A desjudicialização é um caminho necessário para o desenvolvimento de qualquer país, e o Brasil tem se empenhado para seguir a corrente. Há algum tempo é nítido o esforço empreendido pelos Poderes Executivo, Judiciário e Legislativo para prestigiar procedimentos extrajudiciais envolvendo bens imóveis e tornar mais eficaz o sistema registral, a fim de conferir maior fluidez e segurança jurídica ao ambiente de negócios, inclusive os imobiliários. Nesse processo estrutural e revolucionário, os cartórios têm exercido papel central e relevante.
Caminha-se a passos largos para um registro totalmente informatizado e cada vez mais célere e acessível. Ainda há, todavia, gargalos a serem enfrentados, e um deles diz respeito ao procedimento de dúvida previsto no art. 198 da Lei nº 6.015/73 (“LRP”).
Embora tenha natureza administrativa (art. 204), a dúvida é julgada por um juiz de direito, com intervenção do Ministério Público, e em alguns Estados, como no Rio de Janeiro, é sujeita a duplo grau obrigatório de jurisdição. Pior: com exceção das grandes comarcas, que possuem varas especializadas, o processo é julgado por um juiz de vara cível, ou até de vara única, já sobrecarregado por feitos de naturezas diversas e muitas vezes sem vivência com as especificidades do Direito Registral. O resultado não poderia ser outro senão uma tramitação lenta e sujeita a entendimentos diversos, e por vezes incompatíveis com o sistema registral.
Na maioria dos casos o tempo é crucial para o interessado no registro, e esperar mais de um ano por uma decisão incerta é uma opção pouco aceitável – o que leva à subutilização desse instrumento tão importante, hoje evitado a todo custo pelo jurisdicionado, que prefere o “mal menor” e, quando viável, cumpre a exigência equivocada para ter o ato registral efetivado. Quando é impossível atender à exigência e a dúvida é a única via, o prejuízo pode ser incalculável.
O que fazer, então, para resolver o gargalo? O objetivo deste breve artigo é chamar atenção para o problema, e lançar ideias para reflexão, de modo a estimular a discussão e, quem sabe, viabilizar a adoção de medidas pontuais e outras estruturais que sejam capazes de aperfeiçoar o sistema.
1) Jornadas de Direito Notarial e Registral
Quando o Código Civil de 2002 foi aprovado, surgiu a ideia de reunir no Conselho da Justiça Federal (CJF) civilistas de todo o país para discutirem os diversos aspectos da nova lei a fim de aprovarem enunciados mediante consenso dos presentes. A experiência foi um sucesso absoluto, e em 2022 será realizada a IX Jornada de Direito Civil. Nas oito primeiras jornadas foram aprovados mais de 600 enunciados, que vêm exercendo importante papel de orientação de toda a comunidade jurídica.
O exemplo bem-sucedido ensejou a realização de outras jornadas: (i) Direito Comercial; (ii) Direito Administrativo; (iii) Direito Tributário; (iv) Direito e Processo Penal; (v) Direito Processual Civil; (vi) Direito Eleitoral; (vii) Internacional Direito e Justiça – Justiça e Integração; e (viii) Prevenção e Solução Extrajudicial de Litígios.
A criação das Jornadas de Direito Notarial e Registral, com a participação não apenas de notários e registradores, mas também de outros profissionais da área, é medida que, se adotada, permitiria a rica discussão dos temas com múltiplas visões, e a aprovação de enunciados de caráter nacional, com alto grau de legitimidade, que representarão um poderoso auxílio não só para prevenir procedimentos de dúvida, como para outros assuntos da área.
2) Consultas extrajudiciais vinculantes
Outra medida que poderá resolver inúmeros casos sem a necessidade de suscitação de dúvida seria a criação de um procedimento extrajudicial de consulta, disponibilizado ao interessado, mediante remuneração específica, com as seguintes características:
(i) a consulta, em cada Estado e no Distrito Federal, seria analisada por um órgão especializado, fazendo com que as respostas (“Solução de Consulta”) sejam mais céleres e técnicas;
(ii) o acionamento do órgão seria facultativo, isto é, o interessado continuaria, a qualquer tempo, com a disponibilidade da dúvida;
(iii) realizada a consulta, estaria afastada a “omissão do interessado” prevista no art. 205 da LRP, garantindo-se o sobrestamento dos efeitos da prenotação até a respectiva resposta;
(iv) a Solução de Consulta não comportaria recurso, e no caso de exigência descabida a resposta seria vinculativa para o oficial de registro de imóveis; e
(v) cria-se um banco unificado de Soluções de Consulta, alimentado pelos órgãos de cada Estado e do DF, com preservação de dados sensíveis, a fim de dar publicidade às respostas, aumentando a chance de uniformização de entendimentos em todo o país e diminuindo drasticamente as controvérsias. Isso permitiria até mesmo o uso da inteligência artificial para a identificação de casos repetitivos, reduzindo ainda mais o volume de trabalho e acelerando as respostas.
Frise-se que o Brasil não estaria inventando a roda. A Espanha tem a Dirección General de Registros y del Notariado (DGRN) e em Portugal há o Instituto dos Registos e do Notariado – IRN, ambos com poderes de julgamento em matéria notarial e registral, com efeito vinculante.
3) Aprimoramento do procedimento de dúvida
As duas primeiras medidas, como visto, poderão afunilar os procedimentos de dúvida, resolvendo boa parte dos casos. Para os casos em que a parte, diretamente ou após Solução de Consulta desfavorável, preferir a via da dúvida, mesmo aqui é possível melhorar.
A recente Medida Provisória 1.085/21 promove ajustes de redação nos artigos 188 e 198 da LRP, a fim de tornar o texto mais claro e, adaptando-se aos novos tempos, prever que a declaração de dúvida e os respectivos documentos serão remetidos eletronicamente ao juízo. Além disso, ela estabelece: (i) que o exame do título deve ocorrer em 10 dias (o prazo anterior era de 30 dias), contados da data do protocolo (antes a lei não especificava o termo inicial); e (ii) que as exigências, de forma clara e objetiva, e articuladamente, devem ser formuladas de uma só vez, evitando-se exigências a conta-gotas, que postergam indefinidamente o registro do título.
Embora elogiáveis, as alterações ainda são tímidas. O procedimento de dúvida, na imensa maioria dos casos, é moroso, geralmente julgado por magistrados que não possuem intimidade com a matéria notarial e registral, e com isso sujeito a erros que prejudicam todo o sistema. Seu aperfeiçoamento é urgente e necessário.
É preciso avançar, e algumas medidas podem abrir as portas para tal melhoria. São elas, exemplificativamente:
(i) eliminação da intervenção do Ministério Público. A ausência de interesse público é patente e sua atuação traz mais problemas que benefícios;
(ii) explicitação do início do prazo de resposta do interessado. Com a atual indefinição da regra, hoje há casos de preclusão, pois o interessado fica aguardando sua intimação para responder, mas certos juízes entendem que o prazo corre da distribuição judicial da dúvida, tendo em vista que o interessado já tinha sido cientificado pelo oficial registrador da sua petição de suscitação da dúvida;
(iii) julgamento por um órgão especializado do Tribunal de Justiça de cada Estado e DF, de competência originária, sem tramitação em primeira instância, e com grau único de jurisdição; e
(iv) tramitação sumária do feito, com prazo para a prolação da decisão.
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A dúvida registral é um desafio que precisa ser enfrentado, especialmente em tempos de contínuo aprimoramento e informatização dos registros públicos. As soluções ora propostas talvez não sejam as únicas, e certamente podem ser aperfeiçoadas, a fim de se tornarem uma realidade. O que estamos esperando?