Há pouco menos de um ano, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Recurso Extraordinário nº 898.060, fixou a tese jurídica da multiparentalidade: “A paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com os efeitos jurídico próprios.”
Desde então, várias outras decisões seguiram o mesmo caminho, inaugurando uma nova realidade jurídica no Brasil: a possibilidade de coexistência da filiação biológica e socioafetiva.
Neste cenário, de constante evolução no direito das famílias, a figura do notário assume especial relevância, pois sua atuação imparcial, dotada de fé pública e profundo conhecimento jurídico, acrescida de sua forte proximidade com os anseios e problemas reais da sociedade, o torna um verdadeiro aliado na concretização dos direitos dos cidadãos.
E, diante da crescente tendência de extrajudicialização de procedimentos como forma de desafogar o Judiciário e dar uma resposta mais célere às demandas da sociedade, sem, contudo, perder a segurança jurídica, os serviços notariais têm, gradativamente, aumentado sua importância.
Assim, pensar e discutir sobre novos atos que possam ser extrajudicializados se faz essencial para tornar a justiça cada vez mais célere, especialmente nas questões de direito das famílias, que evoluem rapidamente acompanhando os fatos sociais.
Por este motivo, neste artigo, propomos discutir a possibilidade de reconhecimento da filiação biológica e socioafetiva pelos herdeiros em escritura pública de inventário e partilha, demonstrando as razões pelas quais entendemos ser este procedimento perfeitamente viável.
Multiparentalidade: filiação biológica e filiação socioafetiva
O Código Civil de 1916 primava as relações consanguíneas, oriundas do casamento, para fins de configuração do estado de filiação, negando a existência de outras filiações, oriundas de relações fora do vínculo matrimonial. O Código Bevilacqua fazia expressa distinção entre os filhos legítimos, frutos do casamento, e os filhos ditos ilegítimos.
Esta desigualdade e manifesta injustiça foi devidamente afastada pela Constituição Federal de 1988, que em seu artigo 227, §6º, reconheceu a igualdade entre as filiações:
§ 6º Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.
O texto constitucional de 1988 superou o paradigma do casamento e, assim, afastou a distinção entre filhos legítimos e ilegítimos prevista no Código Civil de 1916, que, salientamos, desconsiderava tanto o critério biológico quanto afetivo para configuração do estado de filiação quando centralizava a presunção baseada no matrimônio.
Além de afastar a distinção entre filhos, a Carta Magna de 1988 inaugurou uma nova concepção de família, baseada no afeto, reconhecendo a pluralidade de relações familiares e não apenas a família fundada no casamento. O indivíduo foi elevado à centralidade do ordenamento jurídico-político, ou seja, não é mais o indivíduo que existe para a família e para o casamento, e, sim, a família e sua pluralidade de formas que existem para seu desenvolvimento pessoal. O texto constitucional inaugurou o direito à busca da felicidade, implícito no artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal, como princípio basilar do direito das famílias.
Nesta linha, é que o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Recurso Extraordinário nº 898.060, em 21/09/2016, fixou a tese jurídica da multiparentalidade:
“A paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com os efeitos jurídico próprios.”
De acordo com relator, o Ministro Luiz Fux, “a paternidade responsável, enunciada expressamente no art. 226, §7º, da Constituição, na perspectiva da dignidade humana e da busca pela felicidade, impõe o acolhimento, no espectro legal, tanto dos vínculos de filiação construídos pela relação afetiva entre os envolvidos, quanto daqueles originados da ascendência biológica, sem que seja necessário decidir entre um ou outro vínculo quando o melhor interesse do descendente for o reconhecimento jurídico de ambos.”
Desta forma, pode-se dizer que não há mais que se falar em hierarquia entre paternidade biológica e socioafetiva. A parentalidade decorre tanto do direito fundamental à busca da identidade genética, como emanação do direito de personalidade, como também decorre do afeto enquanto critério para reconhecimento da posse do estado de filho. Ou seja, os direitos à ancestralidade, à origem genética e ao afeto são compatíveis.
Com efeito, conforme bem salientado pelo Ministro Luiz Fux no voto do RE nº 898.060, “a compreensão jurídica cosmopolita das famílias exige a ampliação da tutela normativa a todas as formas pelas quais a parentalidade pode se manifestar, a saber: (i) pela presunção decorrente do casamento ou outras hipóteses legais, (ii) pela descendência biológica ou (iii) pela afetividade.”
Vale salientar que o artigo 1593 do Código Civil dá respaldo legal a estas múltiplas formas de parentalidade, ao prever que “o parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consangüinidade ou outra origem.” E, conforme bem destaca Flávio Tartuce, o reconhecimento da parentalidade socioafetiva como nova forma de parentesco está enquadrado na cláusula geral “outra origem”.[1]
Assim, a nova realidade jurídica brasileira, respaldada na Constituição Federal e no Código Civil, reconhece a paternidade biológica ao lado da paternidade socioafetiva. É a multiparentalidade: não há mais hierarquia entre elas. Ambas podem coexistir com igual importância e valor jurídico.
Reconhecimento da filiação
O reconhecimento da filiação pode ser voluntário ou judicial. O primeiro decorre de uma manifestação espontânea e o segundo de uma proclamação judicial coercitiva, em ação de investigação de paternidade. Entretanto, “qualquer que seja sua forma – judicial ou voluntária -, o ato de reconhecimento é declaratório. Não cria a paternidade: apenas declara uma situação fática, de que o direito tira consequências.”[2]
O reconhecimento voluntário de filiação é irrevogável e pode ser feito, conforme previsto no artigo 1609 do Código Civil: I – no registro do nascimento; II – por escritura pública ou escrito particular, a ser arquivado em cartório; III – por testamento, ainda que incidentalmente manifestado; IV – por manifestação direta e expressa perante o juiz, ainda que o reconhecimento não haja sido o objeto único e principal do ato que o contém.
O reconhecimento voluntário de filiação por escritura pública, que é o que importa ao presente artigo, engloba tanto o reconhecimento de filiação biológica quanto socioafetiva. Tanto isto é verdade que várias Corregedorias já emitiram provimentos[3] acerca do reconhecimento da paternidade socioafetiva de forma extrajudicial, a exemplo do Estado do Rio Grande do Sul, que no capítulo “Do reconhecimento de filho”, da Consolidação Normativa Notarial e Registral do Estado, prevê em seu artigo 133-A que as regras do Capítulo aplicam-se, no que couber, ao reconhecimento de filho socioafetivo.
O artigo 1607 do Código Civil prevê que o filho havido fora do casamento pode ser reconhecido pelos pais, conjunta ou separadamente. Em razão desta redação, há o entendimento, na doutrina e na jurisprudência, que o reconhecimento voluntário de paternidade é ato personalíssimo dos pais, não admitindo influência externa. Ou seja, segundo este entendimento, o reconhecimento voluntário de paternidade por escritura pública é ato exclusivo do pai, não se estendendo aos seus herdeiros, por exemplo.
Neste sentido, foi o julgamento do Recurso Especial nº 832.330, no Superior Tribunal de Justiça, que negou pedido de reconhecimento espontâneo de paternidade, que, em razão da morte do suposto pai, foi instruído com termo de reconhecimento subscrito por todos os herdeiros e pela viúva do “de cujus”. No julgamento, o relator, Ministro Castro Filho, afirmou que, em face da redação do artigo 1607 do Código Civil, “o direito de reconhecer voluntariamente a prole é personalíssimo e, portanto, intransmissível aos herdeiros”. Desta forma, salientou o Ministro, “tendo falecido o suposto genitor sem manifestação expressa acerca da existência de filho extra matrimonium, a pretensão de inclusão do seu nome no registro de nascimento poderá ser deduzida apenas na via judicial, por meio de ação investigatória de paternidade.”[4]
Com todo respeito ao Excelentíssimo Ministro e aos doutrinadores que assim entendem, não compartilhamos deste posicionamento. Entendemos, sim, ser possível o reconhecimento voluntário de filiação, biológica e sociafetiva, pelos herdeiros do falecido pai, em escritura pública, pelas razões que demonstraremos a seguir.
Reconhecimento voluntário de filiação em escritura pública de inventário e partilha causa mortis
O sucesso da lei 11.441/2007, que possibilitou a realização de inventários, partilhas, separações e divórcios por escritura pública é incontestável. Nos dez anos se sua existência, foram lavrados nos cartórios de Notas de todo o país mais de 1,5 milhão de atos, sendo 852.929 inventários, 13.973 partilhas, 42.936 separações e 421.187 divórcios. Os dados são da Central Notarial de Serviços Compartilhados.[5]
Segundo Naurican Lacerda, presidente do Instituto Cartórios por um Brasil Melhor (ICBM) e tabelião de protestos em Goiânia, o processo nos cartórios gerou uma economia de R$ 3,5 bilhões aos governos federal e estaduais. Estudo do Sistema de Justiça Brasileiro em 2013 mostrou que cada processo que entra no Judiciário custa, em média, R$ 2.369,73.[6]
A extrajudicialização de procedimentos é uma tendência que teve como grande marco a lei 11.441/2007 e, agora, avança com a possibilidade da usucapião extrajudicial, na alternativa de melhorar o quadro de esgotamento do Poder Judiciário, sem, contudo, perder a segurança jurídica.
Como bem salienta Cíntia Maria Scheid, “a atual organização institucional dos sistema notarial e registral brasileiro está intimamente ligada ao Poder Judiciário, não como subordinado hierárquico, mas como um parceiro para a realização dos direitos do cidadãos.”[7]. O notário, dotado de profundo conhecimento jurídico, fé pública e imparcialidade, torna a extrajudicialização de procedimentos um ato seguro, célere, que gera economia para as partes e para o Estado e ajuda no desafogamento do Poder Judiciário. A extrajudicialização, em última análise, torna mais viável o acesso à Justiça.
Com efeito, o notário tem um contato intenso com as necessidades reais da sociedade, antes da existência do litígio, obrigando-se a encontrar respostas por meio dos instrumentos que lhe cabe formalizar, de forma imparcial, e dotada de fé pública. Por meio de uma função criadora do direito, o notário atende demandas não obstante a inexistência de lei expressa regulamentado determinado assunto diretamente. [8] Isto torna mais viável o acesso à Justiça.
Uma das funções primordiais do notário é prevenir litígios. Assim, “diante da existência de leis suscetíveis de complementação, que necessitam do intérprete para ter o alcance que o legislador não podia atribuir, é que o notário exerce sua função criadora do direito.”[9] Conforme já destacamos em trabalho anterior, a atividade criadora do direito pelo notário tem por finalidade precípua a diminuição da enorme distância entre as leis e os fatos sociais.”[10]
Exemplo disso, é no Rio Grande do Sul, especificamente no 1º Tabelionato de Novo Hamburgo, onde antes mesmo do Provimento nº 06 de 2004, que inseriu um parágrafo no artigo 245 da Consolidação Normativa Notarial Registral, autorizando o registro dos documentos constitutivos de uniões afetivas, independente da identidade ou da oposição de sexo dos contratantes, foi lavrada, em junho de 2003, escritura de declaração em que duas mulheres manifestaram “conviver juntas e compartilhar seu patrimônio, havendo dependência econômica entre elas, bem como assistência mútua, incluindo-se cuidados de saúde e amparo legal”.
Outro exemplo da função criadora do direito dos tabeliães são as escrituras de união poliafetivas lavradas no Brasil, a primeira delas em agosto de 2012, pela tabeliã de Tupã, cidade do interior de São Paulo, Cláudia do Nascimento Domingues. Numa atitude pioneira, enfrentando uma sociedade de cunho essencialmente monogâmico, a notária lavrou a primeira escritura pública de união entre um homem e duas mulheres.
Por fim, a ata notarial é exemplo cabal de que o notário cria direito. Fruto da necessidade social, a ata notarial foi expressamente incluída no Código de Processo Civil como meio de prova após o seu uso reiterado pelos notários brasileiros.
Diante destes exemplos, é indiscutível que o tabelião garante que o ordenamento jurídico acompanhe a evolução da sociedade de forma célere, pois muitos atos notariais são lavrados sem ter legislação específica a respeito. É a função notarial criadora do direito atendendo as demandas da sociedade.
Neste contexto, de tendência de extrajudicialização, para desafogar o Poder Judiciário e tornar mais célere as respostas às demandas das partes, e da função notarial criadora do direito, como uma resposta imediata aos anseios e necessidades sociais, por que não permitir o reconhecimento voluntário de filiação, seja ela biológica ou socioafetiva, pelos herdeiros, em escritura pública de inventário e partilha?
O Ministro Luiz Fux, no voto do Recurso Extraordinário nº 898.060, bem destacou que “é o direito que deve servir a pessoa, e não a pessoa que deve servir o direito”:
“(…) Não cabe a lei agir como o Rei Salomão – na conhecida história em que propôs dividir a criança ao meio pela impossibilidade de reconhecer a parentalidade entre ela e duas pessoas ao mesmo tempo. Da mesma forma, em tempos atuais, descabe pretender decidir entre a filiação afetiva e biológica, quando o melhor interesse do descendente é o reconhecimento, por exemplo, jurídico de ambos os vínculos. Do contrário, estar-se-ia transformando o ser humano em mero instrumento dos esquemas condenados pelos legisladores. É o direito que deve servir a pessoa, e não a pessoa que deve servir o direito (…)” grifo nosso
Ora, não admitir que os herdeiros, em consenso, reconheçam espontaneamente um filho do “de cujus”, exigindo uma ação investigatória de paternidade sob o argumento único de que o reconhecimento é ato personalíssimo do pai, como ocorreu no julgamento do Recurso Especial nº 832.330, com todo respeito, é fazer exatamente o que Ministro Fux condenou: transformar o ser humano em mero instrumento de esquemas condenados pelos legisladores.
Até pouco, ninguém pensaria que uma pessoa pudesse ter dois pais, um biológico e um socioafetivo, com direito à herança de ambos. No entanto, agora, a multiparentalidade é tese firmada pelo Supremo Tribunal Federal.
O reconhecimento do estado de filiação constitui direito personalíssimo, indisponível e imprescritível, que pode ser exercitado, portanto, sem qualquer restrição, em face dos pais ou herdeiros. Este entendimento está previsto no artigo 27 do Estatuto da Criança e do Adolescente e é pacífico nos Tribunais.[11]
Se o reconhecimento de estado de filiação é oponível contra os herdeiros, não parece razoável exigir que seja intentada ação de investigação de paternidade quando estes reconhecem, em consenso, a filiação.
Caio Mário salienta que “a investigação de paternidade se caracteriza como ação de estado, relativo ao estado familiar, destinada a dirimir conflito de interesses relativo ao estado de uma pessoa natural, envolvendo discussão acerca de verdadeiro direito de personalidade”.[12] Se a investigação de paternidade serve para dirimir um conflito, porque ela seria obrigatória quando não existe este conflito, quando há consenso entre as partes envolvidas?
É de interesse público o estabelecimento dos vínculos de filiação e é direito fundamental a busca da identidade, como natural emanação do direito de personalidade de um ser e do direito à felicidade. Neste contexto, a falta de norma legal no direito positivo pátrio que atribua efeitos jurídicos ao ato pelo qual os herdeiros reconhecem a condição de irmão, se o pai não o fez em vida, não pode se sobrepor ao direito fundamental ao reconhecimento da ascendência. O formalismo não pode se sobrepor a direitos fundamentais, sob pena de violação ao princípio da dignidade da pessoa humana.
O Ministro Humberto Gomes de Barros, em julgamento do Recurso Especial nº 604.154[13], que se referia a ação proposta pelos netos contra o avô para reconhecimento de relação avoenga, afirmou:
“A falta de previsão legal deste tipo de ação não me parece justificativa suficiente para acoimar de juridicamente impossível o pedido. Se existisse um artigo de lei que vedasse expressamente a pretensão dos ora recorrentes, a situação seria outra. Mas não há. Examinando a situação sob outro prisma posso afirmar que, a par de não existir autorização, também não há qualquer vedação legal à pretensão dos recorrentes.”
Na situação deste Recurso Especial, os netos buscavam o reconhecimento de um direito entendido personalíssimo de seu pai. Mas, o Ministro entendeu que, a despeito de não haver legislação autorizando o pedido, tampouco há vedação expressa. A mesma situação ocorre com o reconhecimento de paternidade pelos herdeiros, entendido como um direito personalíssimo do falecido pai. Não há legislação autorizando o pedido, porém não há vedação expressa.
E, na lacuna legal, vale o que o Ministro Fux afirma, “é o direito que deve servir a pessoa, e não a pessoa que deve servir o direito”. O formalismo não pode ser um obstáculo à consecução de direitos fundamentais, como é o direito às origens genéticas e afetivas.
Na verdade, há em tramitação na Câmara dos Deputados o Projeto de lei nº 6939/2010, que altera o Código Civil para acrescentar o §2º, ao artigo 1609, com a seguinte redação: §2.° Podem os herdeiros de pai falecido, por escritura pública, reconhecer a paternidade de filho não reconhecido por ele (NR).”
O projeto teve parecer desfavorável da deputada Sandra Rosado, sob argumento de que, de um lado, afronta o já consagrado caráter personalíssimo do reconhecimento do estado de filiação, e, de outro, dá margem a fraudes patrimoniais ao vislumbrar o reconhecimento da paternidade pela via administrativa.
Pois bem. A questão do caráter personalíssimo impedir o reconhecimento de paternidade pelos herdeiros não merece prosperar pelas razões expostas nas linhas acima. E o argumento de que reconhecimento de paternidade pela via administrativa dá margem a todo tipo de fraude não merece guarida em razão da prática ter mostrado exatamente o contrário do que a deputada afirmou no parecer: os procedimentos judiciais que foram extrajudicializados têm se mostrado seguros, eficientes e céleres.
Ademais, pensar que os herdeiros reconheceriam um filho do falecido, com todas as implicâncias legais e, principalmente, patrimoniais disso decorrentes, para fraudar alguma lei, não parece fazer sentido.
De qualquer forma, não se pode legislar por exceção, pensando nos fraudadores. A tendência é desburocratizar, com segurança jurídica. E os procedimentos extrajudiciais oferecem isto, além de economia e celeridade. A Central Notarial de Serviços Eletrônicos Compartilhados – Censec, aliás, tem sido um meio eficaz à disposição do Poder Público no combate e investigação de fraudes.
O referido projeto de lei, infelizmente, encontra-se arquivado desde 2015 na Câmara dos Deputados. Só que a evolução dos fatos sociais não pode esperar a vontade do legislador. Então, a função notarial criadora do direito é a resposta. Assim foi com a ata notarial, com a união homoafetiva e com a união poliafetiva, e assim deve ser com o reconhecimento da filiação, biológica ou socioafetiva, pelos herdeiros em escritura pública de inventário e partilha.
Além disso, para concluir, trazemos o excelente argumento trazido por Cíntia Maria Scheid, em seu texto “o reconhecimento extrajudicial da sociafetividade na escritura pública de inventário e partilha: contexto e possibilidades”. Segundo Cíntia, por analogia ao que ocorre com o reconhecimento da meação do companheiro(a) pelos demais herdeiros em escritura pública de inventário e partilha, nos moldes da Resolução nº 35/2007, do Conselho Nacional de Justiça, é viável o reconhecimento de filho sociafetivo (e biológico, segundo nosso entendimento) pelo cônjuge supérstite e demais herdeiros, somente pelo cônjuge supérstite (se houver só ele) ou somente pelos demais herdeiros (se houver somente os demais herdeiros), em escritura pública de inventário e partilha, se todos forem concordes e capazes.[14]
Destaca, ainda, a autora, que havendo somente o herdeiro sociafetivo (ou biológico, segundo nosso entendimento), ou sendo incapaz, o inventário e a partilha deverão ser judiciais, nos moldes da legislação atual.
Esta analogia, ao nosso ver, “fecha com chave de ouro” os argumentos que viabilizam o reconhecimento de filiação biológica e socioafetiva pelos herdeiros em escritura pública de inventário e partilha. Se é possível reconhecer a condição de companheiro em escritura pública de inventário e partilha, como todas as implicâncias legais e patrimoniais disto decorrentes, por que não seria possível reconhecer filiação da mesma forma?
Esta analogia, aliás, fulmina com o argumento de que o reconhecimento de filiação por escritura pública daria guarida a todo tipo de fraude, como foi mencionado no parecer desfavorável ao projeto de lei nº 6939/2010. Escrituras públicas de inventário e partilha com reconhecimento de união estável têm sido há muito praticadas, sem que isto esteja significando aumento de fraudes contra o Poder Público.
Assim, por todo exposto, entendemos ser juridicamente possível o reconhecimento de filiação biológica e sociafetiva pelos herdeiros em escritura pública de inventário e partiha.
Salientamos, por oportuno, na esteira dos argumentos expostos por Cíntia Scheid, que a existência de filiação registral não obstaculizaria o reconhecimento de filiação socioafetiva na escritura pública de inventário e partilha, diante da tese jurídica firmada pelo STF acerca da multiparentalidade.[15]
Considerações finais
O direito de reconhecer filhos, seja biológico ou socioafetivo, é considerado direito personalíssimo. Assim, quando o pai já é falecido e não reconheceu o filho em vida, entende-se que é necessária a propositura de ação de investigação de paternidade pelo filho, já que o reconhecimento de estado de filiação é oponível contra os herdeiros.
Ou seja, mesmo que os herdeiros estejam em consenso quanto ao reconhecimento da filiação, é exigida a ação de investigação de paternidade.
Tal imposição não parece razoável, pois coloca o formalismo acima do direito fundamental ao reconhecimento da identidade e ascendência, seja ela biológica ou afetiva. E, exige que as pessoas movam o Poder Judiciário quando não há conflito, na contramão da tendência atual pela extrajudicialização de procedimentos.
Além disso, a despeito de não haver legislação autorizando o reconhecimento de filiação pelos herdeiros, tampouco há vedação expressa. E, na lacuna legal, a função notarial criadora do direito traz a resposta, através da possibilidade do reconhecimento da filiação, biológica ou sociafetiva, em escritura pública de inventário e partilha.
Assim como ocorreu com a ata notarial, com a união homoafetiva e com a união poliafetiva, atos que denotam o pioneirismo dos notários, assim deve ocorrer com o reconhecimento da filiação, biológica ou socioafetiva, pelos herdeiros em escritura pública de inventário e partilha. Os tabeliães, munidos da função notarial criadora do direito, devem garantir respostas aos anseios da sociedade, garantindo que o ordenamento jurídico acompanhe a evolução da sociedade.
Ademais, a analogia com a possibilidade de reconhecimento do companheiro em escritura pública de inventário e partilha não deixa dúvidas de que o reconhecimento de filiação biológica ou sociafetiva em escritura pública de inventário e partilha é ato juridicamente possível e que se adéqua com a realidade do direito das famílias,
Desta forma, a conclusão lógica é de que o reconhecimento de filiação biológica ou sociafetiva em escritura pública de inventário, além de ser perfeitamente viável, é medida que se impõe para garantia do direito fundamental à identidade e ascendência biológica e sociafetiva e para garantia da família como instrumento do desenvolvimento pessoal e da felicidade do indivíduo.
[1] TARTUCE, Flávio. O princípio da afetividade no direito de família. Disponível em https://flaviotartuce.jusbrasil.com.br/artigos/121822540/o-principio-da-afetividade-no-direito-de-familia. Acesso em 07/08/2017.
[2] PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil: Direito de Família. Vol. 5. 21ª Edição. Rio de janeiro, Forense, 2013. p. 376
[3] Provimentos nº 009/2013 CGJ/PE; nº 15/2013 CGJ/CE; nº 21/2013 CGJ/MA.
[4] RECURSO ESPECIAL. DIREITO DE FAMÍLIA. FILIAÇÃO. ÓBITO. SUPOSTO PAI. RECONHECIMENTO VOLUNTÁRIO. HERDEIROS. DESCABIMENTO. I – O direito de reconhecer voluntariamente a prole é personalíssimo e, portanto, intransmissível aos herdeiros, não existindo no direito positivo pátrio norma que atribua efeitos jurídicos ao ato pelo qual aqueles reconhecem a condição de irmão, se o pai não o fez em vida. II – Falecido o suposto genitor sem manifestação expressa acerca da existência de filho extra matrimonium, a pretensão de inclusão do seu nome no registro de nascimento poderá ser deduzida apenas na via judicial, por meio de ação investigatória de paternidade. Recurso não conhecido. (REsp 832.330/PR, Rel. Ministro CASTRO FILHO, TERCEIRA TURMA, julgado em 20/03/2007, DJ 02/04/2007, p. 270)
[5] Conforme http://www.conjur.com.br/2017-jun-28/sancionada-plena-ditadura-lei-divorcio-completa-40-anos. Acesso em 18.08.2017.
[6] Conforme http://www.conjur.com.br/2017-jun-28/sancionada-plena-ditadura-lei-divorcio-completa-40-anos. Acesso em 18.08.2017.
[7] SCHEID, Cíntia Maria. O reconhecimento extrajudicial da socioafetividade na escritura pública de inventário e partilha: contexto e possibilidades. In: Revista IBDFAM. Famílias e Sucessões. Vol. 19. Belo Horizonte/MG: IBDFAM, Jan/Fev 2017, p. 113
[8] SCHEID, Cíntia Maria. O reconhecimento extrajudicial da socioafetividade na escritura pública de inventário e partilha: contexto e possibilidades. In: Revista IBDFAM. Famílias e Sucessões. Vol. 19. Belo Horizonte/MG: IBDFAM, Jan/Fev 2017, p. 127 e 125
[9] SCHEID, Cíntia Maria. O reconhecimento extrajudicial da socioafetividade na escritura pública de inventário e partilha: contexto e possibilidades. In: Revista IBDFAM. Famílias e Sucessões. Vol. 19. Belo Horizonte/MG: IBDFAM, Jan/Fev 2017, p. 127
[10] FISCHER, José Flavio Bueno. ROSA, Karin Regina Rick. Função Notarial criadora do direito. In: DIP, Ricardo; JACOMINO, Sérgio (Org.). Doutrinas Essenciais: direito registral. v.7. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. P.572
[11] FAMÍLIA. FILIAÇÃO. CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE E PETIÇÃO DE HERANÇA. VÍNCULO BIOLÓGICO. PATERNIDADE SOCIOAFETIVA. IDENTIDADE GENÉTICA. ANCESTRALIDADE. DIREITOS SUCESSÓRIOS. ARTIGOS ANALISADOS: ARTS. 1.593; 1.604 e 1.609 do Código Civil; ART. 48 do ECA; e do ART. 1º da Lei 8.560/92. 1. Ação de petição de herança, ajuizada em 07.03.2008. Recurso especial concluso ao Gabinete em 25.08.2011. 2. Discussão relativa à possibilidade do vínculo socioafetivo com o pai registrário impedir o reconhecimento da paternidade biológica. 3. A maternidade/paternidade socioafetiva tem seu reconhecimento jurídico decorrente da relação jurídica de afeto, marcadamente nos casos em que, sem nenhum vínculo biológico, os pais criam uma criança por escolha própria, destinando-lhe todo o amor, ternura e cuidados inerentes à relação pai-filho. 4. A prevalência da paternidade/maternidade socioafetiva frente à biológica tem como principal fundamento o interesse do próprio menor, ou seja, visa garantir direitos aos filhos face às pretensões negatórias de paternidade, quando é inequívoco (i) o conhecimento da verdade biológica pelos pais que assim o declararam no registro de nascimento e (ii) a existência de uma relação de afeto, cuidado, assistência moral, patrimonial e respeito, construída ao longo dos anos. 5. Se é o próprio filho quem busca o reconhecimento do vínculo biológico com outrem, porque durante toda a sua vida foi induzido a acreditar em uma verdade que lhe foi imposta por aqueles que o registraram, não é razoável que se lhe imponha a prevalência da paternidade socioafetiva, a fim de impedir sua pretensão. 6. O reconhecimento do estado de filiação constitui direito personalíssimo, indisponível e imprescritível, que pode ser exercitado, portanto, sem qualquer restrição, em face dos pais ou seus herdeiros. 7. A paternidade traz em seu bojo diversas responsabilidades, sejam de ordem moral ou patrimonial, devendo ser assegurados os direitos sucessórios decorrentes da comprovação do estado de filiação. 8. Todos os filhos são iguais, não sendo admitida qualquer distinção entre eles, sendo desinfluente a existência, ou não, de qualquer contribuição para a formação do patrimônio familiar. 9. Recurso especial desprovido. (REsp 1274240/SC, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 08/10/2013, DJe 15/10/2013)
[12] PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil: Direito de Família. Vol. 5. 21ª Edição. Rio de janeiro, Forense, 2013. p. 401
[13] RECURSO ESPECIAL. FAMÍLIA. RELAÇÃO AVOENGA. RECONHECIMENTO JUDICIAL. POSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO. – É juridicamente possível o pedido dos netos formulado contra o avô, os seus herdeiros deste, visando o reconhecimento judicial da relação avoenga. – Nenhuma interpretação pode levar o texto legal ao absurdo. (REsp 604.154/RS, Rel. Ministro HUMBERTO GOMES DE BARROS, TERCEIRA TURMA, julgado em 16/06/2005, DJ 01/07/2005, p. 518)
[14] SCHEID, Cíntia Maria. O reconhecimento extrajudicial da socioafetividade na escritura pública de inventário e partilha: contexto e possibilidades. In: Revista IBDFAM. Famílias e Sucessões. Vol. 19. Belo Horizonte/MG: IBDFAM, Jan/Fev 2017, p. 131
[15] SCHEID, Cíntia Maria. O reconhecimento extrajudicial da socioafetividade na escritura pública de inventário e partilha: contexto e possibilidades. In: Revista IBDFAM. Famílias e Sucessões. Vol. 19. Belo Horizonte/MG: IBDFAM, Jan/Fev 2017, p. 132