Sabe-se que o direito de suceder ou de receber herança não é absoluto e possui limitações impostas pela lei, as quais, em síntese, visam a repelir situações em que o herdeiro não seria digno de ser agraciado pela sucessão e, portanto, dela deveria ser excluído.
 
A premissa dessa limitação ao direito de sucessão se baseia em uma questão de ordem ética e moral, que seria a afeição real ou ao menos presumida do falecido ao seu sucessor, sendo certo que a ruptura dessa afetividade por meio da prática de atos gravemente reprováveis, criminosos e que manifestam profundo desapreço e ingratidão para com o de cujus, torna o herdeiro indigno de receber a herança, como bem ensina Carlos Roberto Gonçalves.
 
Dito isso, a problemática aqui apontada surge quando se constata que foram apenas três as situações escolhidas pelo legislador para representar essa quebra de afetividade a ponto de ensejar a exclusão do herdeiro em razão de sua indignidade, o que pode ser verificado no artigo 1.814, do Código Civil de 2002:
 
Artigo 1.814 — São excluídos da sucessão os herdeiros ou legatários:
 
I – que houverem sido autores, co-autores ou partícipes de homicídio doloso, ou tentativa deste, contra a pessoa de cuja sucessão se tratar, seu cônjuge, companheiro, ascendente ou descendente;
II – que houverem acusado caluniosamente em juízo o autor da herança ou incorrerem em crime contra a sua honra, ou de seu cônjuge ou companheiro;
III – que, por violência ou meios fraudulentos, inibirem ou obstarem o autor da herança de dispor livremente de seus bens por ato de última vontade.
 
A grande questão é: somente mesmo nessas três hipóteses específicas é que o herdeiro pode ser considerado indigno e, consequentemente, excluído da sucessão, ou caberia, no caso concreto, uma interpretação extensiva do rol estabelecido pelo legislador? Com necessária cautela, nos alinhamos à segunda alternativa.
 
A jurisprudência majoritária tem seguido o entendimento de que as hipóteses previstas no artigo 1.814 do Código Civil são taxativas e não comportam interpretação extensiva, uma vez que a exclusão do herdeiro equivaleria a uma medida sancionatória e restringiria de maneira grave o direito à herança. Nesse sentido, observa-se o relevante precedente do STJ constante do REsp 1.102.360/RJ, que tem norteado os Tribunais locais sobre essa questão, como em recente julgado do TJSP (Apelação Cível 1002307-93.2020.8.26.0361).
 
É inegável, todavia, que os casos concretos, ao longo desses quase 20 anos de vigência do Código Civil de 2002, têm demonstrado que a taxatividade do rol se afigura insuficiente para contemplar todas as situações em que a ética e a moral — de onde exsurge o princípio para a criação da regra da indignidade, lembre-se — consideram um ato indigno.
 
Nesse contexto, veja-se que embora o legislador tenha arrolado o homicídio doloso (ou mesmo sua tentativa) nas hipóteses de exclusão do herdeiro da sucessão por indignidade, em que a pena na forma simples do crime não supera os 20 anos de reclusão, ele não previu, por exemplo, o crime de estupro como ação indigna, nem mesmo se, do estupro, resultar a morte, cuja pena atinge até 30 anos de reclusão.
 
A pena, contudo, é apenas um critério objetivo aludido para contribuir na ideia que aqui se defende, mas a verdade é que, voltando-se o olhar para os valores éticos e morais que alicerçam a indignidade legal, bem se vê que um crime de estupro praticado contra um familiar próximo — mãe, pai, filho, irmão —, grave a ponto de resultar em morte, causa muito mais angústia e repulsa e infringe ainda mais profundamente a moral e a ética do que um homicídio simples.
 
Não se está, absolutamente, atenuando o peso do homicídio em nosso ordenamento e como tamanha atrocidade menoscaba os princípios éticos e morais do Direito, mas não se pode negar que o estupro merece igual atenção do legislador para atingir o enquadramento legal de ação indigna. Poucos, ou nenhum, são os atos que tornam o homem tão indigno da humanidade quanto o estupro, quem dirá de receber a herança da vítima.
 
Se o paralelo do estupro com o homicídio não é o suficiente para convencer nossos estimados leitores, veja-se que a conduta do inciso II do artigo 1.814 beira a futilidade quando comparada com outro exemplo não contemplado por nossa legislação, como o latrocínio.
 
Novamente, muito embora os crimes contra a honra tenham sua relevância, a qual é até potencializada no contexto familiar, não se pode, nem de longe, admitir que tais desavenças alcançam o mesmo patamar de antieticidade e imoralidade que o latrocínio.
 
Outros exemplos alarmantes não previstos pelo legislador são os crimes de induzimento, instigação ou auxílio ao suicídio. Embora nesses casos as penas sejam mais brandas, nos parece claro que o herdeiro que se motiva a ajudar o de cujus a cometer suicídio para receber sua fatia da herança o quanto antes deve ser considerado tanto indigno quanto o homicida.
 
Felizmente, a jurisprudência, ainda que minoritária até aqui, já vem esboçando sua preocupação com essa limitação do nosso Código Civil e trazendo alternativas; soluções.
 
Exatamente nesse sentido de que, por vezes, será necessária a interpretação expansiva do artigo 1.814 para se alcançar o objetivo de excluir aqueles que não merecem fazer parte da herança, decidiu o TJAP ao julgar a apelação 0031105-80.2013.8.03.0001. Com precisão ímpar, assertivamente discorreu o desembargador Relator Carmo Antônio em seu voto, ao se deparar com uma ação de indignidade cujo plano de fundo era um crime de latrocínio:
 
“[…] não se pode negar que apesar de o referido dispositivo não albergar específica e expressamente o crime de latrocínio, tal como afirmado pelo Juiz sentenciante, do inciso primeiro concluiu-se que aquele que o comete atenta contra os princípios basilares de justiça e da moral, demonstrando, inclusive, falta de afeição, solidariedade e gratidão para com o de cujus. Daí a necessidade da reprimenda, também. Afinal, se uma simples ofensa caluniosa (crime contra a honra) pode ensejar a declaração de indignidade e, por conseguinte a exclusão da sucessão (artigo 1814, II, do CC), com muito mais razão um latrocínio.”
 
Vê-se, pois, que a indignidade foi um conceito mal abordado pelo Código Civil de 2002, pelo que resta a nós, operadores do direito, enfrentar essa sensível questão para alcançarmos aquilo que o legislador de 2002 não conseguiu: impedir que a herança dos dignos seja contaminada pela cólera de todos os atos de indignidade.
 
É desafiando esses difíceis temas que o legislador será provocado a rever a legislação que se apresenta incipiente, o que, inclusive, já se ensaiou quando da propositura do interessante PL 867/2011 — que, dentre outras coisas, amplia as hipóteses de reconhecimento de indignidade —, mas que caminha sem prioridade e a passos de tartaruga no Congresso Nacional.