Inaplicabilidade da tese do Tema 622, julgado pelo STF
Com enorme impacto para a teoria e prática, o STF julgou, no ano de 2016, a repercussão geral relativa à parentalidade socioafetiva. Conforme a tese firmada, “a paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante, baseada na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios” (Recurso Extraordinário 898.060/SC, com repercussão geral, Rel. Min. Luiz Fux, j. 21.09.2016, publicado no seu Informativo 840, Tema 622).
Como já destaquei em textos anteriores, não se pode negar que uma das grandes contribuições do aresto foi consolidar a posição jurídica de que a socioafetividade é forma de parentesco civil, em posição igualitária frente ao parentesco consanguíneo. Nesse sentido, destaque-se o seguinte trecho do voto do Ministro Relator Luiz Fux:
“A compreensão jurídica cosmopolita das famílias exige a ampliação da tutela normativa a todas as formas pelas quais a parentalidade pode se manifestar, a saber: (i) pela presunção decorrente do casamento ou outras hipóteses legais; (ii) pela descendência biológica; ou (iii) pela afetividade. A evolução científica responsável pela popularização do exame de DNA conduziu ao reforço de importância do critério biológico, tanto para fins de filiação quanto para concretizar o direito fundamental à busca da identidade genética, como natural emanação do direito de personalidade de um ser. A afetividade enquanto critério, por sua vez, gozava de aplicação por doutrina e jurisprudência desde o Código Civil de 1916 para evitar situações de extrema injustiça, reconhecendo-se a posse do estado de filho, e consequentemente o vínculo parental, em favor daquele que utilizasse o nome da família (nominatio), fosse tratado como filho pelo pai (tractatio) e gozasse do reconhecimento da sua condição de descendente pela comunidade (reputatio)” (STF, Recurso Extraordinário 898.060/SC, Tema n. 622).
Como se pode notar, o julgado aponta que a parentalidade socioafetiva é fundada na posse de estado de filho, tendo como parâmetros os seus critérios já consolidados em doutrina: nome, tratamento e reputação, a tríade nominatio, tractatio e reputatio. Além do reconhecimento da parentalidade socioafetiva como forma de parentesco, tenho destacado outros três aspectos de seu conteúdo.
O primeiro deles é o reconhecimento expresso, o que foi feito por vários Ministros, de ser a afetividade um valor jurídico e um princípio inerente à ordem civil-constitucional brasileira.
O segundo aspecto, frise-se, diz respeito ao fato de estar a parentalidade socioafetiva – cujo fundamento legal é o art. 1.593 do CC/2002, pela menção à “outra origem” -, em situação de igualdade com a paternidade biológica. Em outras palavras, não há hierarquia entre uma ou outra modalidade de filiação, o que representa um razoável e desejável equilíbrio.
O terceiro é último aspecto do decisum superior é a vitória da multiparentalidade ou pluriparentalidade, que passou a ser admitida pelo Direito brasileiro, mesmo que contra a vontade do pai biológico. Ficou claro, pelo julgamento, que o reconhecimento do vínculo concomitante é para todos os fins, inclusive alimentares e sucessórios. De toda sorte, como se retira da tese final do julgamento, é possível o reconhecimento do vínculo biológico concomitante desde que exista um vínculo de parentalidade socioafetiva prévio, fundado na posse de estado de filhos. Esse foi o caso levado a julgamento ao STF.
Conforme tenho sustentado, emergem grandes desafios dessa tese, mas é tarefa da doutrina, da jurisprudência e dos aplicadores do Direito resolverem os problemas que surgem, de acordo com os casos concretos colocados a julgamento pelo Poder Judiciário. Uma das hipóteses de enorme debate sobre a incidência ou não da tese do Tema n. 622 diz respeito à existência de adoção prévia.
Em uma análise superficial do panorama jurídico que emergiu com a decisão do STF poder-se-ia afirmar que deve ser reconhecido o duplo vínculo de paternidade nessas situações, tanto em relação ao pai adotivo como também em relação ao suposto pai biológico. Entretanto, como alerta Ricardo Calderon, em comentários à decisão do STF, “aspecto central nesta temática é que o caso concreto em si deverá indicar qual a decisão mais acertada para aquela situação fático-jurídica, o que não recomenda que se adotem soluções apriorísticas. Apenas a análise da situação em pauta poderá permitir concluir se naquele caso específico deve prevalecer uma dada modalidade de filiação, ou ainda, se devem coexistir ambas as modalidades em multiparentalidade. A manutenção de vínculos concomitantes passa a ser mais uma opção que se oferta para o acertamento de casos concretos que envolvam a questão” (CALDERÓN, Ricardo. O princípio da afetividade no Direito de Família. Rio de Janeiro: Forense, 2ª Edição, 2017, p. 217).
Nesse contexto, penso que a tese exarada pelo STF quando do julgamento do Tema 622 não incide para os casos de adoção, que é totalmente irrevogável no sistema jurídico brasileiro. Pensar o contrário feriria a legislação prevista a respeito desse instituto e o colocaria em total descrédito.
Vale lembrar que, sob a égide do Código Civil de 1916 e da lei 6.697/79, já se admitia a modalidade da adoção plena. Consoante o art. 29 do último diploma legal, “a adoção plena atribui a situação de filho ao adotado, desligando-o de qualquer vínculo com pais e parentes, salvo os impedimentos matrimoniais”. Ademais, como estava no seu art. 37, “a adoção plena é irrevogável, ainda que aos adotantes venham a nascer filhos, as quais estão equiparados os adotados, com os mesmos direitos e deveres”.
Tais previsões foram confirmadas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (lei 8.069/90), que ora rege o instituto da adoção. Prevê o seu art. 41, caput, que “a adoção atribui a condição de filho ao adotado, com os mesmos direitos e deveres, inclusive sucessórios, desligando-o de qualquer vínculo com pais e parentes, salvo os impedimentos matrimoniais”. E mais, nos termos do seu art. 39, “a adoção de criança e de adolescente reger-se-á segundo o disposto nesta lei. § 1º. A adoção é medida excepcional e irrevogável, à qual se deve recorrer apenas quando esgotados os recursos de manutenção da criança ou adolescente na família natural ou extensa, na forma do parágrafo único do art. 25 desta Lei” (Incluído pela lei 12.010, de 2009).
O entendimento pela não aplicação da tese do Tema 622 do Supremo Tribunal Federal aos casos de adoção é compartilhada por João Ricardo Brandão Aguirre. Segundo as suas palavras, “a partir dessa fundamental premissa, é possível se responder às questões relacionadas à adoção e às técnicas de reprodução assistida, posto que pleitos pautados apenas pela intenção de se obter vantagens patrimoniais ou econômicas não devem prosperar. Deste modo, o adotado que pretende desconstituir o vínculo de parentesco estabelecido com a nova família em virtude da adoção, apenas para pleitear a herança de um parente natural ou para dele requerer alimentos, não deve ter seu pedido conhecido, pois que a ausência da socioafetividade afasta a possibilidade de reconhecimento da multiparentalidade, ressalvando-se o direito de o adotado conhecer a sua origem biológica, consoante disposto pelo art. 48 do ECA. Isso significa dizer que o vínculo meramente biológico não é capaz de produzir os efeitos decorrentes das relações de parentesco, em razão da ausência da afetividade, mas será capaz de garantir o exercício do direito à identidade. O mesmo se diga daqueles que pretendem o reconhecimento da multiparentalidade com os doadores de sêmen ou de qualquer outro material genético para clínicas de reprodução assistida, eis que a eles está garantido o direito de conhecerem a origem genética, mas não os efeitos decorrentes da multiparentalidade, posto não existir a relação socioafetiva” (AGUIRRE, João Ricardo Brandão. Reflexões sobre a multiparentalidade e a repercussão geral nº 622 do STF. Direito das relações familiares contemporâneas: estudos em homenagem a Paulo Luiz Netto Lôbo. Coordenação: Marcos Ehrhardt, Fabíola Albuquerque Lobo e Gustavo Andrade. Belo Horizonte: Fórum, 2019, p. 207-208). E mais, citando José Fernando Simão, em entendimento que conta com o meu total apoio:
“Assim sendo, é possível se afirmar, forte no escólio de José Fernando Simão, que 'o doador de esperma, na hipótese de técnica de reprodução assistida heterólogo, não é pai, mas apenas ascendente genético'. Também no caso de adoção 'há rompimento dos vínculos de filiação com a família genética, ou seja, o filho terá apenas o pai adotivo, sendo que aquele que um dia foi seu pai assume o status apenas de ascendente genético'. E, por fim, aquele que desconhece o fato de possuir um filho biológico, pois sua namorada não contou da gravidez, por exemplo, 'e um dia descobre que esse filho foi criado por outro homem, a quem chama de pai, não é pai, mas apenas ascendente genético'. Isso porque não há, em nenhum desses casos, relação socioafetiva capaz de dar fundamento à multiparentalidade”.
Na mesma linha, afirmam Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho, que “em nosso sentir, apenas ilustrando, pensamos não ser possível a aplicação da tese em caso de adoção – por expressa disposição de lei – nem aos filhos havidos por inseminação artificial heteróloga” (Novo Curso de Direito Civil. Volume 6. Direito de Família. São Paulo: Saraiva, 11ª Edição, 2021, p. 637). Também Paulo Lôbo, um dos grandes especialistas sobre o tema da parentalidade socioafetiva em nosso País, leciona que “permanece o direito ao reconhecimento da origem genética, como direito da personalidade, sem efeito de parentesco, na hipótese de adoção, conforme previsto no art. 48 do ECA, com redação dada pela Lei 12.010/2009: (…). Em caso de recusa ao acesso, pode ser ajuizada ação para tal finalidade, que não se confunde com a ação de investigação de paternidade ou maternidade. A decisão do STF não implica inconstitucionalidade de norma legal que estabelece a ruptura dos vínculos familiares de origem do adotado, exceto quanto aos impedimentos matrimoniais” (Parentalidade socioafetiva e multiparentalidade. Questões Atuais. In Direito Civil: Diálogos entre a Doutrina e a Jurisprudência. Coordenadores: Luis Felipe Salomão e Flavio Tartuce, São Paulo: Atlas, 2018, p. 607).
Para Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald, “não será possível aplicar a multiparentalidade nos casos em que a filiação socioafetiva decorrer de uma adoção. Isso porque, por expressa disposição do art. 49 do Estatuto da Criança e do Adolescente, a adoção rompe todos os vínculos biológicos que não serão restabelecidos, sequer, pela morte dos adotantes. De fato, permitir o estabelecimento de uma parentalidade plúrima entre pais adotivos e biológicos poderia ser a depreciação da adoção, reduzindo a sua relevância e segurança jurídica. Quem adota, naturalmente, pressupõe a ruptura definitiva dos liames biológicos do adotado, não havendo espaço para a tese” (Curso de Direito Civil. Volume 6. Famílias. Salvador: Juspodivm, 13ª Edição, 2021, p. 656). Igualmente, Maria Berenice Dias, ao analisar especificamente a multiparentalidade pontua que “o art. 48 do ECA garante ao adotado o direito de conhecer sua origem biológica. Deste modo, não há como negar-lhe acesso à Justiça. No entanto, como a adoção é irrevogável (ECA 39 §1º), o reconhecimento da filiação biológica não enseja alterações no assento de nascimento e nem gera efeitos pessoais ou patrimoniais” (DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. Salvador: Juspodivm, 13ª Edição, 2020, p. 291-292). Observe-se, na linha do que ensinam os últimos autores, que eventual reconhecimento não se dá em ação investigatória de parentalidade, mas em ação de busca de ascendência genética. E, ao final desta ação, apenas se declara o vínculo biológico, sem se estabelecer o parentesco, com todas as suas consequências jurídicas.
Como última nota, é preciso fazer a distinção (“distinguishing”) da hipótese de adoção prévia em relação ao que foi julgado pelo Supremo Tribunal Federal quando do Tema n. 622. Nas palavras, de Silvano José Gomes Flumignan, trata-se de “uma técnica que busca comparar os pressupostos de fato e de direito preponderantes para a tese do precedente em relação a um determinado caso concreto. Se os pressupostos forem os mesmos ou, pelo menos, existir grande similitude fática e jurídica, o precedente é adequado àquele caso. Se, por outro lado, os casos não forem similares, haverá inadequação do precedente” (Debates iniciais sobre distinção para precedentes em formação. Disponível em https://www.conjur.com.br/2021-jul-19/direito-civil-atual-debates-distincao-precedentes-formacao-distinguishing. Publicado em 19 de julho de 2021. Acesso em 17 de janeiro de 2021).
O caso analisado pelo STF, como antes pontuado, disse respeito à hipótese concreta em que alguém – já reconhecido por pai socioafetivo, por meio de adoção informal ou “adoção à brasileira” -, pretendia o reconhecimento do vínculo biológico. Como está das fls. 9 do inteiro teor do acórdão, em trecho de parte do voto do Ministro Fux, “, rapidamente, a verdade é que nós nos defrontamos com uma arguição no recurso extraordinário, e é o que foi afetado na repercussão geral, sobre o fato de que o recorrente se opunha ao reconhecimento da paternidade biológica, e já havia a paternidade socioafetiva. Então, havia um confronto. O que o Tribunal decidiu? Que uma coisa não inibe a outra. Qual é a minha tese? A paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público – no caso, essa era declarada; porque também nós reconhecemos a afetividade como um fato gerador de filiação -, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com todas as suas consequências jurídicas” (STF, Recurso Extraordinário 898.060/SC, Tema n. 622). Sendo assim e fazendo-se a referida distinção, há, sem dúvidas, inadequação do precedente à adoção.
Por fim, além dessa distinção a respeito do julgado superior em si, a verdade é que os precedentes anteriores sobre a multiparentalidade também dizem respeito a vínculo de parentalidade socioafetiva cumulado com o vínculo biológico, e não quanto à adoção, o que confirma a afirmação de sua inaplicabilidade na última situação.