A regularização do direito de laje diminuiria consideravelmente a influência das milícias em favelas. É o que afirma a advogada Cláudia Franco Corrêa, professora de Direito Civil da Universidade Federal do Rio de Janeiro e professora do programa de pós-graduação stricto sensu em Direito da Universidade Veiga de Almeida.
 
O direito real de laje foi instituído no Código Civil em 2016. O objetivo era promover a regularização fundiária, com foco nas moradias construídas informalmente em áreas ocupadas pela população mais pobre.
 
Diversos entraves, porém, comprometeram a efetividade da aplicação do direito de laje à realidade das favelas, diz Franco. Para tornar o instituto mais eficaz, a professora, em conjunto com o desembargador Marco Aurélio Bezerra de Melo, do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, elaborou o Projeto de Lei 2.455/2021, que foi apresentado pelo deputado federal Altineu Côrtes (PL-RJ).
 
A proposta reconhece que a posse do direito de laje constitui direito real autônomo. Além disso, permite a cessão do direito e assegura quem receber imóvel por herança pode adquirir a garantia de laje por usucapião.
 
Em entrevista à ConJur, Cláudia fez um balanço dos cinco anos de vigência do direito de laje no Brasil e opinou que, para concretizá-lo no país, o poder público precisa desburocratizar os processos de regularização e acelerar sua tramitação.
 
Leia a entrevista:
 
ConJur — Qual a importância do direito real de laje?
Cláudia Franco — O direito real de laje como está tipificado no Código Civil, no artigo 1.510-A e seguintes, tem dois aspectos importantes: o primeiro é a dinâmica socioeconômica do direito de propriedade, na medida em que o reconheçamos como direito de superfície atípico, mais corretamente uma sobrelevação, permitindo os desdobramentos da propriedade e constituindo destino útil sem que o proprietário tenha que abdicar do seu direito. Sou uma entusiasta do direito de superfície e seus desdobramentos, como o direito real de laje, se o compreendermos como sobrelevação. Imagine que uma pessoa possa ceder a alguém o direito de construção em seu terreno, mas reservando a sobrelevação para um negócio futuro. São ganhos dinâmicos que a propriedade assume. Outro fato que se destaca desse primeiro aspecto é o desprendimento da locação. Ainda vivenciamos certa obsessão pelo contrato de locação, talvez pela sua longevidade como instituto obrigacional de transferência da posse na história do Direito Contratual. Entretanto, vejo diversas vantagens do direito de superfície frente à locação, principalmente se incluirmos a sobrelevação.
 
O segundo aspecto está na regularização fundiária em si, ao permitir a constituição de um direito real. Aquela ideia de “puxadinho” pode perder a força, pois a construção pode assumir ares de direito em si, aliás de um direito muito robusto e seguro para as partes, com oponibilidade erga omnes (perante terceiros), pois será devidamente registrado em cartório, mas deixando bem claro que somente o proprietário poderá cedê-lo a outrem.
 
Quanto ao direito de laje, na linha em que pensamos ser o ideal, sua relevância está na seara da regularização fundiária, com foco nas moradias construídas em núcleos urbanos informais ocupados predominantemente por população de baixa renda. Não apenas em favelas, mas em diversos núcleos urbanos que padecem da falta de regularização fundiária, seja por ausência de viabilidade jurídica, seja pelas implicações burocráticas que assolam o processo de regularização fundiária no Brasil.
 
Não podemos esquecer que o fenômeno do crescimento vertical das cidades é pulverizado, difuso. Ele se dá em áreas assentadas regularmente ou não. No caso das favelas, o fenômeno da verticalização é sentido como a formatação habitacional mais proeminente, inclusive fomentando o mercado imobiliário local, que, à margem de regulamentação, permite que grupos empoderados extraestatais se apropriem de tudo que envolvam as moradias de tais localidades, o que inclui construção, venda, locação e, de certo modo, o “registro” das aquisições na sede da associação de moradores.
 
Sem dúvida, a forma mais recorrente de constituir moradias em favelas é pelo direito de laje. O direito de laje vem sendo praticado há muitos anos nas áreas urbanas informais das cidades, em especial, no Rio de Janeiro. Portanto, como se nota, é uma prática institucionalizada de transacionar suas moradias. É bastante comum ver anúncios de “vende-se uma laje” em favelas cariocas. A população, por falta de tutela específica em sua formatação habitacional, resolveu incorporar e regulamentar o direito do seu modo. Foi uma maneira de autorregulamentação do espaço, administrando-o, por assim dizer.
 
ConJur — O direito real de laje foi instituído em 2016. Passados cinco anos, como avalia a implementação da prática dele?
Franco — Em 2016, havia um discurso sobre a necessidade latente em se criar um dispositivo legal que situasse o direito de laje dentro do ordenamento jurídico e, de alguma forma, viabilizasse, para fins de regularização fundiária, a inclusão das moradias erguidas nas favelas como parte integrante da cidade. Esse foi o contexto da Medida Provisória 759, posteriormente convertida na Lei 13.465/2017.
 
Contudo, mantiveram-se muitos entraves, que comprometeram a efetividade da aplicação do novo dispositivo à realidade das favelas. A começar pela necessidade do direito de propriedade como base para a existência do direito real de laje, como observa o artigo 1.510-A do Código Civil, ao determinar que será o proprietário de uma construção-base que cederá a superfície superior ou inferior de sua construção a fim de que o titular da laje mantenha unidade distinta daquela originalmente construída sobre o solo. A lei parte do pressuposto que o proprietário do prédio concede ao lajeiro a permissão de construir sobre seu imóvel, constituindo um direito real diferente do direito dominial, uma vez que afasta a aplicação da incorporação imobiliária.
 
Veja bem, se não há direito de propriedade, não haverá direito real de laje. Não havendo proprietário, não haverá quem ceda o direito de construir. Ou seja, algo inaplicável em favelas e em qualquer outro núcleo urbano informal, pela obvia ausência do direito de propriedade. O que a lei realmente positivou expressamente foi o direito de sobrelevação, uma das manifestações do direito real de superfície, ou uma sobrelevação atípica. O direito real de laje da lei não está englobando o direito de laje da vida.
 
ConJur — Na tese de doutorado, a senhora constatou que, na ausência de regularização, as moradias existentes nas favelas — em especial através do direito de laje — ficam à mercê de uma administração local, a margem do Estado constituído. A propagação do direito de laje ajudaria a reduzir a influência das milícias?
Franco — Não tenho a menor dúvida que a regularização implicará, em conjunto com outras medidas, redução substancial do poder das milícias nas áreas de favelas. Os moradores de núcleos urbanos informais ocupados predominantemente por população de baixa renda sempre ficaram expostos a milícias e ao desalijo de ações efetivas que contemplassem a habitação e o direito à moradia, que são coisas distintas. Esse pseudo vácuo do Estado não só permitiu, mas incentivou que as milícias assumissem a administração territorial, o gerenciamento e a legislação local. A regularização fundiária, através do direito de laje, permitirá que o morador seja incluído no sistema jurídico e no mercado formal. São facetas importantes da dignidade da pessoa humana, bem como na cidadania, uma vez em que o direito à moradia esta sendo tutelado eficazmente. Com isso, outras ações do Estado podem vir como consequência. Nesse aspecto, concede-se maior credibilidade à figura do Estado. Não se trata de costurar o tecido social rasgado, mas de pensar e elaborar ações que traduzam a unicidade urbana.
 
ConJur — Por que a opção de se criar um direito de laje em vez de atribuir direito de propriedade aos moradores de favelas?
Franco — A nossa sociedade idealizou o direito de propriedade, em boa parte, pela maneira como assumimos o patamar jurídico da propriedade e seu protagonismo nas leis. Nesse aspecto, a posse sempre foi vista como algo residual, quase marginal, a despeito da robusta fundamentação jurídica no contexto da lei civil material e adjetiva no Brasil, sem esquecer de sua relevância em sede social e econômica. Outra questão é como na atualidade temos redimensionado nosso olhar para outros institutos do Direito que realizam o sentido das aquisições e que incluem o uso e gozo dos bens, tirando o foco um pouco do direito de propriedade.
 
Tomemos como exemplo o direito de superfície e notaremos como ele é capaz de integrar um sentido socioeconômico fora da caixa de um direito perpétuo. A instituição do direito de laje alcança a posse do espaço aéreo. Se fossemos pensar em propriedade, teríamos que, a principio, pensar em incorporação imobiliária, situação jurídica absolutamente distante da realidade que desejamos englobar com o direito de laje. A questão da titulação em formatação da laje se justapõe na medida exata que existe o fato, ou seja, a posse de espaço aéreo em áreas publicas ou privadas ocupadas dentro dos padrões da usucapião especial urbana, preferencialmente em áreas pobres. Outro dado importante é a possibilidade de disponibilidade que o direito possuirá. O lajeiro terá a faculdade plena de dispor, o que inclui dar em garantia ou aliená-lo, o que importa em dimensões jurídicas, bem como de mercado. Do ponto de vista prático, a experiência tem-nos mostrado que toda vez que se fala em direito de propriedade persiste uma cultura de procedimentalização em nome da segurança jurídica, que acaba por cair em limbos burocráticos. Inúmeras áreas estão há décadas esperando seus títulos de domínio.
 
ConJur — O direito de laje pode ser usado como garantia real, como hipoteca ou alienação fiduciária?
Franco — Como é bem imóvel, as opções de uso do direito de laje como garantia seriam a hipoteca e a alienação fiduciária. Por uma questão de recorrência no mercado imobiliário e preferência das instituições financeiras, incluímos no Projeto de Lei 2.455/2021 a possibilidade de alienação fiduciária, demonstrando mais uma vez a dinâmica jurídica, social e econômica do direito real de laje.
 
ConJur — O direito de laje é passível de usucapião?
Franco — Usucapião é modalidade originária de aquisição do direito de propriedade e de outros direitos reais de uso e gozo. Nessa perspectiva, a laje encontra fundamento para aplicabilidade da usucapião. Cabe ressaltar que o delineamento do direito real de laje que está no PL se enquadra perfeitamente nos requisitos da usucapião especial urbana consignada na Constituição no artigo 183 e reproduzida no Código Civil e no Estatuto da Cidade (Lei 10.257/2001), ao estabelecer que aquele que possuir, como seu, espaço aéreo não superior a 250 metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, de terrenos públicos ou privados, tomados em projeção vertical, como unidade imobiliária autônoma, não contemplando as demais áreas edificadas ou não pertencentes ao proprietário da construção-base, tem a concessão do direito real de laje para fins de moradia ou direito real de laje, desde que não seja concessionário ou proprietário de outro imóvel urbano ou rural. O que temos é uma forma de posse do espaço aéreo, gerando, portanto, a usucapião do direito real de laje.
 
ConJur — Como o PL ajudaria a tornar o direito de laje mais eficaz?
Franco — O projeto contempla a realidade. Como explicado anteriormente, o atual direito real de laje não atende satisfatoriamente à regularização fundiária em habitações verticalizadas localizadas em núcleos urbanos informais ocupados predominantemente por população de baixa renda, desiderato da Lei 13.465/2017. Esse projeto foi idealizado por mim e pelo desembargador Marco Aurélio Bezerra de Melo (TJ/RJ) e está sendo proposto pelo deputado federal Altineu Côrtes (PL-RJ).
 
O que estamos propondo é o reconhecimento de que a posse do direito de laje constitui direito real autônomo, conferindo ao seu titular o direito de usar, gozar, dispor e reaver, podendo, portanto, ter a concessão do direito real de laje para fins de moradia ou o direito real de laje nos moldes da usucapião especial urbana, que é objeto do artigo 9º do Estatuto da Cidade, que reproduz o artigo 183 da Constituição, que é, por sua vez, reproduzido no artigo 1.240 do Código Civil. Somente com essa alteração no Código Civil é que o direito real de laje terá a eficiência necessária para atender às necessidades de milhares de brasileiros no que diz respeito à regularização fundiária de suas moradias.
 
O projeto ainda observa a possibilidade de cessão do direito, a titulo oneroso ou gratuito, e corrige uma injustiça da usucapião especial, uma vez que o possuidor não pode ser proprietário de outro imóvel. Se ele vier a herdar ainda que uma fração de direito sobre um imóvel, já está impedido de ser beneficiado com a usucapião especial, independentemente da situação. No projeto, os sucessores legítimos e testamentários não ficam impedidos de exercer o direito, ainda que sejam proprietários de outro imóvel urbano ou rural. É importante frisar que o direito de laje pode ser objeto de alienação fiduciária, o que concede mais amplitude econômica. De modo geral, podemos afirmar que a alteração será muito bem-vinda. Todos serão beneficiados.
 
ConJur — Como o poder público pode ajudar a concretizar o direito de laje?
Franco — Desburocratizando os processos. É absurdo que os processos de regularização fundiária se tornem tão longevos. O Judiciário melhorou substancialmente. Hoje já vemos um processo de usucapião começar e terminar. Com o advento da usucapião extrajudicial, os cartórios também podem contribuir. É um bom momento para o exercício da função social. Creio que os órgãos governamentais responsáveis pela gestão dos processos de regularização fundiária devem dinamizar os ritos, simplificando-os. O município, por força de lei, tem o protagonismo na regularização fundiária. Tal protagonismo não pode ser apenas político, tem que ser técnico. A gestão deve ser conectada a procedimentos céleres. A demora permite uma série de distorções, como a ação das milícias, o descrédito da população e, o que é pior, a falta de tutela a um direito social essencial na manutenção da dignidade da pessoa.
 
ConJur — O direito de laje só é atribuível a moradias em favelas? Ou vale para estabelecimentos empresariais de grande porte, por exemplo?
Franco — A Lei 13.465/2017 instituiu duas espécies de Reurb (regularização fundiária). A Reurb-S, que consiste na regularização fundiária aplicável aos núcleos urbanos informais ocupados predominantemente por população de baixa renda, assim declarados em ato do Poder Executivo municipal, e a Reurb-E aplicável aos núcleos urbanos informais ocupados por população não qualificada na hipótese da Reurb-S. Os imóveis existentes nas duas situações podem ser englobados pelo direito real de laje, o que demonstra a alta capacidade de efetividade desse direito. Sem a menor dúvida, creio que o Direito real de laje, após a alteração que projetamos, será um valioso protagonista na regularização fundiária no Brasil, contribuindo eficazmente com a organização urbana das cidades, bem como ajudando a incluir milhares de imóveis no mercado formal.