1. Aspectos gerais
 
A Lei 13.460, de 26 de junho de 2017, dispõe sobre a participação, proteção e defesa dos direitos do usuário dos serviços públicos da administração pública, aplicando-se à Administração Pública direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, ao regulamentar o artigo 37, inciso I, § 3º, da Constituição Federal, segundo o qual a “lei disciplinará as formas de participação do usuário na administração pública direta e indireta”.
 
Aplica-se também, subsidiariamente, aos serviços públicos prestados por particular (artigo 1º, parágrafo terceiro), dicção que, parece-nos, não traz dúvidas de que abarca os notários e registradores. Aponta-se aqui que a redação do artigo 1º, parágrafo primeiro, alínea “c”, da Lei Estadual de São Paulo nº 10.294/1999, faz referência expressa ao serviço público prestado por particular por “delegação”, termo que aplica-se aos notários e registradores inclusive por previsão constitucional (artigo 236 da Carta Maior).
 
Há prazos de vacatio legis previstos em seu artigo 25: trezentos e sessenta dias para a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios com mais de quinhentos mil habitantes; quinhentos e quarenta dias para os Municípios entre cem mil e quinhentos mil habitantes, e setecentos e vinte dias para os Municípios com menos de cem mil habitantes.
 
Malgrado esses prazos, ela já fornece elementos doutrinários que merecem reflexão.
 
A Lei 13.460/2017 estabelece os direitos dos usuários, inclusive não afastando a aplicação do Código de Defesa do Consumidor quando for o caso[1], normatizando aspectos elogiáveis e necessários como dispor que os serviços e o atendimento do usuário serão realizados de forma adequada, observados os princípios da regularidade, continuidade, efetividade, segurança, atualidade, generalidade, transparência e cortesia[2].
 
Com este escopo, o artigo 5º deste diploma legal elenca várias diretrizes com vistas à adequada prestação dos serviços, como o dever de urbanidade, respeito, acessibilidade e cortesia no atendimento; a presunção de boa-fé do usuário; atendimento por ordem de chegada, ressalvadas as prioridades legais[3], casos de urgência e a possibilidade de agendamento; igualdade de tratamento, vedada qualquer forma de discriminação; definição, publicidade e observância de horários e normas compatíveis com o bom atendimento ao usuário;  adoção de medidas visando a proteção à saúde e a segurança dos usuários;  manutenção de instalações salubres, seguras, sinalizadas, acessíveis e adequadas ao serviço e ao atendimento;  observância dos códigos de ética ou de conduta aplicáveis às várias categorias de agentes públicos; aplicação de soluções tecnológicas que visem a simplificar processos e procedimentos de atendimento ao usuário e a propiciar melhores condições para o compartilhamento das informações, dentre outros.
 
Como já apontamos acima, São Paulo manteve posição de vanguarda nesse tema, já que, entre nós, desde 1999 vigora a Lei Estadual 10.294, que cuidou da proteção e defesa do usuário do serviço público paulista, e os direitos agora previstos na Lei 13.460/17 se encontram amplamente previstos na legislação estadual, como se pode ver dos seus artigos 6º e 7º[4] , além dos demais institutos nela previstos.
 
Além disso, e em sintonia com a lei paulista, as Normas da Corregedoria Geral da Justiça de São Paulo também trazem vários dispositivos normativos no mesmo sentido. Sendo este trabalho singelo e sintético, nos limitamos a apontar o item 88 do capítulo XIII daquele caderno normativo, que traz prescrições acerca de terem os notários e registradores o dever de atender às partes com respeito, urbanidade, eficiência e presteza; atender por ordem de chegada, assegurada prioridade às pessoas com deficiência, aos idosos com idade igual ou superior a 60 (sessenta) anos, às gestantes, às lactantes, às pessoas com crianças de colo e aos obesos, exceto no que se refere à prioridade de registro prevista em lei; observar a igualdade de tratamento, vedado qualquer tipo de discriminação; manter as instalações limpas, sinalizadas, acessíveis e adequadas ao serviço ou atendimento, adotando, conforme a peculiaridade local exigir, medidas de proteção à saúde ou segurança dos usuários; observar as normas procedimentais e os prazos legais fixados para a prática dos atos do seu ofício; guardar sigilo sobre a documentação e os assuntos de natureza reservada de que tenham conhecimento em razão do exercício de sua profissão; atender prioritariamente as requisições de papéis, documentos, informações ou providências que lhes forem solicitadas pelas autoridades judiciárias ou administrativas para a defesa das pessoas jurídicas de direito público em juízo; assegurar ao usuário as informações precisas sobre o nome do notário ou registrador e dos prepostos que lhe atendem, procedimentos, formulários e outros dados necessários à prestação dos serviços.
 
Acresça-se que o item 88.1 prevê que o atendimento prioritário da pessoa com deficiência é extensivo ao seu acompanhante ou atendente pessoal.
 
Não se deve olvidar que o atendimento a pessoas com deficiências deve levar em conta os dispositivos do Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei 13.146/2015), e que, dentre os idosos, aqueles maiores de oitenta anos terão preferência, nos termos da recente alteração no artigo 2º, parágrafo segundo, do Estatuto do Idoso (Lei 10.741/2003) pela Lei 13.466/2017.
 
Todos os dispositivos do artigo 5º da Lei 13.460/2017 tem ampla aplicabilidade no Registro de Imóveis, mas queremos destacar alguns:
 
1) O inciso IV trata da vedação de imposição de exigências não previstas na legislação.
 
Por certo que este dispositivo reflete o “princípio da legalidade”, e temos como curial que legalidade não é sinônimo de interpretação literal da lei. Todos os métodos hermenêuticos podem e devem ser utilizados, mas a formulação de exigências deve encontrar respaldo no resultado legítimo do trabalho exegético. As normas paulistas também trazem regra nesse sentido, dispondo o item 40.1 do capítulo XX que “a nota de exigência deve conter a exposição das razões e dos fundamentos em que o Registrador se apoiou para qualificação negativa do título, vedadas justificativas de devolução com expressões genéricas, tais como ‘para os devidos fins’, ‘para fins de direito’ e outras congêneres”  .
 
Dos meios hermenêuticos disponíveis, este dispositivo parece prestigiar o teleológico, ao afirmar que deve haver uma adequação entre meios e fins, de sorte que o Registrador, aqui como intérprete e aplicador da lei ao caso concreto, deverá laborar em um esforço exegético que formule ou supere exigências que não tragam concretude ao fim maior do registro imobiliário, que é o de imprimir  publicidade, autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos-imobiliários[5].
 
2) O inciso VI do artigo sob comento dispõe sobre o cumprimento de prazos e normas procedimentais, reforçando os deveres já emergentes do artigo 30 da Lei 8.935/94.
 
3) O inciso IX disciplina que o próprio agente público deve autenticar documentos à vista dos originais apresentados pelo usuário, vedada a exigência de reconhecimento de firma, salvo em caso de dúvida de autenticidade. Portanto, entendemos que salvo previsão legal expressa, como é o caso dos artigos 221, II; 246, § 1º e 250, §2º, todos da Lei 6.015/73, para citar alguns exemplos, o Registrador não poderá exigir autenticações (se for apresentado o documento original) ou reconhecimento de firmas nos documentos apresentados.
 
4) O inciso XIV prescreve que deve ser utilizada linguagem simples, evitando o uso de siglas, jargões e estrangeirismos. Também aqui a Corregedoria Paulista traz norma elucidativa, ao determinar que as exigências devem ser formuladas de forma “clara e objetiva”, no item 40 do capítulo XX.
 
5) Por fim, ressaltamos o inciso XV, que veda a exigência de nova prova sobre fato já comprovado em documentação válida apresentada, para novamente lembrar que este aspecto já foi igualmente regulamentado pelo Corregedoria de São Paulo, no item 10 do capítulo XX, que dispõe que “quando a tramitação do título depender de informações disponíveis na própria unidade de serviço ou em serviços de informações de órgãos oficiais publicadas na Internet, deverá o Oficial obtê-las e certificar a fonte que acessou, evitando-se a devolução do título para cumprimento de exigências. Havendo incidência de taxas ou emolumentos, o pagamento deverá ser feito na retirada do título, desde que a busca das informações onerosas tenha sido previamente autorizada pelo apresentante”.  
 
2. Deveres do usuário
 
Se a explicitação dos direitos dos usuários do Registro Imobiliário é extremamente salutar, trazemos a colação observação de José Renato Nalini, que foi Corregedor-Geral da Justiça e Presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo, grande conhecedor da realidade do funcionamento dos cartórios, quando apontou na Revista ArispJus, edição de abril-agosto/2016, página 26, que “submetidos à implacável lex mercatoria, os devotados delegados das prestações extrajudiciais tiveram de se amoldar às exigências de um consumidor cada vez mais desperto para seus direitos, embora nem tanto para os seus deveres” (destaque nosso).
 
E aqui vale aplaudir a novel legislação que traz no seu artigo 8º os deveres do usuário, que se coadunam com a função social, econômica e ambiental que informa o registro imobiliário da propriedade privada no Brasil.
 
Por questão de espaço, não desenvolveremos aqui esse tema com a profundidade que merece, mas entendemos que no Registro de Imóveis não se estabelece uma “relação de consumo” entre o Registrador e o usuário. A relação jurídica registrador-usuário é sui generis, porque sem dúvida o usuário tem uma legítima expectativa de ser bem atendido e ver seu direito concretizado na tábua registral, porém ele não tem só direitos nessa relação, mas também tem deveres de atendimento da função social, econômica e ambiental da propriedade imobiliária, publicizando adequadamente os elementos essenciais que devem ser dados a conhecer ao restante da sociedade e ao Estado, a saber: o objeto do direito (o imóvel), os direitos e ônus que recaem sobre esse objeto e os sujeitos de direito titulares dessas relações jurídicas.
 
Entendemos que o registro é obrigatório por expressa previsão legal no artigo 169 da Lei 6.015/73, e ele é obrigatório porque para bem atender à função sócio-econômico-ambiental da propriedade imobiliária privada é necessário que os atos e negócios jurídicos respectivos sejam adequadamente publicizados a toda sociedade, e que apenas os atos e negócios jurídicos devidamente saneados e previstos em lei tenham a potência de adentrar aos álbuns imobiliários para gerar efeitos de forma eficaz e autêntica, atendendo assim aos reclamos da segurança jurídica.
 
Ora, a propriedade “obriga”. Essa expressão consta do artigo 14.2, da Constituição Alemã, que complementa estabelecendo que “seu uso deve servir, ao mesmo tempo, ao bem comum”[6] . Essa ideia sintetiza a “função social da propriedade” consagrada na nossa Carta Magna, no artigo 5º, inciso XXIII, e explicitada no artigo 1.228 do Código Civil.
 
Destarte, o que deve ficar bem claro é que a função social da propriedade é avessa ao oculto, ao clandestino.
 
Não é compreensível que um adquirente que mantenha sua aquisição fora do álbum publicitário, ocultando essa informação da coletividade, esteja atendendo à função social da propriedade. Dar esta informação a conhecer a todos é condição inafastável para tal desiderato. A coletividade tem o direito de ter informação ampla, eficaz, cabal e completa do status juris de um imóvel, para decidir o que fazer, quando fazer, como fazer, ao entabular algum ato ou negócio jurídico que vá repercutir sobre referido imóvel.
 
No Código Civil de 2002 foram consagrados os princípios da boa-fé objetiva, da lealdade, do dever de informar. Os credores precisam saber se há patrimônio disponível para execução. O Poder Público precisa da publicização do ato, seja para controle da arrecadação dos tributos sobre ele incidentes, seja para alimentar seus bancos cadastrais com informações multifinalitárias (ambientais, urbanísticas, estatísticas, etc.).
 
Tanto é assim que a legislação vem caminhando no sentido de robustecer o que usualmente se identifica como “princípio da concentração” do registro imobiliário, como se vê da Lei 13.097/2015, que em seu artigo 54 disciplina que mesmo atos de constrição judicial não prevalecem em face de negócios jurídicos que tenham por fim constituir, transferir ou modificar direitos reais sobre imóveis, caso estas constrições não constem previamente do álbum imobiliário.
 
Se o adquirente desrespeita um comando expressamente consignado na lei, estará ele atendendo à função social da propriedade? À boa-fé objetiva? Ao dever de lealdade? Ao dever de informar?
 
A conclusão é que o usuário, longe de ser um mero consumidor de “serviços registrais”, ainda que individualmente vá se beneficiar do registro, posto que seu direito estará protegido pelo ordenamento, tem o dever jurídico-social de levar seus títulos ao fólio real para publicizá-los adequadamente, uma vez que a publicidade registral é pressuposto inafastável da função social da propriedade e, como lembra a Constituição tedesca, “a propriedade obriga”.
 
Por estas razões, defendemos que a publicidade registral constitui direito difuso, transcendendo em muito o mero interesse do particular.
 
Assim, pensamos que há uma relação de coordenação entre o Registrador, que atua como longa manus da função social da propriedade, e o usuário-adquirente, que deve levar seus negócios jurídicos à tábua registral em ordem a imprimir-lhes a publicidade a que estão destinados.
 
Ambos – registrador e usuário – devem perseguir o registro, dentro das balizas legais, buscando inclusive superar eventuais exigências. Por isso, ao se defrontar com uma Nota de Devolução, e agora em face dos termos do artigo 8º da Lei 13.460/2017, deve o usuário agir com urbanidade e boa-fé (inciso I), prestando as informações pertinentes para consecução do registro (inciso II), o que poderá envolver juntada de novos documentos, prestação de declarações etc., tudo para colaborar para a adequada prestação do serviço registral imobiliário (inciso III).
 
Voltando ao inciso I do artigo 8º, o usuário deverá utilizar adequadamente os serviços do Registro de Imóveis, e essa utilização adequada abrange inclusive a Suscitação de Dúvida quando for o caso, se ele entender que o título ostenta as condições necessárias para ingresso no fólio real, malgrado as exigências feitas pelo Registrador.
 
Postas estas singelas considerações deste texto, entendemos que a Lei 13.460/2017 é bem-vinda, e renderá ainda muitos frutos doutrinários e jurisprudenciais na atividade registral imobiliária.
 
[1] Art. 1º, § 2º, inciso II.
 
[2] Art. 4º. Vale observar que regras similares já constavam das Normas da Corregedoria Geral da Justiça de São Paulo, como, por exemplo, no item 2 do cap. XIII e no item 3 do cap. XX. Importante referir também que a Lei Paulista nº 10.294 cuidou deste tema já em 1999.
 
[3] Pessoas com deficiência, idosos, gestantes, lactantes e pessoas acompanhadas por crianças de colo (art. 5º, III).
 
[4]  Artigo 6.º – O usuário faz jus á prestação de serviços públicos de boa qualidade.
 
Artigo 7.º – O direito á qualidade do serviço exige dos agentes públicos e prestadores de serviço público:
 
I – urbanidade e respeito no atendimento aos usuários do serviço;
 
II – atendimento por ordem de chegada, assegurada prioridade a idosos, grávidas, doentes e deficientes físicos;
 
III – igualdade de tratamento, vedado qualquer tipo de discriminação;
 
IV – racionalização na prestação de serviços;
 
V – adequação entre meios e fins, vedada a imposição de exigências, obrigações, restrições e sanções não previstas em lei;
 
VI – cumprimento de prazos e normas procedimentais;
 
VII – fixação e observância de horário e normas compatíveis com o bom atendimento do usuário;
 
VIII – adoção de medidas de proteção á saúde ou segurança dos usuários;
 
IX – autenticação de documentos pelo próprio agente público, à vista dos originais apresentados pelo usuário, vedada a exigência de reconhecimento de firma, salvo em caso de dúvida de autenticidade;
 
X – manutenção de instalação limpas, sinalizadas, acessíveis e adequadas ao serviço ou atendimento;
 
XI – observância dos Códigos de Ética aplicáveis às várias categorias de agentes públicos.
 
Parágrafo único – O planejamento e o desenvolvimento de programas de capacitação gerencial e tecnológica, na área de recursos humanos, aliados a utilização de equipamentos modernos, são indispensáveis à boa qualidade do serviço público.
[5] Artigo 1º da Lei 8.935/94.
 
[6] https://www.btg-bestellservice.de/pdf/80208000.pdf.  Acesso em 18.09.2017