A procuração em causa própria não é — nem pode vir a ser — título translativo de propriedade. A delimitação conceitual do tema, considerado bastante controverso, foi feita pela 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, em julgamento de caso em que a autora requereu declaração de invalidade dos atos praticados pela pessoa a quem outorgou tal procuração.
 
O processo foi movido por uma mulher contra o próprio marido, que, em posse de procuração em causa própria, alienou áreas de um imóvel rural de sua (da mulher) propriedade. Ela pediu a restituição dos bens ou o valor equivalente, de cerca de R$ 2,5 milhões.
 
Essas áreas teriam sido objeto de contrato de compra e venda assinado pelo marido, como administrador dos bens da mulher, em nome de outros dois corréus, que no mesmo dia teriam assinado instrumentos particulares de promessa de venda para transmitir a propriedade ao marido.
 
A declaração da invalidade dos atos praticados foi pedida com base em vícios de simulação, erro, dolo, coação e fraude.
 
As instâncias ordinárias julgaram improcedente a ação pela prescrição, pois a ação foi ajuizada mais de quatro anos após a celebração dos negócios jurídicos, “especialmente da procuração in rem propriam” (em causa própria). Aplicou-se artigo 178, parágrafo 9°, inciso V, alínea ‘b’ do Código Civil de 1916, vigente à época
 
Foi nesse contexto que o relator na 4ª Turma, ministro Luis Felipe Salomão, abordou o tema para concluir que a procuração em causa própria não equivale ao título translativo de propriedade, documento que efetivamente transfere a propriedade do imóvel.
 
Direito de transferir x transferência
 
O voto do relator, que foi acompanhado por unanimidade pelos integrantes da 4ª Turma, aponta que o tema gera “todo tipo de vacilação doutrinária e jurisprudencial”, controvérsias e “aspectos nebulosos”.
 
A procuração em causa própria é um negócio jurídico muito utilizado no âmbito do direito imobiliário. Nele, o vendedor dá ao comprador o poder de epresenta-lo em cartório quando da lavratura da escritura definitiva de compra e venda. É um meio de dispensar o vendedor da conclusão do negócio e transferência imobiliária.
 
Quem confere essa procuração dá ao outorgado de forma irrevogável, inextinguível pela morte de qualquer uma das partes e sem dever de prestação de contas, o poder de dispor do direito objeto da procuração.
 
“Em outras palavras, a rigor não se transmite o direito objeto do negócio jurídico, outorga-se o poder de transferi-lo”, resumiu o ministro Luis Felipe Salomão. É por isso que a procuração em causa própria não é equivalente a título translativo de propriedade.
 
“As balizas fixadas acerca da procuração em causa própria não podem desvirtuar todo o sistema erigido pelo direito brasileiro para a transmissão dos direitos subjetivos patrimoniais”, acrescentou o relator.
 
Consequência
 
No caso concreto, as instâncias ordinárias concluíram que houve a prescrição do direito a anulação de contrato por vício de consentimento, pois o pedido foi feito mais de quatro anos depois da data da procuração em causa própria.
 
“Com efeito, soa até mesmo contraditório reconhecer ter sido outorgada procuração ao ex-marido da autora, com a natureza de ser em causa própria, e, no tocante às alienações com uso do instrumento, questionar erro, simulação ou fraude acerca do dia em que realizado o ato ou contrato”, afirmou o relator.
 
Para enfrentar o problema, Salomão considerou assim a distinção entre os institutos da nulidade e da anulabilidade.
 
“Nessa linha de intelecção, Pontes de Miranda propugna que o ato jurídico pode ser válido ou não válido (nulo ou anulável), eficaz ou ineficaz. Se o negócio jurídico não existe, não há pensar em conceito de validade ou de eficácia. Primeiro vem o ser, isso antes do valer e do ter efeitos. O que não existe é nada; se lhe chama “nulo”, é em sentido que não se põe no plano da validade: é o não ser, que equivocamente se chamou de nulo”, disse.
 
Já a anulabilidade é “sanção menos enérgica decorrente da prática de atos jurídicos que prejudicam diretamente os interesses particulares ou privados dos cidadãos”.
 
No caso, o relator considerou que o processo trata de negócios translativos de propriedade feitos a partir de procuração em causa própria que, de fato, não têm vícios de anulabilidade. Ou seja, os negócios são válidos e eficazes. No entanto, são também fruto de “conluio entre os réus” para lesar a autora, que afirma ter havido até mesmo prática de crime.
 
Portanto, o caso não configura hipótese de anulabilidade, o que derruba a incidência do prazo de quatro anos, conforme o artigo 178 do CPC de 1916.
 
Concluiu, assim, que houve error in procedendo (cerceamento da ampla defesa, em vista do julgamento antecipado) no caso. A decisão é de anulação dos atos processuais a contar da decisão interlocutória que declarou a prescrição, para propiciar a regular tramitação e instrução do processo.
 
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REsp 1.345.170