Recente artigo publicado pelos professores Fernando Rodrigues Martins, Guilherme Magalhães Martins e Claudia Lima Marques nos dá conta de que tramitam no Poder Executivo Federal duas propostas de medidas provisórias, concebidas e gestadas no Ministério da Economia, que colocam em xeque o sistema registral imobiliário nacional, alteram a disciplina das garantias reais e vão de encontro à louvável e também recente iniciativa legislativa de combate ao superendividamento (lei 14.181/2021), abrindo caminho para uma “bolha imobiliária à brasileira”, à semelhança da que se verificou nos Estados Unidos em 2007.
 
Em busca de maiores detalhes sobre tais propostas, tivemos acesso às respectivas minutas e analisamos detidamente todos os dispositivos das pretensas medidas provisórias. A partir desse estudo, pudemos concluir, dentre outras coisas, que, além dos problemas apontados pelos referidos articulistas, há outros de ordem bastante prática e não menos importantes, a exemplo da dificuldade que a aprovação das duas medidas traria para a cobrança dos débitos relativos às contribuições condominiais, algo muito frequente nos médios e grandes centros urbanos.
 
Antes de adentrarmos no problema envolvendo os condomínios edilícios, parece-nos importante registrar que, a despeito do que sugerem os mencionados professores que publicaram o artigo que despertou nosso interesse, os novos institutos jurídicos idealizados pelas duas propostas de medidas provisórias, a nosso ver, não introduziriam em nosso sistema o denominado home equity.
 
No artigo em comento, seus autores afirmam que “há a expectativa do mercado de que o home equity (…) aumentará a segurança jurídica das instituições financeiras para o fornecimento de créditos aos consumidores, o que possibilitará, via de consequência, a sempre sonhada redução de juros no setor financeiro e imobiliário”. Todavia, esse é um discurso que é reproduzido no Brasil há anos e que foi muito entoado – com poucos resultados práticos – especialmente na segunda metade da década de 90, com o advento da denominada Lei da Alienação Fiduciária – lei 9.514/1997.
 
Ousamos afirmar que os novos institutos gestados pelas duas propostas de medidas provisórias não instituiriam no Brasil o denominado home equity porque, conforme afirmam os próprios articulistas, tal instituto seria um “empréstimo de pessoa natural garantido pelo imóvel residencial, mesmo que bem de família”.
 
Traduzindo para os institutos jurídicos brasileiros, podemos afirmar que, guardadas as particularidades dos ordenamentos jurídicos estrangeiros, notadamente o norte-americano, home equity não é uma novidade para nós, sendo uma modalidade de empréstimo há décadas utilizada em nosso país, antes por meio da hipoteca, e mais recentemente por meio da alienação fiduciária em garantia. Há sutis diferenças, é claro, até porque os Estados Unidos é um país de tradição jurídica alicerçada na common law, enquanto o ordenamento jurídico brasileiro é tradicionalmente calcado na civil law.
 
Conforme as lições de Melhim Challub, home equitiy, no jargão do mercado, são os empréstimos sem destinação específica, justamente dentro desse contexto em que o imóvel residencial do mutuário é dado como garantia do negócio. Fica claro, portanto, que se trata de um instituto desde há muito presente na realidade brasileira.
 
Mas, afinal, do que tratam essas duas propostas de medidas provisórias que tanto desconforto têm provocado na comunidade jurídica, conforme facilmente pudemos constatar em conversas com colegas acadêmicos?
 
A primeira das propostas procura criar o denominado serviço de gestão especializada de garantias, que viabilizaria a criação das chamadas IGG (Instituições Gestoras de Garantias), em síntese, instituições financeiras que, também no exercício de tal mister, ficariam subordinadas e seriam fiscalizadas pelo BC (Banco Central) e pelo CMN (Conselho Monetário Nacional).
 
A segunda proposta busca criar um novo título de crédito, o chamado TPI (Título de Propriedade Imobiliária). Curiosamente, essa segunda proposta, em seu artigo 12, pretende alterar a redação do inciso I do artigo 2º da primeira proposta, a fim de que conste, em tal dispositivo, não apenas “gestão administrativa das garantias”, mas “gestão administrativa das garantias constituídas diretamente sobre bens imóveis ou móveis, ou sobre títulos representativos de cotas de propriedade de bens móveis ou imóveis” como uma das atividades a cargo das IGG.
 
De fato, é no mínimo curioso que, em se tratando de ainda propostas de medidas provisórias que se interrelacionam e se complementam, uma tenha que alterar a redação da outra. Ora, se são apenas propostas sendo gestadas e se estão intimamente ligadas uma à outra, em perfeita harmonia, por que já não dar a redação pretendida diretamente na respectiva proposta? Trata-se, a nosso ver, de mais uma das tantas mazelas do complexo e imperfeito processo legislativo brasileiro. Outro exemplo dessas mazelas é que os temas tratados nas duas propostas flagrantemente não preenchem os requisitos de relevância e urgência exigidos pelo artigo 62 da Constituição Federal de 1988, dispositivo esse que vem há décadas sendo violado impunemente pelo Poder Executivo Federal.
 
Seja como for, o fato é que as duas propostas procuram criar um novo título de crédito, o TPI, que seria de fácil circulação no mercado de capitais, mediante a gestão especializada das IGG, subordinadas e fiscalizadas pelo BC e pelo CMN.
 
Esse sistema desburocratizaria e tornaria mais dinâmica a circulação econômica do sistema de garantias creditícias, facilitando e dando mais segurança ao processo de concessão de financiamentos, o que, em última análise, reduziria – ao menos em tese – as taxas de juros, gerando mais negócios e aquecendo a economia.
 
O que se tem alardeado na comunidade jurídica é que tais medidas praticamente eliminariam o atual sistema registral imobiliário brasileiro, exercido pelos Cartórios de Registros de Imóveis sob rigorosas normas e fiscalização do Poder Judiciário e do Conselho Nacional de Justiça, transferindo-o para agentes do mercado financeiro, que estariam sob uma fiscalização muito mais flexível e juridicamente frágil, exercida pelo BC e pelo CMN.
 
Com todo o respeito a quem pensa de modo diverso, não é bem disso que se trata, pois o artigo 6º da segunda proposta de medida provisória assim preceitua:
 

Art. 6º A emissão do TPI deverá ser averbada no registro de imóvel competente que fará constar da matrícula do imóvel a sua emissão, a instituição do regime de depósito centralizado do TPI, bem como a transferência da titularidade do TPI para o depositário central.

 
Como se vê, a emissão do pretenso novo título de crédito necessariamente teria de ser averbada no respectivo Cartório de Registro de Imóveis, devendo constar de tal averbação informações acerca de qual seria a IGG responsável pelo depósito e gestão do TPI.
 
Não queremos com isso dizer que as propostas são boas e harmônicas com o nosso atual ordenamento jurídico, muito pelo contrário, mas nos parece excessivo dizer que os projetos em gestação simplesmente eliminariam o atual sistema registral imobiliário brasileiro, transferindo-o para agentes financeiros.
 
De fato, as propostas nos parecem perigosas, pois flexibilizam o princípio da concentração dos atos registrais na matrícula do imóvel – consagrado pelos artigos 54 a 58 da lei 13.097/2015 -, assegurando que haja publicidade adequada apenas acerca da emissão de TPI onerando o imóvel registrado, mas retirando da matrícula do imóvel relevantíssimas informações, especialmente acerca da atual titularidade do título cambial em questão, já que a gestão e a escrituração da respectiva circulação estará a cargo do mercado financeiro, especificamente de uma IGG.
 
Tais propostas certamente provocam insegurança jurídica e burocratizam a obtenção de informações essenciais sobre os imóveis, já que os interessados teriam de buscar tais dados não apenas no Cartório de Registro de Imóveis, mas também na IGG responsável pelo depósito e pela gestão do TPI emitido.
 
Mas, em se tratando de processo legislativo brasileiro, nada é tão ruim que não possa piorar. O artigo seguinte da mesma minuta, ou seja, o artigo 7º da segunda proposta de medida provisória, assim preceitua:
 

Art. 7º A partir da emissão da TPI todas as operações de crédito relacionadas ao imóvel associado ao TPI deverão ser registradas no sistema de depósito autorizado em que o título estiver escriturado e depositado, ficando vedada a negociação ou qualquer tipo de oneração do imóvel enquanto da existência do TPI e operações relacionadas, cabendo a realização de ônus e gravames sobre o imóvel, inclusive bloqueios administrativos ou judiciais ou quaisquer constrições decorrentes de quaisquer dívidas ou obrigações do proprietário do imóvel, exclusivamente com base nas TPIs, por meio do sistema de depósito (grifos nossos).

 
Trata-se, a nosso ver, de uma verdadeira aberração jurídica, caracterizando inclusive uma flagrante ofensa ao princípio constitucional da inafastabilidade do controle jurisdicional, pois, dentre outras atrocidades, o dispositivo em questão sugere que uma penhora, por exemplo, não poderia ser averbada na matrícula do imóvel, devendo ser levada a efeito exclusivamente com base nos TPI, por meio do sistema de depósito, gerido pelas IGG.
 
O que se percebe, portanto, é que as duas propostas de medidas provisórias sob análise efetivamente são perigosíssimas e estão em dissonância com o nosso ordenamento jurídico, mas não exatamente pelos motivos propagados até aqui, mas por outras e talvez até mais graves razões.
 
Como um dos inúmeros exemplos dos impactos negativos que adviriam da aprovação dessas propostas, poderíamos citar os desafios que os condomínios edilícios passariam a enfrentar para promover a cobrança de débitos de contribuições condominiais, que, como sabemos, têm natureza propter rem.
 
Com efeito, Flávio Tartuce leciona que “nunca se pode esquecer que as despesas condominiais constituem obrigações propter rem ou próprias da coisa, denominadas obrigações ambulatórias, pois seguem a coisa onde quer que ela se encontre”.
 
Além de ter de buscar informações sobre a titularidade dos direitos sobre o imóvel nos Cartórios de Registro de Imóveis, os condomínios edilícios teriam também de buscar informações junto às IGG, quando houver algum TPI emitido com lastro no imóvel em relação ao qual existiriam os débitos.
 
Como se não bastasse, os condomínios edilícios ainda enfrentariam sérios entraves por ocasião da execução de seus créditos, tradicionalmente satisfeitos por meio da penhora e alienação em hasta pública do próprio imóvel que gerou os débitos. A partir da exegese do já referido e malfadado artigo 7º, tal satisfação teria que se dar por meio do sistema cambial de TPI, gerido por uma IGG. Em outras palavras, a garantia da satisfação dos débitos condominiais, antes consubstanciada no próprio imóvel, passaria a ser representada por um papel, por um título de crédito.
 
Trata-se, a nosso ver, de um grande retrocesso, pois reinseriria no contexto da cobrança condominial a insegurança jurídica que já pairou, por exemplo, acerca de quem seria o responsável pelo débito condominial, se o titular do domínio no registro de imóveis ou o compromissário comprador, assim qualificado por um instrumento particular não levado a registro. Depois de muitas idas e vindas, o tema se pacificou em 2015, quando o STJ firmou a tese de que “havendo compromisso de compra e venda não levado a registro, a responsabilidade pelas despesas de condomínio pode recair tanto sobre o promitente vendedor quanto sobre o promissário comprador, dependendo das circunstâncias de cada caso concreto”.
 
Dúvidas e insegurança jurídica também já houve acerca de despesas condominiais envolvendo imóvel gravado por alienação fiduciária em garantia. A responsabilidade pelo pagamento seria do credor fiduciário ou do devedor fiduciante? A solução acabou sendo dada pelo § 8º do artigo 27 da já referida Lei da Alienação Fiduciária, parágrafo esse incluído pela lei 10.931/2004, que estabeleceu que o devedor fiduciante é o responsável, dentre outras, por tais despesas, até a data em que o credor fiduciário vier eventualmente a ser imitido na posse do imóvel.
 
Todavia, para o nosso espanto ainda maior, o § 2º do artigo 10 da segunda proposta de medida provisória, que pretende criar o TPI, assim preceitua: “Não serão aplicáveis no processo de execução relacionados ao TPI os artigos 26, 26-A, 27 e 30 da lei 9.514, de 1997”.
 
Ou seja, acaso aprovadas as infelizes propostas de medidas provisórias sob análise, não mais se aplicaria, pelo menos não na execução de débitos condominiais envolvendo imóvel gravado por TPI, a solução quanto à responsabilidade do devedor fiduciante até a imissão do credor fiduciário na posse do imóvel, haja vista que tal solução está inserida justamente num parágrafo, o 8º, do artigo 27 da lei 9.514/1997.
 
Em síntese, a eventual aprovação dessas duas propostas de medidas provisórias que estão em gestação no âmbito do Poder Executivo Federal, precisamente no Ministério da Economia, instaurarão não apenas o serviço de gestão especializada de garantias e o título de propriedade imobiliária, mas também um verdadeiro caos no que se refere à cobrança de despesas condominiais.
 
Por essas e por outras, recomenda-se que a sociedade civil, especialmente a comunidade jurídica, esteja atenta e unida contra a aprovação desse verdadeiro “lobo sob a veste de cordeiro” – ou “retrocesso sob a aparência de modernidade” – representado por esses viciados institutos jurídicos que se pretende inserir no Direito Imobiliário e Condominial brasileiro.