectual −tal já o disse eu noutra parte− de sobrestamento da adesão a um de dois juízos opostos entre si, ora à maneira hipotética (que, em rigor, pois, já não é verdadeiramente uma dúvida, senão que aparenta sê-lo: paradigma desta “dúvida fingida”, antecipação de teses adversas a uma dada conclusão, é a disputatio escolástica), ora à da dúvida dóxica (que, a exemplo da opinião, é um estado incompleto de conhecimento, mas que tem a virtude de ser o resultado de um labor intelectual), ora à da dúvida própria da insciência, ora à da dúvida metódica ou exorbitante (como a do subjetivismo cartesiano), ora, ainda, a dúvidas de expressão etc. (vidē meu pequeno comentário ao art. 198 na Lei de registros públicos comentada, coordenação de José Manoel de Arruda Alvim Neto, Alexandre Laizo Clápis e Everaldo Augusto Cambier).
A dúvida registral é, em vez disto que expressa o termo “dúvida” na acepção comum e na gnosiológica, a afirmação de um estado de certeza, já ao modo de um juízo consequente de um singular discurso prático (equivale a dizer, a conclusão desse discurso, implicando a denegação do registro solicitado), já à maneira da fundamentação −das premissas− de que se infere aquele consequente.
Ou seja, trata-se aí tanto de uma objeção, quanto dos fundamentos que alicerçam essa objeção (isto é, juízo de qualificação negativa). Saliente-se que, com rigor, trata-se mesmo de objeção, um juízo de controle de legalidade e validade que se expede propter officium e, como ficou sobredito, na posição de salvaguarda dos interesses da segurança jurídica ou, por outro ângulo, dos terceiros assegurados.
É certo que uma parcela dessa aferição propter officium suporta alguns limites de disponibilidade impostos pela rogação (isto se verá a seu tempo), mas esses limites nunca devem alçar-se ao ponto de inibir a custódia da segurança jurídica como atuação oficial (operatio ex officio).